Um Cálice de Vinho - DTRL 19

Vrumm... Vrummm... vrummmm...

Vibrava o telefone celular despretensiosamente sobre o criado ao lado da cama.

Carlos, como se temesse a queda, instintivamente agarrou firme o aparelho. Já passava do meio dia, exatamente a hora que haviam combinado. Seus olhos ardiam devido ao despertar repentino.

- E aí? Já acordou?

Não teve tempo para pensar em uma resposta, se tivesse, com certeza teria dito que o telefone atendia sozinho.

Não. A resposta foi outra.

- Acordei agora. Cara, você ligou muito cedo.

Seu tipo de ofício exigia que ficasse até altas horas na labuta, natural querer dormir um pouco mais.

- Nossa, combinamos às doze horas. Já passou. Você perdeu a hora.

Tudo bem. Foi combinado, fazer o quê?

- Vai dar certo, não se preocupe. Fizemos isso inúmeras vezes, tá tudo estudado. Depois é só pegar o dinheiro.

- Sem sujeira então. À noite nos encontramos.

Às duas da manhã, Carlos guiava seu parceiro por uma estradinha cascalhada adornada pela mata do cerrado mineiro. Naquela hora era impossível cruzar com alguém, no máximo um lobo guará se encantava pelo brilho dos faróis da pick up. No radio, a baixo volume, ouviam Raul Seixas.

Quando chegou ao Brasil, Pietro se informou no submundo carioca quais seriam os melhores na arte do furto e discrição. Carlos foi indicado com louvor.

Enólogo cipriota, percorria o globo em busca de raridades, assim se apresentou. Desta vez sua cobiça o trouxe as terras do serro. O tesouro bem guardado era mantido em absoluto segredo, ninguém jamais deu notícia de seu paradeiro. Os contratados nem sabiam por que algo tão velho poderia ter tanto valor. Também nem se interessavam. Bastava a recompensa por um trabalho quase sem esforço, do tipo que mais apreciavam.

Alguns dias de campana foram suficientes para traçarem os planos. Lugarzinho afastado, guardado por gente indefesa, sem telefone, nem ao menos celular, pois estes se calavam ante a sombra das montanhas. Era entrar e sair. Muito simples. Depois as curvas do caminho seriam suficientes para despistar qualquer perseguidor.

Pararam o carro a uns quinhentos metros do único portão. Os faróis foram desligados. Era uma espécie de construção ao estilo espanhol, um muro alto mantinha os animais de fora. As divisas eram bem limpas, a entrada guardada por grossas madeiras de lei não poderia ser derrubada. Do muro até o convento devia-se caminhar alguns metros por uma grama muito bem cuidada. Os pêssegos maduros exalavam um cheiro doce acalmando o espirito. Uma coruja piou no galho do ipê.

Sobrepujado as primeiras dificuldades, foi fácil adentrar no salão principal iluminado a meia luz por um candelabro originário de Andaluzia. As plantas estavam na mente. Seguiriam por alguns corredores até a dispensa. Daí eram conjecturas. Uma pequena porta revelaria o caminho da adega. Poucos tinham entrado ali. Nunca ninguém descreveu tal lugar. Surpresa era o que encontrariam. Estavam preparados. Sempre estavam.

O recinto silencioso causava temor, as respirações ecoavam fora do peito, um descuido revelaria a invasão. As freiras dormiam o sono dos justos. Despertariam na aurora para o inicio de seus atos litúrgicos. Seriam rápidos como camundongos.

Adentraram por um longo corredor. Não temiam a escuridão que era facilmente vencida pelo feixe da lanterna empunhada por Carlos, por via das duvidas, sua mão direita repousava no cabo de sua pistola automática. Longe dele querer usa-la contra uma mulher. Ainda mais sendo esta devotada ao Senhor. Era bandido mais temia a Deus. Atrás de si, o comparsa seguia tendo as costas uma mochila acolchoada onde descansaria o produto do furto.

Sem perceber, estavam descendo, caminhavam em direção as entranhas da terra. Os passos eram cuidadosos para evitar o eco. A luz revelou uma porta logo adiante. As trancas pareciam antigas, medievais até, um enorme cadeado impedia o movimento do pesado ferrolho. Sem dar importância aos rabiscos acima da tranca. Iniciaram as artimanhas para ludibriar o segredo, se soubessem o que diziam talvez não terminassem a tarefa.

Era impossível mover a porta sem que seu eco melancólico soasse corredor acima. Ficaram em profundo silêncio por infindáveis instantes. Só após terem a certeza de que ninguém fora alertado invadiram o amplo salão.

A primeira vista o espaço estava todo vazio. A luz percorreu as paredes desenhadas, parecia ter contorno circular. A porta era a única abertura. Não deveria ser ali a adega. Não havia tão pouco outro caminho. No centro uma espécie de mesa, sobre ela uma caixa. No teto, algumas luminárias.

Tateando a parede, no umbral da porta algo parecia um interruptor. Tão distante da primeira entra fechada após a passagem, a luz elétrica não traria perigo algum.

Que haja luz. E ela iluminou o recinto. Na parede os sete Arcanjos de armas em punho comandavam suas legiões, nem pareciam servos da fé. Sobre cada líder uma palavra antiga, talvez grega ou latim. Não existiam prateleiras ou estantes. Seguiram em direção à caixa.

Sobre a mesa uma arca de madeira betumada, relíquia do Monte Ararat. Especialistas atestariam sua autenticidade, ignorantes certamente veriam apenas um baú sujo de óleo. Não havia fechadura, bastava erguer a tampa. Símbolos religiosos enfeitavam toda a madeira, o conteúdo foi revelado.

Em meio à palha seca, uma pequena ânfora de barro fechada por uma rolha de carvalho repousava protegida de olhares curiosos.

Carlos abriu suavemente a bolsa enquanto seu companheiro, também de forma cautelosa segurava a jarra do vinho precioso. Deveriam acondicionar meticulosamente evitando qualquer possível incidente. O simples contato com o ar poderia por em risco a qualidade do conteúdo.

Nem tudo são flores. Nem todo meliante tem mãos de veludo. Bastou um descuido e a tão preciosa encomenda conheceu o solo de pedras frias.

O som da queda ecoou como um sino de alerta. Segundos foram o bastante para o convento se iluminar como numa noite de Natal. As servas de Cristo corriam cada qual para um ponto estratégico. Nenhuma delas se dirigiu à capela.

Ao encharcar o solo, sentindo o sabor doce do ar, o liquido fermentou exalando um enjoativo odor de morte. Uma nevoa negra tomou conta da sala à medida que esta subitamente foi se tornando cada vez mais gelada. Como se garras invisíveis agissem os afrescos eram retalhados. Sangue parecia escorrer pelas paredes, o piso úmido agora estava como o solo de um pântano.

Uma forte pancada arremessou os dois homens de encontro à parede.

Munidas de orações, armadas com objetos consagrados às irmãs acorreram ao pequeno túnel adentrando horrorizadas na sala de contenção. A densa nevoa negra teve seu caminho bloqueado. A única saída estava guardada por mulheres que oravam insanamente. Como uma fera acuada, a criatura buscava qualquer fresta que lhe possibilitasse uma fuga.

Não havia como fugir, não tinha pra onde. Também não poderia ser capturado, seu cárcere tinha se partido. Uma batalha árdua seria travada. Um homem, um corpo era do que precisava.

Carlos mantinha-se caído, não mensurava a besteira que haviam cometido.

Formando uma densa coluna negra, a nevoa se dirigiu a ele como um dardo arremessado à queima roupa.

Sua vida parecia ter chegado ao fim. A salvação de sua alma agora dependia de seu arrependimento, então ele implorou.

- Deus me ajude.

Aquelas palavras nada significavam, mas foi suficiente para mudar o interesse da criatura.

O comparsa caído apenas praguejava. Um corpo perfeito para uma possessão.

Haviam passados mais de três mil anos sem conhecer o calor de carne humana, sem respirar o sopro da vida. Era estranho caminhar novamente, mais seu poder aos poucos se restaurava.

Ao fitar com olhos negros uma pobre freira, esta se postou de joelhos como se o oxigênio lhe fosse roubado. Um pequeno estalo e seu pescoço partiu. Com um simples aceno a porta abiu e fechou-se bruscamente jogando longe suas defensoras. Uma senhora de habito rasgado mostrando o branco dos cabelos tornou-se o único empecilho para que o homem pudesse ganhar o corredor.

Carlos observou horrorizado o amigo que com um gesto ergueu a religiosa ao teto e tristemente fez com que ela rodopiasse no espaço parecendo um ventilador.

Nada a fazer. Sacou sua arma. Inutilmente disparou. Uma, duas, três balas sem efeito algum.

Uma risada macabra encheu seus ouvidos. A mulher caiu como um peso morto no chão. A criatura caminhou em sua direção. Como uma criança mantinha-se inerte. Mais orações podiam ser ouvidas. O reforço estava a caminho.

O homem abandonou seu companheiro. Seguiu corredor acima fazendo voar tudo que encontrava em seu caminho. Do lado de fora o enorme portão cedeu a um misero desejo seu. A pick up partiu.

Em Belo Horizonte, rodeado por lindas mulheres, Pietro agitou um cálice de vinho. No brilho de seu sorriso a certeza da tarefa cumprida.

Existe agora uma besta entre nós.

Tema: conventos religiosos e fenômenos paranormais.

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 03/12/2014
Reeditado em 16/01/2024
Código do texto: T5057645
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.