588-TERROR NA PRAIA

TERROR NA PRAIA

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A praia estendia-se, infinita. De um lado, o mar, que chegava em ondas não muito suaves, empurrando algas e arrastando a areia, num movimento sem fim de vai-e-vem. Do outro lado, o canavial acompanhava a orla. A manhã estava convidativa a uma boa caminhada, e as duas moças andavam com determinação.

Pareciam irmãs, ambas loiras, de cabelos escorridos sobre os ombros, os corpos ligeiramente bronzeados, brilhando ao sol pelo excesso de protetor solar. Que tinham a mesma idade, era evidente. Que tinham a mesma energia, idem. Abrigadas por chapéus de palha de abas largas, caminhavam a passos firmes, como se fosse a algum encontro com hora marcada. E que não eram da região, era fácil de notar.

Diana e Clarice aproveitavam os últimos dias das duas semanas que estavam em Fortaleza. Já tinha visitado todas as praias freqüentadas pelos turistas, tinham ido à Canoa Quebrada e Jericoaquara e agora se aventuravam àquela praia extensa e deserta.

—Nunca vi uma extensão de praia tão grande e... tão deserta, comentou Diana.

—É porque está cercada cercou. Não gostam de turistas por aqui. Você viu as pedras e o arame farpado lá no início? É pra nenhum turista entrar por aqui. — Clarice era mais observadora e tinha explicação para tudo.

Já haviam caminhado quase uma hora, quando pararam pra descansar, à sombra de uma meia dúzia de coqueiros que surgira como mancha verde sobre a praia.

Diana olhou para um lado e para outro. Sentia-se um tanto solitária ante a vastidão de areia, mar aberto e céu profundo.

—Engraçado... tenho a impressão de que estamos sendo observadas, disse ela.

—Eu também. Será que existem guardas escondidos no canavial? — Indagou Clarice, olhando na direção da plantação, sem nada ver.

—Acho bom a gente voltar. Mesmo porque já estou ficando com fome, falou Diana.

Descansada pela para de alguns minutos, as duas retomaram a caminhada, agora na direção contrária.

—Engraçado... Tenho certeza de que existe gente ali dentro do canavial, disse Clarice.

—Você viu alguma coisa?

—De vez em quando tem um movimento no meio das plantas que não é apenas do vento, não.

Diana passou a prestar atenção. Daí um pouco, falou:

—Olhe! Ali parece que tem gente mesmo. Ou algum bicho andando no meio.

—Talvez algum cavalo, disse Clarice, procurando minimizar a preocupação —ou o medo? —que já se ia instalando em sua mente.

Sem se dar conta nem combinar, começaram a andar mais depressa.

Diana viu uma sobra escura:

—Lá, Clarice, tá vendo? Tem alguma coisa andando no meio do canavial. Cavalo ou coisa parecida.

—É, tou vendo, sim. Mas num tem perigo.

—Vamos correr? — propôs Diana. — Assim, chegamos mais depressa.

E puseram-se a correr. O local por onde tinham entrado na praia e para onde se dirigiam estava a mais de um quilômetro. De repente, o sol começou a ficar mais quente, a areia ficou pesada e ambos sentiram-se cansadas.

Foi quando a sombra negra pulou para fora do canavial, na forma de um grande cachorro preto. Veio direto atrás das duas.

—Nossa Senhora! Ele vem atrás de nós! Corre, Clarice!

—Tou cansada, respondeu a amiga. Mesmo assim, continuou correndo pela areia.

Procuraram correr onde a água do mar tornava a areia mais firme. O enorme animal, mais parecido com um bezerro, vinha correndo rente ao canavial.

—Se ele não vier pra dentro da água, melhor. A gente nada.

Mais alguns metros de corrida, e eis que apareceram, atrás do cão, dois rapazes. As meninas ouviram os gritos de ambos, instigando o cachorro.

—Isc! Isc! — dizia um.

—Pega! — Comandava outro.

O pavor tomou conta das duas moças.

—Nossa, tem dois garotos atiçando o bicho, gritou Diana.

—Corre e num olha pra trás. Se ele chegar perto, entramos no mar.

Corriam espadanando a água com os pés. Ainda estavam distantes do local onde a praia terminava e por certo onde a perseguição terminaria, quando Clarice avistou uma pequena casa na beirada do canavial.

—Veja, lá naquela entrada, tem uma casinha. Vamos pra lá. — Arfando, Clarice, sem parar de correr, mostrou a casinha, coberta de palha, e com paredes escuras, que passara despercebida pelas duas, no caminho da ida.

—Mas, se a gente for pra lá, o cachorro nos alcança. — O desespero já se instalada em Diana.

—Temos de tentar. É a nossa salvação. — Pela voz, Clarice estava aterrorizada. Contudo, tomou a iniciativa e mudou de direção, correndo com dificuldade, sobre o areal frouxo, na direção da habitação.

O cão preto vinha rente ao canavial, e corria num ritmo constante. Parecia certo de que alcançaria a presa, no final da carreira. Os dois garotões corriam atrás, também sem pressa.

—Pega! Pega!

Diana seguiu Clarice na carreira desabalada em direção à choupana.

Como uma miragem, a pequena habitação parecia afastar-se, à medida que as duas moças se aproximavam. Clarice, à frente, olha para o lado, de onde o negro cão vinha em corrida constante. Pela frente, ainda uns duzentos metros a separavam da cabana, e o cachorro estava mais perto.

Ai, não vou conseguir, pensou. E virando-se, gritou para a amiga, que vinha nos seus calcanhares.

—Vamos, vai dar tempo. A gente ta perto!

—Não vai dar, não vai dar. — Ofegante, Diana gritava, mas os sons que saiam de sua boca ofegante não eram ouvidos pela amiga.

A distância da casa ia diminuindo, mas também diminuía a distância do cachorro e dos dois rapazes.

—Socorro! — gritou Clarice.

—Tem gente aí? — gritou Diana, já sem fôlego.

Clarice tropeçou a poucos paços do casebre e caiu, sem ver um vulto que assomava à porta. Um homem alto, usando apenas calças rasgadas à altura do joelho.

Diana viu com nitidez o homem, que trazia na mão direita um chuço ou bambu com ponta, de uns quatro metros. Ele saiu correndo na direção do cachorro. Diana, aliviada pelo aparecimento do homem, deixou-se cair, exausta, ao lado de Clarice e viu uma cena indescritível.

O homem correu com determinação na direção do enorme cachorro, agora bem próximo das moças. Com destreza incrível, enfiou o chuço na boca do cachorro, no ar, no salto final para abocanhar Clarice.

O impacto foi terrível. Apanhado no ar, no salto final, o cão não teve como desviar da ponta aguda do chuço, que entrou pela boca e varou o pescoço. A ponta ensangüentada apareceu de um lado, e o animal tombou sobre a areia. Apenas alguns centímetros separavam a boca ensangüentada do animal abatido da perna de Clarice, onde o canzarrão a teria apanhado, não fosse a ação do desconhecido.

A areia foi ficando vermelha com o sangue do animal. Clarice e Diana, atônicas e cansadas, assistiram a morte do bicho. O dois rapazes que vinha atrás do cão, estancaram ao ver o homem avançar com o chuço. Surpresos e, de certa forma, horrorizados, com a morte do cão.

O homem manobrou o chuço com agilidade, puxando-o da cabeça do animal e sem titubear, avançou na direção dos dois rapazes, gritando:

— Seus filhos da puta! Agora vou acabar com vocês!

Os dois, apesar de muito espantados, saíram correndo na direção de onde tinham vindo, perseguido pelo homem com o chuço de ponta ensangüentada, por um bom trecho.

As duas moças levantaram-se, limpando-se da areia que grudava nos seus corpos suados. Afastaram-se um pouco do local onde o cachorro ainda estertorava.

O homem do chuço voltou. Apesar de toda a agitação e do terror dos momentos anteriores, vinha sorrindo. Ao chegar perto de Diana e Clarice, perguntou-lhes com delicadeza:

— Ocêis num tão machucada?

As moças não sabiam se sorriam com o homem ou se ficavam em guarda contra outro perigo desconhecido.

— Não. Estamos cansadas, mas dá pra ir embora assim mesmo.

O estranho depositou o chuço junto ao corpo imóvel do enorme cachorro.

—Se ele pegasse uma de vocês, ai ser um estrago, falou o homem, — Mas agora o perigo passou. Vou buscar uma água pra vocêis.

Diana e Clarice entreolharam-se. Estavam a ponto de sair correndo, quando no vão da porta apareceu uma mulher, com rugas na face e ar tranquilo no rosto idoso, que disse ao homem.

—Ô, Zeferino, manda as moça entrá. Vou prepara um refresco para elas.

—Ta bão, mãe, respondeu o homem, agora identificado pela mulher como Zeferino. E falando com Diana e Clarice:

—Então vão entrando, a casa é de oceis.

Aliviadas, as moças entraram na rústica morada de paredes de paus roliços e coberta de folhas de coqueiro. Sentaram-se em tocos banquinhos e aguardaram os refrescos. Enquanto tomavam, conversaram com o dois, filho e mãe, Zeferino e Dona Tiana.

—A gente mora aqui purquê o dono da prantação deixa. A mãe foi impregada da muié do patrão durante muitos anos. Aqueles dois minino que tava com o cão são fio do dono, e eles mais aquele cachorrão custuma passar carreira nas pessoa que anda aqui na praia. Eu já tava de oio neles, sabia que, mais dia menos dia, isto ia acontecê. E virando para a mãe, disse:

—Agora a sinhora já pode queimá o chuço, qui num tem mais serventia pra nóis.

—Acho qui não. Aqueles dois pode vortá cum otros cachorro, ce sabe que eles tem otros na fazenda.

As duas moças se entreolharam.

—Melhor a gente ir, já ta ficando tarde. — Clarice Levantou-se e estendeu as mãos. Diana também, despediu-se e ambas saíram para a claridade do sol, da praia e do mar.

Caminharam muito tempo em silêncio, antes de sentirem-se aliviadas.

—Praia deserta, nunca mais, disse uma.

—Nunca mais mesmo, disse a outra.

ANTONIO GOBBO

Belo Horizonte, 30 de janeiro de 2010

Conto # 588 da série 1.OOO HISTÓRIAS

Os contos da Série 1.OOO HISTÓRIAS São Arquivados Na

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/12/2014
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