Vá com Deus - DTRL19

-Marriane! Marriane! – A mulher não era daquele lugar. – Volte aqui sua... sua.. – Cachorrinha, pensou.

Mas a noviça não parou de correr. Ainda de posse de um monte de lençóis que carregava nas mãos, Mariane apressava-se por entre as paredes velhas daquele mosteiro de irmãs carmelitas. Não deixara a batina cair, mesmo batendo os tamanquinhos com voracidade do chão. Tac, tac, tac. E lá ia a monja pelos corredores.

Subitamente parou ao dar de caras com a madre superiora.

-Que faze aqui, irmã Mariane?

-Nada madre. – Olhou para a pilha de lençóis e depois para os olhos caramelados da freira à sua frente. – Apenas um habitual problema com a irmã Lúcia.

-Que ela tem? – A verruga no rosto da superiora poderia classificá-la como bruxa, dançando para lá e para cá enquanto a velha mulher falava. Porém, ao perceber que a noviça ficou calada, hesitando em responder, a verruga parou de se mover por um instante. – Diga!

Mariane insistia em nada dizer.

Neste momento, apressada e com uma respiração ofegante, aportou entre as duas carmelitas uma moça nova e de cabelos bonitos, soltos ao vento. Uma repórter do jornal local.

-Marriane! Marriane! – Deu de cara com o corpanzil da madre. – Ah... Desculpe-me. Pardon. Chamo-me Gisele.

-Francesa, pelo visto. – A verruga dançou na bochecha na madre.

-Ui, madam.

-Pois bem. Não há tempo neste mosteiro para franceses. Trate de se retirar. – Fitou as roupas de Gisele de cima a baixo. – E também de tornar-se mais decente.

Mariane se esgueirara por entre os braços da madre e entrara naquela sala com cheiro de mofo onde costumavam tratar da burocracia do mosteiro. Sendo assim, ao fechar-se a porta, as duas freiras ficaram – por hora – lacradas da conversa com a francesa intrometida.

-Detesto franceses. –Colocou um livro pesado sobre a mesa.

A noviça espichou o olho o máximo que pôde, contudo, não conseguiu enxergar o título do livro.

-Madre... – Apontou para o exemplar de páginas amareladas. –Isto não é a Bíblia, por sinal.

A madre sorriu.

-Não.

-Posso saber o que é? – Questionou Mariane, receosa.

-Ainda não. – Foleou apressadamente e parou em uma das páginas do meio do livro. – Aqui! Pegue meus óculos, imprestável!

Mariane fez sambar os tamanquinhos no chão de madeira.

-Toma, madre.

A velha não tirou os olhos do que lia concentrada.

-Agora, pegue uma cadeira e sente. – Moveu os dedos até parar em uma das linhas ao final da página. – Sim! – A madre iniciou uma leitura em voz alta, engrossando levemente o tom ao pronunciar as palavras em latim: - Dolentes quod nunc est idem. Tempus est, ut eos in manu iniquitatis.

-Não falo latim.

-Cale a boca, Mariane... Não me faça perder as estribeiras.

-Desculpa, madre.

-E pare de se desculpar. – Ainda absorta, a velha apontou na direção de uma mesinha na lateral do ambiente, de madeira escura e bastante rústica. – Agora pegue uma bandeja que está no interior da gaveta da cômoda. Ali!

A noviça abriu a gaveta e trouxe consigo uma bandeja de prata, fechada tal qual uma maleta. Depositou-a na frente da madre.

-Abra!

Mariane tremia de leve, o suficiente para fazer barulho com o metal. Destravou as trincas da maleta e abriu-a sorrateiramente, receosa pelo que poderia encontrar lá dentro. Apenas uma mísera seringa.

-Agora tira.

-Já tirei. – A noviça segurava o objeto nas mãozinhas brancas e pequenas. Estava mais pesado do que normalmente seria.

-Não a seringa, sua incompetente. Está me estressando! É de teu sangue que falo.

Aquela frase na voz da madre parecia tão normal quanto um Olá, porém teve mais impacto do que um penoso Adeus. A velha levantou-se e fechou o livro pesado, roubando a seringa das mãos de Mariane e contendo a noviça nos braços fofos.

-Não, madre! – Tentou escapar. – Espere! Eu... nem sei o que é isto. Para que vai usar... – A madre espetou a agulha na ponta da seringa e posteriormente perfurou a veia da garota. – Ai!

-Mandei ficar quieta e tirar você mesma o sangue... Viu no que dá? Agora toma isto e limpe-se. – Muito sangue havia saído da perfuração. A madre jogou uma toalha branca no rosto de Mariane para ela se limpar.

-O que você vai fazer com isto?

-Quer mesmo saber, intrometida?

-Se te pergunto...

-Hmmm, anda respondona agora também?

A noviça gelou por dentro, tentando manter a pose de durona que lhe viera à cabeça no momento.

-Pois aí vai. – A madre puxou de uma das portas do criado um caldeirãozinho de metal fundido. – Vou beber seu sangue como se fosse vinho, acompanhado de um bom jantar à luz de velas.

Mariane empalideceu.

-Ai, madre, assim você me mata!

A velha religiosa gargalhou.

-Não conto mentiras, querida. Deus é onipresente, esqueceu-se? Enxerga nossos pecados.

-Deus é onipresente, madre. – Concordou com a fala e a cabeça, levemente se inclinando para baixo.

-Dooleentes quod nunc est ideem. Teempus est, ut eos in maanu iniiquiitaatiiss.- A velha agora falava em homilia. – Dooleentes...

-Quê isso, madre? – A noviça ainda não aprendera latim nas aulas ministradas no mosteiro.

-Uma oração, insolente!

-Para quê? – Mariane era deveras inocente.

-O mundo. – A madre levantou os óculos das páginas amareladas e encarou a garota com raiva, como se esperasse que ela fosse embora; ao mesmo tempo desejando sua partida e também sua estadia para presenciar o ritual.

-O mundo? – Ainda não entendera; a coitada.

-Sim, o mundo. Nesta oração em latim, evoca-se a bênção divina para pedir luz.

Mariane analisou os manuscritos nas páginas encardidas e comidas por traças.

-Mas isto não é nem a Bíblia.

-É sim. Porém, uma versão antiga.

-Bem mais antiga...

-Sim. – Pausou por um momento e retornou à homilia. - Dooleentes quod nunc est ideem. Teempus est, ut eos in maanu iniiquiitaatiiss.

-Não vai me falar o que isso significa?

-Vou. Significa...

A madre foi interrompida por alguém que batia na porta.

-Quem é? – Saco, pensou por dentro.

-Irmã Vânia, madre. A irmã Lúcia necessita de um médico, está à beira da morte!

A madre levantou-se da cadeira, seguida pela noviça. Curvou-se apenas para sussurrar aos ouvidos da garota.

-Significa “O povo que sofre é o mesmo que ora. É chegada a hora de fazê-los pagar por seus pecados.” – Virou-se para a porta de madeira fechada, abriu-a e cumprimentou a freira carmelita que a esperava na porta. – Temos de olhar esta situação, irmã Vânia. – Conduziu-a pelo ombro. – Sabes que não são permitidos homens neste convento. E que o único médico das redondezas é o doutor Francisco de Paulli...

Irmã Vânia concordou com a cabeça.

-Pois bem. Deixe-me vê-la. - Saiu conduzida pela freira, deixando Mariane ainda chocada com a oração. “É chegada a hora...” As palavras reverberaram em sua mente. Estaria a madre prevenindo-se de algo?

***

Lúcia agonizava na cama, molhada de suor.

-Madre! – Quatro freiras que estavam na sala gritaram em uníssono, espantadas.

-Ajude a irmã Lúcia! – Gritou uma delas.

-Está à beira da morte! – Completou outra.

-Acalmem-se irmãs. – A madre pegou nas mãos de Lúcia, que subitamente se fecharam em um aperto. Mariane ficou debaixo do vão da porta, ancorada na madeira e assistindo à cena que se passava a sua frente. – Mariane!

-Sim, madre.

-Pegue aquela maleta que deixamos em meu escritório. Rápido!

-Aquela com sang...

-Sim! Esta mesmo! – Abanou as mãos rapidamente. – Voando!

Os tamancos novamente batiam apressados no chão de madeira. Tac, tac, tac.

-Aqui, madre.

-Agora saiam todas daqui! – O grito ecoou pela sala e apressou as carmelitas para fora do ambiente. – Menos você, trouxa. – Sussurrou à Mariane. – Você vai me ajudar.

***

Gisele abriu o caderninho de anotações rapidamente e começou a rabiscar tudo o que podia ouvir. “Posso saber o que é? Ainda não... pegue uma cadeira e sente... cale a boca, Mariane... Abre!... intrometida... Deus é onipresente.”

-Algum problema, querida? – Uma freira virou o corredor e deparou-se com a mulher espiando a conversa entre a madre e a noviça.

-Ah, na verdade... – Arranjou uma desculpa. – Eu vim fazer uma entrevista com a madre, mas vejo que está ocupada. – Virou-se repentinamente. – Vou-me embora então.

Alguém gritou a freira naquele momento. “Irmã Vânia! É grave! Chame a madre. Agora!”

Vânia começou a suar tal qual um porco assando em brasas. Bateu com força na porta, arrancando as duas religiosas da conversinha que tinham dentro do escritório. A essa altura, Gisele já dobrava o corredor na direção contrária por aonde viera.

Duas monjas andavam apressadas cochichando, com pilhas de lençóis na mão. Não podiam notar a presença de Gisele ali; não era bem vinda. A repórter segurou tudo que trouxe para o mosteiro, na intenção de recolher evidências, colocou dentro da bolsa e abriu a primeira porta que encontrou.

-Oh! Você! – Gisele se espantou com a cena que presenciava.

***

A madre suspirava aos ouvidos de Lúcia. Mariane tremia ainda segurando a seringa.

-Mae octa...

Para frente e para trás, é assim que se faz. Certa vez a noviça ouviu esta frase. A madre assim fazia naquele momento. Enfiou a seringa, com o sangue bento de Mariane, fortemente nas veias da freira em flagelo, esvaziando-a - Terço!

A noviça buscou as contas de Nossa Senhora, exalando um perfume de rosas no meio daquele acre odor de suor.

-Nome padre... – Passava as mãos no terço e na testa molhada de Lúcia. – Crucifixo!

Onde estava o crucifixo? Mariane não se lembrava. Onde? Na parede! Pendurado atrás da cama onde estava Lúcia, um crucifixo de dois quilos, em madeira maciça e abençoado pelo próprio Papa João Paulo II.

-Agora se afaste! – A noviça não hesitou. Encostou-se na cômoda do quarto. – Corpus bendictus... – Para frente e para trás a madre balançava, os olhos fechados e concentrada no que fazia. Começara a pouco a suar também. Lúcia babava uma gosma verde, que saía aos borbotões. Ela se debatia fortemente, agarrando com força as mãos da madre e apertando-as de forma voraz. – Espiritus santus...

-Quê isso, madre? Deus abençoa! – Mariane tampou os olhos de relance.

-Cala a boca!

-Desculpa!

-Água benta! – Lúcia tremia as pálpebras e mostrava apenas o branco dos olhos, revirando-se dentro das órbitas.

Mariane se espichou um pouco e alcançou um vidrinho de metal com água benta em seu interior.

-Saia! – A madre gritou. Lúcia aumentou a intensidade dos pulos na cama, ainda deitada. – Segure-a, Mariane! – A freira movia o braço livre e socava o ar tentando acertar a madre. – Rápido!

Mas a noviça permanecia estática, em estado de choque.

-Ai! Ela me arranhou! – Sangue agora se misturava ao suor e escorria pelo braço da madre superiora. – Vem cá, noviça! - Nada. -Vem cá!

Mariane se afastou lentamente, enquanto a velha freira gritava com a irmã Lúcia se debatendo na cama. Sangue. Tremeu dos pés à cabeça. Nunca pensei que veria tanto sangue! A madre orava em homilia: Padre nosso habitatis in cielo, santificatu sea et nominis... A noviça suava frio. Ai meu Deus, é hoje que morro. Ela se uniu em orações: Pai nosso que estás no céu, santificado seja seu nome...

-Saia poltergeist! Afaste-se deste corpo santo a serviço da Igreja! Abandone irmã Lúcia. Procure uma alma impura para habitar! – Jogou um bocado de água benta na pele da freira, já vermelha de tanto se debater.

Urrou ao receber a água, queimava-a. Uma voz grossa e bi-tonar falou com a boca da carmelita.

-Ela é minha! Alma impura!

-Expurgo-te deste corpo! Volte para o inferno!

-Nunca! Gosto desta pele macia, desta virilha nova e desta carne de primeira! – Muita baba escorreu pelo queixo da irmã possuída.

Marianne chegou à porta trancada.

-Noviça! Rápido! Aqui!

Apesar dos gritos da madre, o estado de choque em que Marianne se encontrava era como uma droga, colocando-a momentaneamente em transe. Sangue... poltergeist... crucifixo... oração... café da manhã... Destrancou a porta e deu de cara com as outras freiras abraçadas umas às outras e todas segurando com firmeza seus terços em oração.

-Licensa? – Questionou a noviça à irmã Vânia, ansiosa rezando pela libertação de Lúcia.

A freira hesitou.

-Aonde vai?

-Café da manhã.

-Às duas da tarde e com um exorcismo em curso na sala ao lado?

-Café. – Mariane se afastou sem dar ouvidos à Vânia.

***

Gritos ecoam no corredor. Estou presa em uma sala, levada por Jonathan, o médico da cidade. O que diabos ele estaria fazendo em um mosteiro? Não sei como sair... Acho que ele queria manter o sigilo e... Gisele foi interrompida antes de enviar a mensagem pelo Wattsapp.

-Você está doida xeretando um mosteiro, Gisele?

-Como sabe meu nome? E eu lá te conheço tão bem assim para ter intimidade?

-Não me conhece, mas eu te conheço bem. Aquela vez que sua irmã, Bete, infelizmente... – A expressão de Gisele se fechou em lágrimas. – Então. Eu fiz a autópsia e ajudei nas investigações do acidente. – Parou por um momento e puxou uma cadeira para si. – Ajudei a chegar ao Aurélio.

-Não fale nele! Ainda não superei.

-Desculpa!

Um grito esbarrou nos ouvidos do doutor e penetraram nos de Gisele.

-Não vai lá ver o que é?

-Não deveria nem estar aqui...

-Ah é? – O instinto de repórter abraçou os pensamentos da mulher. Sem querer, iniciara um interrogatório.

-Cala a boca! Já pensou se nos descobrem aqui? – Tac, tac, tac. Diversos tipos de sapatos produziam som no corredor.

-O dia está agitado, não? Cala a boca você, trouxa.

-Ah, não resistiu a esse corpinho. – Passou as mãos sobre o cós da calça, exibindo-se.

-Já sei! É a freirinha que é impura! Você come ela escondido, safado!

-Ha ha. Quer também? – Desabotoou o primeiro botão da camisa social. Não estava de jaleco.

-Sai fora! Não gosto... disso! – Gisele fez uma expressão de repulsa.

-Um sapatão no mosteiro, conversando com um médico que come a freirinha às escondidas no corredor; enquanto a madre superiora fuma lá seus baseados, trancada em sua sala. Bela história para um conto de terror.

-A madre... Noiada?

-Quem mais seria?

-Maconha? – A mulher não queria se precipitar.

-Cocaína.

Gisele abriu a boca em “o”, surpresa. Preciso sair daqui.

-Acho que eu quero.

-Quer o quê, safadinha?

Escorreu os dedos sobre as calças de Jonathan, sentindo seu membro se enrijecer.

-Ah tá. Vai fundo. – O homem desafivelou o cinto. – Mas assim de cara?

-Assim. – Contemplou as pernas torneadas do médico safado. Preciso.

-E aí? – Jonathan apontou para seu segredinho precioso.

Gisele usou a ponta do salto agulha, fazendo-o despencar ao chão, com a mão no precioso e chorando de dor.

-E nem é tão grande assim!

Apressou-se para sair da sala, pegando o molho de chaves nos bolsos de Jonathan. Correu o máximo que podia em direção dos gritos horrorizantes ao final do corredor, enfiando-se no meio das freiras que eram atraídas pela gritaria.

***

-Mariane! Mariane! – Quem gritava era a madre superiora, descabelada, empapada de suor e suja de sangue coagulado nos braços. – Cadê aquela vagabun...

-Quer ajuda, madre? – Vânia apressou-se para oferecer.

-Não se pede ajuda para um exorcismo, querida. – Lúcia cuspiu gosma verde no rosto da madre. – Joga água na cara dessa puta!

-Madre! – A irmã advertiu-a.

-Desculpa. Calor do momento. Bíblia!

Vânia entregou-a.

-Eu te expurgo em nome de Deus e do Espírito Santo. Saia desta morada santa, pura, e encontre outra alma para habitar. Eu te expulso deste corpo! – A madre gritou a plenos pulmões.

Lúcia ficou quieta subitamente.

-Funcionou? – Vânia ainda tremia com o terço enrolado no braço.

-Acho que sim. Coloquei nela o sangue bento de Mariane, a única forma de expurgar um demônio tão forte como este. Demora, mas é certeiro.

-Graças a Deus.

A madre pegou um pano limpo dentro da cômoda e limpou o que conseguiu do sangue coagulado em seus braços.

-Dessa vez fui machucada. Ainda bem que sou uma pessoa de Deus, exatamente como o Diabo não quer.

-Mas ele possuiu uma freira, madre...

-Sim. – A velha fitou irmã Vânia e pensou na resposta à altura. – Mas, às vezes, pessoas do bem fazem coisas do mal, irmã. E qualquer deslize é um evento aos olhos do Diabo.

Vânia não pôde discordar.

***

Deus... Os gritos foram aumentando em volume, intensidade, frequência, pavor. Gisele apertou os olhos míopes na esperança de enxergar com mais nitidez o que se passava ao longe. Não enxergou nada, no entanto.

Em um convento, mistérios podem acontecer, alguns envolvendo noviças rebeldes, outros padres pervertidos, porém, o que ocorria naquele exato momento era totalmente diferente. Os urros não eram humanos, não eram comuns, espalhavam-se pelos corredores como uma praga, sucumbindo todos ali à escuridão. Eram abordados pela voz do Diabo, mesmo sem saber, tremendo dos pés à cabeça. Então, em um instante de êxtase suprema, a voz se cala, como uma criança que teve seu desejo atendido. Era hora de sair daquele corpo, debandar e procurar uma nova cria, uma nova carcaça para possuir. Enquanto isso deixara a voz demoníaca calada. E “o silêncio machuca mais do que palavras.”

-Tome isto. – Uma mão estendeu para Gisele um crucifixo rústico de madeira.

-Que porcaria... Jonathan? – Fechou a cara ao ver o médico.

-Está doendo até agora, sua vaca.

-Quê isso que você me entregou?

-Proteção. – Olhou para os lados; uma das mãos ainda segurando o passarinho adormecido. – Dizem que quando os demônios são expulsos de um corpo, vagam pela Terra até acharem a primeira alma impura. Mas... Eu ainda não entendo...

-Não entende o quê?

-Como o Diabo entrou no corpo da Lúcia.

-Talvez você tenha “desabrochado a flor” dela, perdoe-me o eufemismo.

-Vai cagar! Cruz e credo. – Bateu três vezes na madeira, ainda mancando enquanto dava largas passadas pelo corredor. – Olha pra minha cara de panela. Nunca ia pegar aquela freira. Não...

-Então quem você pegou?

-Quem exatamente o Diabo quer.

***

-Agora que tudo se acalmou, devemos prosseguir com as orações, tentar tirar o demônio das paredes do convento. Irmã Vânia, providencie junto às outras carmelitas uma caminhada de contemplação e bênçãos. O passo de Nossa Senhora.

A freira indicou às outras para que retirassem os sapatos, entrando em contato direto com o chão. Puseram as mãos nas paredes de pedra e entoaram cânticos religiosos em homilia. A madre continuava amparando Lúcia na recuperação. Retirou suas vestes, levou-a para debaixo do chuveiro. Coitada... Os peitos já estão tão caídos... E esta cara amassada...

Lúcia tremeu debaixo da água fria. Querida, a água está limpando este vômito e este sangue de demônio.

-Aliás, onde é que está este Diabo? Já saiu de meu convento? – Pensou alto.

***

-A noviça. – Jonathan parecia convencido de si.

-Mariane? Como pôde.

-Estava tão... ali. Se oferecendo pra mim... Só consumei o ato.

-Ih! Nem quero saber detalhes. Por que será que os gritos pararam?

-Deve ser que o demônio já foi exorcizado do corpo de Lúcia.

-Mas ela era uma freira! – Gisele exclamou, estupefata.

-Freiras também pecam. São humanas. E os humanos são exímios pecadores. – Chegaram à multidão que se aglomerava na porta de um dos dormitórios do convento. A ponto de ouvirem a conversa da madre com a irmã Vânia. Mas ele possuiu uma freira, madre... Às vezes, pessoas do bem fazem coisas do mal, irmã. E qualquer deslize é um evento aos olhos do Diabo. – Não te falei? – Sorriu, mais preocupado do que contente. Ele sabia o que podia esperar.

-Está preocupado?

-Claro, né. Não é estranho para você haver um demônio rondando as paredes deste local neste exato momento?

Irmã Vânia saiu dos dormitórios com uma ordem a ser cumprida: Limpar o mosteiro daquela presença demoníaca impregnada nas paredes. Como de costume, as irmãs carmelitas retiraram seus sapatos e entraram em contato espiritual com a construção. Entoando cânticos singelos, passaram por Jonathan e Gisele quase sem nem ao menos notá-los ali.

-Estranho...

-Que foi desta vez, Jonathan?

-Ele não achou a vítima.

-Quem?

-O Diabo. Não achou alguém para possuir. Ainda não...

-Cruzes, cara.

-É verdade! O Diabo espreita pelas paredes de um local até encontrar suas vítimas. Então, arreganha sua bocarra e suas enormes garras. Aí coitada da pessoa possuída. – Riu.

***

Mariane passou manteiga no pão como se realmente estivesse tomando café. Absorta do jeito que estava, não percebeu que era tarde para o desjejum e que a cozinha estava realmente fora do normal.

-Noviça!

-Olá! – A garota respondeu, ajeitando os cabelos negros por cima dos ombros. Engoliu um pedaço de pão com manteiga e esperou-o cair no estômago lentamente para continuar a falar. – Tudo bem? Como vai?

-Bem. E você? O que anda fazendo?

-O de sempre, – A voz era certamente habitual para Mariane. – arrumando as coisas para a madre, trazendo lençóis e sapatos velhos de cá para lá, lavando e passando; orando.

-Pois bem. Eu venho fazer-te um convite.

-Férias? Adoraria. – Os olhos azuis de Mariane permaneceram vidrados no pão. Comeu mais um pedaço enquanto continuava a ouvir.

-Digamos que sejam férias mesmo. Viajaremos para longe assim como fez com aquele médico lá da cidade. Conhece-o?

-Jonathan? Vi algumas vezes. – Sabia que seus encontros eram mais do que meras conversas.

-Não minta para mim, garota. Eu conheço tudo.

Naquele momento, a porta bateu fortemente, deixando entrar uma brisa com cheiro de hortelã.

-Não. EU conheço tudo!

-Ai que medinho. – O primeiro homem riu enquanto o segundo tentava se explicar.

-Deve temer mesmo, insolente. EU sou aquele que segue o caminho do bem.

O primeiro homem desviou a conversa:

-Então, Mariane, como eu falava, vamos viajar?

-Cale a boca! – O segundo homem protestou. – Não a induza a nada!

-Não estou induzindo...

Mariane até o momento havia permanecido calada, apenas escutando a tudo e absorvendo algumas palavras soltas, porém, resolveu intervir no ponto em que os dois homens atrapalhavam seu café matinal.

-Calem-se os dois. Preciso tomar meu café. - Os dois homens se aquietaram. –Então, um de cada vez.

-Viaje comigo!

-Não! – O segundo praticamente interrompera o primeiro.

-Vou sim viajar. Aceito o convite.

-Xeque-mate! - Brandiu o primeiro em sinal de vitória. Aquele sangue delicioso e corrompido... Todo meu! Era preciso que Mariane aceitasse o convite. Ela aceitou. O segundo homem foi obrigado a se afastar, assistir a tudo calado, fazendo sumir do ambiente o aroma de hortelã e a sensação de frescor. Em seu lugar, um calor insuportável e um cheio acre de enxofre. - Pronta para viajar?

-Sim. Apenas preciso terminar meu café da manhã.

-Claro. Tem todo o tempo do mundo. – Riu para o segundo homem, encostado ao canto da sala com as mãos enterradas no rosto barbeado e jovial. O primeiro homem por sua vez tinha uma barba mal feita e negra como uma noite sem luar. Além do mais, possuía o rosto marcado de rugas que o deixavam velho, muito velho. – Prontinho?

-Agora sim.

-Então se vire. – O segundo homem não podia fazer nada. Levantou seu rosto pasmo com a escolha da garota. De seus olhos verdes como o mar caribenho, escorriam lágrimas transparentes, a mais pura expressão do amor.

-Tá bem. – Mariane deu um giro de 180 graus. – Ai meu De...

Não havia mais tempo. A boca escancarada da garota, assustada, aterrorizada, foi a porta de entrada. Ela gritou, lutou, juntou todas as forças que podia. Sai daqui! Ai! Isto dói! Travava uma luta interna, que acontecia na mente enquanto o corpo era flagelado. Pela carne branca e leitosa diversas manchas negras foram aparecendo, ao passo que os olhos se contorciam dentro das órbitas, praticamente saltando delas. Sai Capeta! A garota tentou evocar o Todo Poderoso, mas a luta era intrínseca, e naquele momento, a ajuda divina estava por fora. Ela havia se deixado contaminar pelo pecado naquele dia em que desabrochara.

Uma flor nunca nasce duas vezes. Desabrochar é nascer de novo, mesmo que isto implique em brotar em tons de sangue. O pecado corrompe até mesmo a mais pura das almas. Corrompera Mariane.

-Ai meu Deus! – Gisele e Jonathan aportaram na sala e viram a cena. – Mariane!

Espumando pela boca, a feição da noviça sumira completamente. Agora era propriedade particular. Caso o aluguel fosse pago em dia, poderia residir ali para sempre. Caso não, alguém poderia proceder com o despejo. Esta segunda opção estava longe de se concretizar.

-Ela é minha agora. – Uma voz rouca e grossa, anormal, falou com a boca e o corpo de Mariane. – Estamos viajando para o inferno. Vamos com a gente.

-Claro que nã...

-Não perguntei! – A noviça possuída avançou desajeitadamente e grunhiu. Suas garras negras se esticaram dos dedos e encontraram a carne de Jonathan. Rasgaram-no com voracidade. – Volte aqui! – Virou-se para Gisele, que tentava correr, mas a porta se fechara subitamente em resposta à tentativa de fuga. – Não te dei permissão, puta!

-Por Deus!

-Nem Deus pode te salvar neste momento. Pecado se paga com pecado. – Abocanhou-a.

***

-Irmãs! Irmãs!

-Mariane! Por onde andou? – Irmã Vânia sorriu ao vê-la.

-Por aí.

As carmelitas limpavam seus pés com água benta.

-Limpe seus pés conosco. – Uma das freiras convidou-a.

-Não estão sujos.

-Pois bem. Infelizmente, temo que a cozinha seja interditada por certo tempo. – Mariane fingiu-se de comovida.

-Que pena. – Irmã Vânia sorriu novamente e deixou espirrar um pouco de água benta no chão. Ao ver que Mariane se afastou, tentou se desculpar.

Ali era muito perigoso.

-Madre?

-Oi, Mariane! Como está?

-Desejo mudar-me de cidade. Preciso de uma vida um pouco mais liberta. Acredito que virarei devota, nada mais do que isso. – Almas perdidas. – Ter contato com pessoas. Pecadoras.

-Espalhar a palavra.

-Sim. – Não! Matá-las! A voz em seu interior controlava os pensamentos.

-Pois bem. Foi bom tê-la conosco. – A madre levantou-se e fez um gesto com a cabeça. – Apenas peço uma coisa, noviça: Nunca comente sobre o que viu aqui com relação à irmã Lúcia. É um caso isolado.

-Pode deixar.

-Vá com Deus, irmã.

Isso já não posso garantir.

Temas: Conventos religiosos; atividade paranormal

Walter Crick
Enviado por Walter Crick em 02/12/2014
Reeditado em 08/12/2014
Código do texto: T5056773
Classificação de conteúdo: seguro
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