A Pirogênese - DTRL 19

“O fenômeno de exteriorização e transformação da energia corporal (telergia) produzindo calor até arder, chama-se pirogênese, em Parapsicologia. Do grego pirós = fogo, gênesis = produção.” Fonte: Instituto Padre Quevedo de Parapsicologia

- Não aguento mais ver Jesus morrer!

Passava da meia-noite e meu sono de grávida quase me derrubava sobre o braço do sofá. Moisés, meu marido, permanecia acordadíssimo, de olhos grudados em um canal de TV a cabo que exibia o mesmo comercial a cada cinco minutos: uma nova versão da Paixão de Cristo. Parece que a cada novo filme desse tipo tentam quebrar o recorde de sangue, lanhadas e pancadas com que castigam o Jesus da vez.

Meu castigo, por outro lado, era ter que ficar ali, já que Moisés não atendia aos meus apelos para irmos para a cama. Nem minha barriga de seis meses de gravidez o comovia. Ele sabia muito bem que dormir sozinha não seria possível para mim. Nunca foi, pensei, um pouco envergonhada por ainda ter medo do escuro.

Fiquei conformada em me espremer com ele a um canto do sofá menor. O maior já estava ocupado, pela maior pedra no sapato que já tive que aguentar. Sim, quando descobri que esperava um filho do meu namorado e decidimos nos casar, tive que aceitar o pior: Moisés não abria mão de morar com a mãe.

Eu deveria ter me recusado a ir viver em Lagoa Santa com a velha louca e seu filho patologicamente dependente dela. Mas meu orgulho me impedia de andar por aí como futura mãe solteira, então decidi ao menos tentar. Nos últimos cinco meses, entretanto, vinha nutrindo um forte impulso de juntar minhas coisas e tomar o primeiro ônibus de volta para Belo Horizonte. Se em algum momento minha paciência estourasse e eu mandasse aqueles dois pro quinto dos infernos, ao menos poderia dizer que era divorciada. Acreditava que isso soava melhor do que “solteira”.

Quando chegava a noite, tudo desandava de vez. Durante o dia, ainda era possível aturar a bruxa sutilmente criticar meu jeito de fazer comida e lavar vasilhas, assim como os canais de TV que gostava de assistir. Além do mais, eu trabalhava como manicure e passava boa parte do tempo atendendo clientes no alpendre. Mas à noite, a velha maníaca fazia questão de sair apagando todas as luzes da casa, deixando só a tela da TV para iluminar tudo.

Eu, como já disse, sempre detestei o escuro. Nunca conseguia me lembrar de onde achar os interruptores, e saía tateando e esbarrando pela casa. Na minha condição, isso estava ficando cada vez mais chato.

“Velha cretina”, pensei, sentindo se revirar em mim um ódio que vinha crescendo nos últimos meses. Entretanto, ao mesmo tempo o bebê se mexeu, e me censurei por não conseguir manter mais que uma calma aparente. Era à noite que a convivência forçada passava a ser quase insuportável; não havia muito para onde correr.

Levantei-me, com alguma dificuldade de mulher buchuda, para ir ao banheiro. Ao menos assim espantaria o sono e ideias que não devem passar pela cabeça de uma gestante. Contudo, minha irritação crescia exponencialmente enquanto tinha que tatear pela casa escura, auxiliada apenas pelo brilho distante da televisão.

A velha idiota e sua mania de “economizar energia”. Como se ela não virasse a madrugada com a TV de quarenta polegadas ligada; nossa, como era econômica!

- Tem até graça isso; ganho enxoval da minha família, alugo uma casa, mudo minha vida toda, pra no final vir essa VELHA atrapalhar a minha vida!

Claro que não estava falando sozinha; talvez estivesse pensando alto! Às vezes Moisés dizia que eu estava falando sozinha, mas o que ele não entendia é que tenho o dom da abstração. Eu continuava tateando as paredes atrás do interruptor, mais desesperada a cada segundo. Por que ela tinha que apagar sempre TODAS as luzes?

- Essa MALDITA velha!

Eu sussurrava, sem abrir direito a boca. O que me apavora no escuro é que nunca se sabe quem está escutando. O medo me cegava mais do que a ausência de luz; algo em mim me avisava de que não estava sozinha e me mandava correr. Um tremor começou a se espalhar pelo meu corpo a partir do peito. Podia estar ficando louca, mas jurava sentir uma presença atrás de mim.

Congelada, pisquei e juro que vi (ou senti?) algo se mexer um pouco à minha esquerda. Algo muito pior do que cortinas balançando com o vento. Perdendo a cabeça, disparei pelo corredor na direção em que eu achava estar o banheiro, sem ousar olhar para trás. Diante de mim, outro vulto se adiantou em minha direção, com dentes pontudos e olhos brilhantes. Tentei desviar para minha direita e finalmente tropecei, voando quase um metro em frente. Bati os joelhos no chão com toda força.

VELHA MALDITA.

Gritei com força suficiente para acordar até os fósseis que o velho Lund e seus seguidores ainda não conseguiram desenterrar. Ouvi Moisés batendo os pés no chão e me chamando com voz trêmula, como a de um franguinho.

- Ve-e-ra?

Enquanto eu o ouvia se aproximar, percebi que as luzes da sala piscaram fracamente, como se o disjuntor estivesse querendo cair. Uma, duas, três vezes, cada vez aumentando um pouquinho de intensidade, até que acenderam de vez. Ergui a cabeça, completamente tonta, e vi os interruptores poucos centímetros acima de mim. Intocados.

Sem perceber nada, meu espertíssimo marido tentava desesperadamente me levantar.

- Machucou, meu leitinho condensado? – derretia-se o hipócrita.

- Ah! Pára! Agora não preciso de você – resmunguei, aliviada por não estar mais escuro, apesar de não fazer ideia de como as luzes haviam se acendido.

- Você é muito má – ele resmungou, e eu bufei em resposta.

Ele retirou a mão de mim, meio a contragosto, enquanto eu me concentrava em descobrir se o bebê ainda estava se mexendo. Moisés achou melhor ficar calado, vendo que eu estava realmente tensa. Imóvel, eu mantive uma mão de cada lado da barriga, rezando, implorando que meu filho estivesse bem. Enfim, ele deu chutes que soaram como bombas aos meus ouvidos. Mas eram bombinhas felizes.

Dei um suspiro de alívio. Só então notei que minhas pernas tremiam, e provavelmente meus joelhos amanheceriam roxos e imprestáveis. Deixei que Moisés me escorasse de volta até o sofá.

- Vamos dormir? – tornei a pedir, fazendo beicinho.

- Tá bom – ele assentiu, ainda assustado.

Lancei mais um olhar de ódio para a velha, que agora dormia de verdade, espalhada no sofá. Por que não comprava uma cama de verdade e enfiava no quarto dos fundos? É o que uma pessoa normal faria em vez de ficar dormindo no sofá, noite após noite. Mas eu sabia por que ela fazia questão de passar a noite ali. Para fazer Moisés se sentir culpado e não pensar totalmente em mim e no bebê. Para ser a coitada da vez. Resumindo, pra incomodar.

Meu marido ia desligar a televisão, mas a velha bruxa acordou na hora e mandou deixar ligada, como sempre. Mas pediu para apagar a luz. Fui me deitar revoltada, bem agarrada a Moisés, ouvindo através das paredes finas o onipresente comercial da Paixão de Cristo. Mal encostei no travesseiro, caí num sono profundo e de início agradável.

Quando comecei a sonhar, foi como se uma luz suave se derramasse sobre mim. Eu estava em um lugar todo branco, já com meu bebê nos braços. Alguém, que eu supunha ser minha mãe, começou a falar comigo, como se me desse aulas:

“O medo também é uma arma poderosa. O ódio é um dom tão precioso que consegue dominar o fogo”.

O sonho aos poucos sofreu algumas transformações, que mal senti.

Agora eu estava sentada em meu banquinho no alpendre, bem tranquila, fazendo as unhas de alguém à minha frente. Não sabia quem era, mas algo começou a me parecer estranho. Eu não conseguia me concentrar no trabalho; os dedos da mulher pareciam estar mudando de lugar constantemente.

Chateada, ergui o rosto para me desculpar e de início não vi ninguém. Estava tudo borrado, e comecei a entrar em desespero, achando que tinha ficado cega. Insisti em tentar focá-la, cheguei a me levantar, mas seria melhor se não tivesse feito isso.

O rosto da mulher estava em pedaços, quase em pó. Estava negro, carbonizado, e o maxilar se desprendeu quando olhei, desfazendo seu macabro sorriso. Caiu em seu colo e rolou pelo vestido de bolinhas. Fiquei olhando, o que desviou meu foco para o que eu realmente estivera fazendo. Não havia unhas naqueles dedos, nem mesmo carne. Eu tinha pintado, ou melhor, borruscado, as falanginhas chamuscadas de um esqueleto. E nesse momento ela ergueu as duas mãos para mim e me encarou com as órbitas vazias, como se me mandasse continuar o serviço. Alguns dedos caíram no chão.

Nessa hora, comecei a gritar de novo, gritei tanto que acordei gritando e me debatendo. Acho que até estapeei sem querer a cara de Moisés. Ele acordou apavorado, mas logo se recuperou e tentou me acalmar. De repente, ele ficou quieto. Tão quieto que até me esqueci do pesadelo.

Sem me dizer nada, saiu correndo do quarto, e quando abriu a porta, senti um cheiro estranho se remexer no ar. Meio tonta, pensei se valeria a pena ir atrás dele, mas quando percebi que estava sozinha no escuro saí sem nem procurar os chinelos.

Quando dei dois passos para fora do quarto, descobri que não precisava acender a luz. E nem poderia se quisesse, pois o cheiro de queimado do disjuntor era inconfundível. Não havia simplesmente caído; os fios tinham derretido. No sofá logo abaixo dele, uma espécie de tocha ardia como um bom churrasco. Fiquei olhando indiferente, até Moisés quase me atropelar, segurando uma jarra de água que havia arrancado da geladeira.

Encarei estupidamente a porta da geladeira aberta enquanto Moisés berrava para que eu abrisse a torneira, buscasse a mangueira, fizesse alguma coisa. Eu sabia que não adiantaria nada. A velha havia morrido sem nem sentir. A tranquilidade desse pensamento me relaxou como nada igual naqueles conturbados meses de gravidez. Senti-me tão leve quanto uma bolha de sabão, e o bebê me chutou novamente, como se me mandasse voltar logo para a cama.

Ergui os olhos tranquilamente para Moisés, desejando que ele se sentisse tão bem quanto eu. Não pude deixar de sorrir. Sua expressão atônita o fazia parecer um velho bobo, com a jarra vazia na mão. Acho que o desespero não tem idade. O fogo havia desaparecido tão repentinamente quanto começara, e a escuridão que voltou a reinar dificultava o reconhecimento do que havia sobre o estofado vermelho.

Parecia normal, a não ser pela presença de um esqueleto carbonizado, deitado com as mãos estendidas para a frente. Descanse em paz, minha saudosa sogrinha...

Tema: escuridão, fenômenos paranormais

Virginia Barros
Enviado por Virginia Barros em 05/12/2014
Código do texto: T5059105
Classificação de conteúdo: seguro
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