RETROCESSO – MEU AMIGO OCULTO – DTRL 2014

A MANDINGA

Não precisou ir muito longe para conseguir a matéria prima, afinal morava no Amazonas. Molhou a mão do mateiro e em poucos dias recebeu a encomenda enrolada em folhas de jornais, depois saiu perguntando, no boca a boca, e logo descobriu o que deveria fazer. Se estava no terreiro da mandingueira Zumira era porque queria fazer diferente, algo real.

– Hoje é sexta, dia de Nana e do Cabôco Kucumbunda. Vamo vê se ele aceita o que tu pede. Deixe os outros se chegar.

Viu um enorme caboclo puxar fumo e não soltar mais, Zumira, por sua vez, fez um círculo na poeira, depositou o que ela trouxe e espalmou a mão mandando-a esperar distante. Em pouco tempo o início do trabalho começava.

Batuques de atabaques ecoaram, algumas pessoas foram puxadas para dentro de uma roda, o vento levantou a poeira, aqueles que estavam de branco começaram a urrar e tremer os corpos batendo os pés em passos trôpegos no chão. Galinhas foram depenadas vivas e faziam alardes somados aos gritos dos demais. Crianças rodopiavam com olhos virados, queixais tombavam arfando e falando frases ininteligíveis numa assembleia de grunhidos.

– ÔXIÔXIÔXI! Grrrrrrr!!! Grrrrrr!!! ÔXIÔXIÔXI! Grrrrrrr!!! Grrrrrr!!!

Sentiu a boca seca e enrijeceu cada músculo. Nunca havia visto algo igual. O preto alto permaneceu movendo o corpo como um pêndulo próximo da fogueira. Nádegas femininas quebraram com vigor assustador em solenidade as entidades, centelhas de fogo se agitaram configurando imagens. A cadência seguiu, até que o preto abriu a calça e puxou sua taboca derramando um líquido translúcido sobre o objeto que foi jogado no círculo. Ao final de um grande uivo, aquele ritual chegou ao fim.

Um homem usando uma camisa, que um dia foi branca, cheia de marcas ensanguentadas e furos nas costas, saiu andando torto e Zumira ia atrás avisando-o.

– Não corta a corrente, agora só falta matar mais dezessete galinha na tua costa. Vá na paz!

Olhou ao redor as pessoas recompondo-se. Zumira banhou o objeto na cachaça e se aproximou mostrando dois dedos.

– V de vitória? – Perguntou com o rosto iluminado enquanto segurava aquilo com extremo cuidado (e nojo).

– Não, flor. Dois mil reais.

O sangue sumiu do seu rosto, ficou tonta por alguns minutos, quis dizer algo, mas a voz não saiu. Abriu a carteira e os cartões caíram no terreiro. Zumira olhou para aquela cena e gritou.

– Uoxito! Uoxito! Vai pegá a maquininha que a madama aqui só tem cartão.

*****

Chegou em casa bufando de raiva e depois de algum tempo, embalou o presente, mas refletiu que era melhor não enviar pelo correio e ir entregar pessoalmente, pois se algo desse errado, poderia mostrar sua carteirinha de pesquisadora júnior e, talvez, livrar a barra. Depois de cinco horas de voo, pisou na cidade de destino.

*****

O RETROCESSO

O corpo estava em um leito, o cheiro de álcool e cloro atrelado a aqueles bips, incomodavam. A bata azul era sua única peça de roupa. Abriu os olhos e percebeu a sala de cirurgia, mas antes de qualquer questionamento, ouviu o ronco aterrador da motosserra.

– Vamos aparar as orelhinhas... – Sentenciou o médico de sorriso sádico. – ... e adiantar a mudança de sexo.

– Ahhhhhhhhhhhhhh!!!!!

***********

Acordou dentro daquele susto, sentou-se na cama e rapidamente certificou-se de que suas orelhas permaneciam no mesmo lugar, mas a tranquilidade se desfez num pestanejar, pois não sabia onde estava. Sentiu uma coceira profunda na perna e respirou a frieza do quarto escuro. Quando passou a mão na canela encontrou algo viscoso e quente, tentou lembrar-se de alguma coisa, mas, nada. Sua respiração ficou apressada à medida que percebeu as ideias esvoaçando como folhas secas na mente. Era um vão, oco. Nem amigos, nem parentes. Não lembrava sequer do seu nome.

O verme da coceira dançou excitado, estendeu as mãos e coçou com força e quanto mais coçava mais queria, a boca salivava a sede desconhecida, infame, doída. E enquanto coçava gemia alto de prazer e dor sangrando a si mesmo sem conseguir conter-se. Sussurros no ouvido ordenavam: “Morda!” “Morda!” “Morda!” No frenesi insano levou os dentes ao membro contorcendo-se flexível e mordeu-se como um cão. Sentiu o gosto de sua carne, mas permaneceu ali, gemendo e chorando, até que a dor queimou superior e o festim demoníaco se desfez.

Sentia a exaustão junto com o alivio da ausência daquele infortúnio. Preocupou-se com o que havia feito. Tornara-se canibal? Zumbi? Não, não. Ainda tinha vida. Tinha? Beliscou-se e deixou a voz sair pelos grossos lábios.

-- Hey! Tem alguém aí? Alguém? Alguém...

O eco e a estática foram a única resposta, não via além da magra luz da lua refletida no visco que escorria da sua perna. Na mente, as imagens começavam a brincar. Um sorriso e mãos femininas lhe entregavam um presente, mas antes de ver o rosto, um o clarão de luzes brancas quase provocou a cegueira. Sua cabeça girou de modo repentino de lá para cá e os olhos vasculharam todos os cantos onde a visão pôde alcançar. O profundo silêncio só quebrado pelas batidas aceleradas no peito agitaram a confusão, e imagem repentina na perna fez o queixo desabar: no ferimento, miasmas de vermes bebiam seu suco vermelho e até em sua boca havia aquela mesma dança.

Agitou-se em estado frenético correndo as mãos em si a fim de afastar aqueles bichos e quando caiu no chão, percebeu que já não tinha a mesma visão. A perna sã se mostrava em sua frente como sempre estivera. Faltava fôlego para praguejar o quanto queria, mas antes disso, três batidas soaram à porta.

"TOC, TOC, TOC"

Permaneceu no chão por alguns instantes, sentiu raiva de si por estar com tanto medo. Por fim, disse em tom furioso:

– Que merda de brincadeira é essa, hein?

Do outro lado uma voz canina proferiu frases incompreensíveis e depois, o som das passadas rangendo o assoalho foi ouvido, decrescente, até desaparecer.

Xingou alto e foi para o banheiro, que estava com a porta escancarada, e uma lembrança lhe fez franzir o cenho. Lembrou-se que estava rindo de algo diante do espelho há pouco. Os olhos castanhos piscaram várias vezes como se quisesse acordar de um sonho. Lembrou-se também de uma lista e que escolheu ganhar algo. Mas, o que havia escolhido? Não sabia. O lugar tinha um “Q” de Stephen King (seu autor favorito). A madeira, os móveis, o lustre... Não entendeu como conseguia lembrar-se do nome daquele escritor e não do seu, muito menos de como chegou até ali.

Em confusão foi até a janela e tentou visualizar algo pela vidraça, o lençol da neve cobria a noite, mas conseguiu ver picos de montanhas distantes. Aquele não era o Everest. Vestiu, de modo apressado a calça jeans e camiseta branca. Queria ver um rosto amigo, um médico, alguém... Após abrir a porta apurou os ouvidos:

-- Danny? Venha cá seu fedelho! Agora você vai saber quem manda aqui. DANNY!

Pelo canto do olho, um velocípede atravessou de um quarto ao outro no extenso corredor. Aquilo não lhe era estranho. Retrocedeu para o quarto, sombras agitavam-se frenéticas pelo vão debaixo da porta e sons de passos unidos àquela voz canina eram ouvidos.

"Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar..."

Passou a chave e colocou-a no bolso da calça. Não conseguia conter o tremor e tontura. Havia um papel ali, uma conta de um barzinho. Como se houvesse levado um tiro, as lembranças brotaram.

*****

“Censurou-a explicando que aquilo era só uma brincadeira e que não deveria ter se deslocado de tão longe para trazer o que quer que fosse. Depois, se sentiu mal, ela parecia não ter encarado como uma brincadeira. Olhou o pacote sobre a mesa e retirou as fitas vermelhas da caixa tentando manter o clima festivo, mas ficou de olhos vidrados com o seu conteúdo.

– Esqueceu que moro no Amazonas? Lá tem muitos, então não foi assim tão difícil. Difícil mesmo foi fazer funcionar como você queria. Eu tive que passar em uma mandingueira e...

– Isso é...

– O que você queria, ora. A lista de pedidos, lembra?

O cheiro de algo apodrecido era forte, mas ela encarava e dizia.

– Você não vai testar?

Sentiu um fio de medo, afinal a sanidade é dádiva de poucos. Resolveu não contrariar e, com nojo, impôs a voz erguendo aquilo acima de sua cabeça. Depois riu achando que tudo ficaria numa boa, mas ela se mostrou chateada. Quando voltou para casa gargalhou diante do espelho. Quem em sã consciência poderia acreditar em num troço daquele? E foi então que uma descarga elétrica retirou as suas forças.”

******

– Danny? É você? Abra a porta ou vou dar-lhe uma surra que nunca mais vai esquecer. Danny!

Não podia acreditar no que vivenciava, começou a suar frio e ver sombras e sussurros brotarem das paredes que se comprimiam e rodavam. Tateou num torpor cego em vários lugares, mas a confusão em sua mente era maior. Parou com as duas mãos espalmadas sobre uma penteadeira antiga e sorriu para si, um riso demente, possuído, observando o seu rosto assustado refletido no espelho. Seus contornos tomavam um aspecto repulsivo. Seu nome era sussurrado por diversas vozes. À porta, algo rachava a madeira, talvez um taco de hóquei, ou um machado.

– Você queria isso, não é mesmo? - Aquele timbre não era humano.

Recobrou a consciência e procurou nos lençóis da cama, lembrava muito bem do que acontecia nas duas histórias e, por esse motivo tremia febril da cabeça aos pés e procurava de forma desesperada.

Ao som de um forte estanque na porta, atirou-se debaixo da cama e ouviu um riso assassino. Tentou ficar imóvel, mas o medo denunciava o paradeiro, pois os dentes tilintavam. Pedia repetidas vezes, como um mantra, para voltar ao início de tudo. Pés aproximaram-se lentamente no chão de madeira. O ar denso trazia os delírios de novo. Ouviu um golpe na parede destruindo algo e um chamado, cacos espatifaram pelo chão. Sentiu que aquele lugar queria tomar as suas forças, zumbidos quase lhe fazia gritar. O par de olhos diabólicos debaixo da cama fez mover-se para trás de modo automático e sem que percebesse, tocou-o mais uma vez.

*****

Remexeu em desespero sentindo-se afogado. Pensou que havia morrido, mas logo sentiu um calor úmido e ouviu vozes carinhosas e conhecidas. Estava embebido em um liquido gosmento, sem gosto ou sabor que entrava e saia de suas narinas. Batuques fortes eram ouvidos e teve medo de novamente ser aquele frenesi demoníaco. Era tudo tão apertado, escuro como se estivesse em um túnel. Agitou-se com violência e ouviu uma voz doce e feminina:

– Puxa! Hoje o nenê tá muito agitado!

Fez uma expressão de susto, pavor. Tateou ao redor, mas o que viu removeu sua paz por inteiro. As mãos adultas haviam dado espaço a minúsculas mãozinhas. Não podia conceber o que havia acontecido. Momentos de raiva e arrependimento invadiram sua mente. Histórias de literatura não podiam ser recriadas na vida real e agora aquilo era claro. A calma foi chegando à medida que percebeu mais uma chance de reescrever a sua. Calou-se e ouviu as batidas daquele coração junto da canção de ninar.

Levou o dedinho à boca enquanto uma voz masculina gritava feliz.

– Gol do Corinthians!!!!

Fechou os olhos e evitou qualquer outro desejo.

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Bem, acho que eu sou a única que não conseguiu esconder o amigo oculto (que horrível!). Mas, quem sabe, da próxima vez (ou seja, no ano que vem - haha!).

Maria Santino
Enviado por Maria Santino em 05/12/2014
Reeditado em 07/12/2014
Código do texto: T5059723
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