A DAMA DE NEGRO

Como tantos outros, aquele seria mais um sábado festivo. Os amigos, uns drinks, a balada e finalmente as mulheres. Noite perfeita. Tudo que um jovem com os hormônios latentes poderia sonhar.

Em velocidade moderada, seguia noite adentro tendo como companhia apenas as curvas da estrada por onde tantas outras vezes havia passado. O vidro aberto deixava entrar um pouco do aroma das flores do campo junto com a brisa morna do fim de tarde. Por ali era assim, um breve instante antes do cair da noite parecia haver a união entre dois mundos, tudo se torna um pouco turvo, certo é que muitas coisas acontece ante o olhar de quem nada percebe. Poucos têm a compreensão das nuanças do ocaso. Alheio a isso, cenários bucólicos se alternavam sem serem devidamente apreciados pelo distraído condutor.

Em seu caminho uma, outra curva. Após tantas, eis que os faróis, já acesos, revelam um vulto de mulher bem adiante.

Uma dama solitária andava despreocupada num lugar tão remoto, sua tranquilidade demonstrava um total desapego ao perigo ou mesmo a longa jornada que ainda deveria cumprir. Apesar da claridade, à medida que as horas fugissem novos desafios poderiam surgir.

Diminuiu ainda mais a velocidade.

Caminhava, ela como se nada mais houvesse no mundo, parecia deslizar graciosamente com passos joviais vencendo vagarosamente o negro do asfalto, suas mãos para traz tornava o quadro ainda mais delicado, quase um afresco renascentista.

Ao lado da linda moça parou. Seu semblante não demonstrava um pingo de cansaço. Cumprimentou e ofereceu carona. Grata, com um sorriso encantador aceitou a gentileza.

Curioso, tinha muitas perguntas a fazer, partiu em marcha lenta. Tanto encanto parecia embriagar seu discernimento, seus olhos brilhavam como os de uma criança numa loja de doces. Graças à luz da lua podia observar melhor o quão bela era sua companhia. Cabelos longos e soltos, totalmente negros como o vestido que trajava, uns tons dourados lhe davam ainda mais charme. Notava-se que não teria mais que uns vinte anos. Certamente iria também para alguma festa. Não tinha como saber, tinha outros pensamentos. O perfume dela era estonteante, seus olhos verdes contrastavam com os belos lábios carmim, sem duvida a mais linda mulher que um dia poderia conhecer, era a personagem viva de seus sonhos, seus ideais.

A conversa se tornou promissora, a maior conquista em seu vasto rol, ambos desejavam se divertir, estavam na mesma direção e o destino alcoviteiro providenciou tão inesperado encontro.

Faltando pouco para a entrada da cidade, ela quis subir a serra, tinha vontade de ir até o mirante curtir um pouco as luzes noturnas. Outras vezes ele já havia estado ali, sempre bem acompanhado. Era um local onde casais costumavam se amar.

Sem problemas quanto ao pequeno desvio. Não tinha ninguém a quem responder. Era um tanto romântico, apreciava a natureza, os imprevistos aqueciam ainda mais seu sangue latino.

No alto do monte parou ao lado de uma grande pedra, bem próximo da borda do abismo. Lá no fundo a cidade se mostrava ricamente iluminada, a lua muito clara contribuía com um toque especial.

Por instantes trocaram caricias no carro mesmo, era apenas o início de algo que seria maravilhoso, a noite convidava ao amor e somente o luar seria testemunha.

Não escondendo sua volúpia, não fazia questão alguma de descer. Consumaria seu desejo mesmo se sentindo um pouco desconfortável. Ela por outro lado desejava algo diferente.

Abriu a porta do passageiro e fugiu de seus carinhos. Ansioso foi a sua procura. Bem a beira do mirante se deteve enamorada com tanta beleza.

Durante a noite a cidade suaviza suas arestas, silenciosa enche-se de mistério.

Como antes, as mãos para traz, trançadas bem abaixo dos longos cabelos, seu corpo balançava no ritmo de alguns versos cantados por seus meigos lábios. Parecia atraída pela imensidão sob seus pés.

Aproximou-se calmamente, ficou a contemplar também a beleza das luzes no horizonte, parecia que as estrelas visitavam o solo, o mar de luzes se confundia sem o dia para separá-los, uma áurea sublime pairava no ar. Mais próximo, num abraço acolhedor, envolveu seu corpo, a mão direita repousou em seu ventre, a outra apertava carinhosamente seu busto. Sua boca como as de um poeta sussurrava belas palavras em seus ouvidos, mas o vento sorrateiro as roubava fazendo com que seu eco se perdesse por entre as nuvens.

Alheia a tudo, matinha seu olhar perdido em direção ao horizonte.

Não conseguiu se conter, puxou o corpo da jovem ao encontro do seu, trouxe novamente sua atenção para os desejos carnais. Um beijo tórrido e os dois se atiraram ao solo como se a vida fosse terminar naquele minuto. Uma grama fina cobria as pedras, amariam como dois animais ocultos pela escuridão.

Ao tentar se desfazer das roupas, ela sensualmente sentou-se sobre seu corpo, debruçando, deixando os rostos quase se tocarem. Os olhos se fitaram mutuamente. Quase sem liberdade de movimentos encantava-se ainda mais pela beleza da mulher.

Prestes a saciar seus desejos sentiu como se uma faca estivesse sendo cravada em suas costas. Uma dor insuportável percorreu todo seu corpo. Sentia seu sangue molhar o solo.

Sem saber o que acontecia, pode naquele momento testemunhar a transformação do lindo sorriso em algo aterrador. Os lábios vermelhos tornavam-se uma cavidade escura, circular, os dentes minúsculos se apresentavam em camadas sobrepostas, parecia à boca de algum verme pronto a grudar em sua presa, sua testa brilhava como a pele de uma serpente.

Num esforço sobrenatural movido pelo desespero conseguiu tirar a coisa de cima de si. Um pedaço da camisa foi junto, levou também um pouco de pele.

Tentou correr. Não entendia nada do que estava acontecendo. Abriu a porta do carro, sem saber como, ela invadiu pela outra porta que ainda estava aberta. Foi na direção oposta, seu desespero lhe dava energia.

Parecendo possuir asas, a outrora linda dama de negro flutuava por sobre o abismo, seu vestido assemelhava-se a uma nuvem escura confundindo-se com seus cabelos. Os longos e esqueléticos braços terminavam em garras afiadas onde antes havia os dedos. Aquela sombra maligna pairava acima de sua cabeça ocultando o brilho da lua, o vento soprava frio deixando a atmosfera ainda mais lúgubre, os olhos fantasmagóricos de um amarelo opaco era a única coisa que ainda possuía cor indo morrer nos fundos da orbitas.

Aquela noite de amor casual poderia ter sido a mais bela de sua vida, no entanto tornava-se extremamente macabra aumentando de forma sinistra seu desespero.

Sem muito que fazer, tentava em vão fugir. Não estava sendo caçado, era apenas parte da diversão, igual a um felino ela brincava com sua refeição. Como um enxame de gafanhotos, caiu vorazmente sobre ele que foi parar sobre as pedras salientes. Semelhante a gotas de orvalho o sangue pingava alimentando a relva.

Sua respiração ofegante, o suor em seu corpo, o sangue brotando de suas feridas e a noite zombando de sua desventura, tudo querendo aumentar seu infortúnio. Sua mente sabia, estava pronto a ser devorado.

Seu desespero o levou ao precipício. Como se desejasse retribuir o carinho, ela envolveu seu corpo num abraço letal. Uma das garras penetrou em seu ventre, outra quase tocou seu coração. Sua boca não falou de amor. Como uma sanguessuga grudou em seu pescoço, não queria sangue. Apenas drenou sua alma.

A dama de negro, a coletora de almas alimentou-se fartamente naquela noite para que nas seguintes pudesse vagar pelas estradas da vida, sempre em busca de jovens sonhadores de espíritos fortes que fossem capazes de aplacar sua sede.

Ao fim das buscas no dia seguinte, encontraram o jovem no fundo do mirante, no rosto uma expressão de horror.

Pobre coitado, ao ser atacado por lobos, desesperado não se deu conta do abismo, perdeu sua vida no fundo do precipício.

Acredite no que quiser, apenas tome cuidado com a pessoa que caminha mansamente sem temer perigo algum...

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 18/12/2014
Código do texto: T5074254
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