Sonhos em Cena - Meu amigo oculto - DTRL 2014

A festa de aniversário preparada pelo marido alegrou Kátia em sua chegada do trabalho. Tudo bem que uma meia dúzia de amigos com gorro de papelão assoprando língua-de-sogra, uma faixa na parede com os dizeres “Parabéns” e “Feliz Aniversário” e um bolo de chantili que ela tanto gostava – e uma vela em cima que não deixava claro sua idade – era algo bem modesto, mas o carinho estava lá, para quem quisesse ver.

Foi uma noite muito divertida, isso ela não negaria. Riram, beberam cerveja e houve seguidas tentativas de cantar o melhor possível no karaokê. Mas depois que os convidados foram embora, Kátia se enfurnou no quartinho dos fundos onde ela guardava objetos quebrados, brinquedos velhos e suas lembranças. Ela olhava para os seus cartazes de filmes antigos, sua velha máquina fotográfica que havia pertencido ao avô e uma coleção considerável de fitas k7, com uma melancolia que avançava sobre ela com a força da maré.

Mais um ano se passou e o sonho de infância de se tornar cineasta parecia mais morto, deixado para trás como um cadáver na estrada, sobrando em seu lugar o papel resignado da esposa dedicada. Olhando para seu patrimônio cinéfilo, ela se perguntava como deixou isso acontecer. Como havia deixado se acomodar desse jeito? Logo ela, de temperamento que na juventude beirava ao indomável, que não levava desaforo para casa e que sonhava em percorrer o país de ponta a ponta de carro.

Ficou pensando em que momento tinha desistido de seu sonho. Talvez depois de tanto ouvir dos mais velhos que isso não era possível, que isso não era “coisa de menina”, e que era melhor arranjar outra forma de viver. “Você pode ser escritora” a tentavam persuadir. “Não gosto de escrever” ela afirmava. E não gostava mesmo. Aliás, não se achava com talento para isso.

O que ela queria mesmo era trabalhar com atores, a emoção do set de gravação. Ir ao cinema e, em uma discreta olhada para os lados, ver as reações no semblante dos espectadores. Suas expressões de amor, surpresa e medo, os olhos brilhando ao acompanhar sua obra, o que ela não teria se apenas escrevesse livros.

Para conseguir isso, ela estava disposta a sair da cidade, do país se fosse preciso; acampar na porta de algum estúdio, mas então veio o namoro, a maternidade e depois – como não poderia deixar de ser – o casamento. Assim, o sonho se tornou uma fantasia de infância abandonada, mas não esquecida completamente, adiada dia após dia, até se tornar como aqueles cartazes e fitas: uma relíquia empoeirada, uma triste lembrança daquilo que poderia ser, mas não foi.

- Com licença – Mateus a observou da porta, com cuidado para não ser invasivo. Kátia se virou. Estava tão compenetrada que não ouviu o marido bater na porta – Está tudo bem?

- Está. Eu estava só... Bem, tenho que limpar esse quarto qualquer dia desses – ela olhou para o marido. Seria razoável culpá-lo pelo seu fracasso? Qual parcela de culpa ele poderia ter? Ela desconsiderou rapidamente o pensamento. Mateus podia e deveria ser mais sagaz e ambicioso na opinião dela, mas sempre deu o seu melhor para não deixar nada faltar à mulher e ao filho.

- Venha – ele estendeu a mão – O dia foi longo hoje. Precisamos descansar.

Kátia pegou sua mão e o acompanhou ao quarto. Deitou na cama exaurida, estava realmente cansada.

- O que pediu? – perguntou Mateus, deitado ao lado. Kátia não se virou, sequer abriu os olhos.

- Como?

- Quando assoprou as velas. O que pediu?

- Não vale falar – ela respondeu, antes de adormecer sem ouvir o “que seus sonhos se realizem” do marido.

O dia seguinte foi como todos os outros. Ela levou o filho para a escola, depois seguiu para seu trabalho na loja e, então, no final da tarde voltou para casa preparar um lanche para o Júnior, enquanto esperava o marido chegar do escritório de contabilidade em que trabalhava.

Não havia promessas de algo fora do comum, até que, à noite, tranquilamente Kátia abriu o computador, acessou sua conta para conferir o quanto poderia tirar para comprar uma nova máquina de lavar e ficou sem voz.

Estupefata e inerte na cadeira, ela piscou os olhos, contou cada número e quando teve certeza do que via, finalmente gritou.

- Mateus! – levantou e saiu praticamente trombando nos móveis até chegar à sala.

- O que foi? – o marido interrompeu a leitura do jornal.

- Vem ver nossa conta – ela disse – Deve haver algum erro.

- Por quê? Está faltando alguma coisa?

- Pelo contrário. Vem logo.

Mateus se levantou e acompanhou a mulher até o computador e sua reação ao ver a seqüência impressionante de números não foi muito diferente da de Kátia.

- De onde veio esse dinheiro? – perguntou, contando os algarismos. Não estava errado ou tendo uma ilusão. Eram R$ 100.000.000 em dinheiro a mais na conta do casal.

- Não sei. Eu só abri agora a pouco e o vi. O que pode ser?

Mateus atualizou a página e conferiu todos os dados. Nada diferente.

- Esse dinheiro não pode ser nosso. De onde isso veio?

- Será uma brincadeira?

- Quem teria autorização do banco para alterar nossa conta só para curtir com nossa cara?

- Talvez estejamos sendo usados para um crime.

- Como laranjas, você quer dizer?

Kátia estremeceu.

- É possível.

- Mãe! – Júnior apareceu na porta com um ursinho a tira colo, esfregando os olhos.

- Pode ir por ele na cama – disse Mateus – Vou telefonar para o banco e perguntar o que aconteceu.

Kátia pegou o menino e o levou para o quarto, deixando Mateus conferir o que estava acontecendo. Tinha a impressão de que se ficasse ao pé dele, mais atrapalharia que ajudaria. Ela tentou cantar alguma coisa, mas seus ouvidos estavam acompanhando a baixa conversação do marido ao telefone na sala, não a deixando se concentrar em nenhuma canção de ninar. Ainda assim a criança logo adormeceu e ela pode finalmente ir para a sala, onde encontrou Mateus sentado, pensativo a encarar a parede.

- E então? – ela se aproximou – O banco disse do que se trata esse dinheiro?

- Uma herança – Mateus falou – É uma herança.

- Uma herança? Sua?

- Sim. Quero dizer, enviaram para mim, mas não deveria ser para mim.

- Como?

- É uma história complicada – Mateus olhou para os olhos cheios de dúvida da mulher – Eu tinha um padrinho que era rico, como eu já contei uma vez, com quem não tinha mais contato há tempos. Ele morreu dias atrás e seus advogados me pediram meus dados para receber alguma coisa. Eu enviei, mas não levei a sério. Achei que seria um processo moroso e não contei para não levantar muitas expectativas. Mas agora eu soube que eu recebi a fortuna inteira dele, que é muito maior do que se pensava.

Kátia estava zonza, não sabia se ficava eufórica ou assustada.

- Isso não é tudo – Mateus continuou – Houve claramente um engano.

- Por quê?

- Não sou o herdeiro legítimo. Meu padrinho tem um filho bastardo. Seu único filho. Poucos sabem disso, porque ele foi enviado para longe quando ainda éramos crianças. A mãe dele que era empregada do meu padrinho era amiga da minha mãe e ela me contou. Fui orientado a não falar disso por respeito às partes envolvidas, principalmente a mãe dele, agora eu sei que essa história tem permanecido em segredo por todo esse tempo.

- Mas... O que você vai fazer?

- O certo – Mateus se levantou, resignado – Vou contar a verdade e entrar em contato com o verdadeiro herdeiro. Esse dinheiro não é nosso.

- Não vai ser fácil... Bem, estou me referindo a trazer essa história à tona. Sabe? Sobre filho fruto de caso extraconjugal com empregada.

- Nem me fale, mas não tenho outra escolha.

Kátia chegou mais perto do marido.

- Não seria melhor você pensar mais um pouco como vai expor tudo isso? Não é bom fazer tudo no calor do momento.

- Sim... Sim. Você tem razão – Mateus passou as mãos no rosto – Preciso de um tempo.

Os dois praticamente passaram a noite em claro. Kátia podia sentir a tensão do marido ao seu lado na cama. Na manhã seguinte, ela levantou quando Mateus já havia saído e tentou seguir sua rotina de praxe, ignorando ou pensando o menos possível na fortuna que estava em sua conta e no problema que agora tinham em mãos, mas ele estava na mente dela, aparecendo de vez em quando como um peixe na superfície de um lago raso, martelava como as batidas de um coração ou o relógio de uma bomba. “Com esse dinheiro...” Kátia se flagrava a pensar involuntariamente “Não haveria problemas a ser resolvidos. Não para nós”. O dilema perpassou o dia inteiro e mesma uma parte da noite, depois que ela chegou em casa e ficou esperando o marido, se segurando para não ligar para ele e o perturbar no trabalho com aquele problema, perguntando o que tinha resolvido, mas não importava o que Mateus tinha decido, ele teria todo o seu apoio – não era mesmo?

Kátia acabou adormecendo cedo e não viu o esposo chegar, percebendo que havia sucumbido ao cansaço somente na manhã seguinte. Ela se desvencilhou parcialmente do cobertor e levantou um pouco a cabeça para ver as horas no criado mudo. Pelo menos não estava atrasada para o trabalho. Tateou ao lado, mas Mateus já tinha se levantado. Ela se deitou de rosto para cima, podia ouvir as gotas de uma chuva fina contra o telhado e o vidro da janela.

- Bom dia – ouviu uma voz masculina desconhecida.

Kátia se levantou de sobressalto e se pôs sentada na cama. O homem de bigode usando um moletom estava sentado na beirada da cama, olhando serenamente para ela. Kátia perguntaria quem era, mas estava claro de quem se tratava apesar de ela custar a acreditar em seus próprios olhos.

- Desculpe. Traria café para você na cama se soubesse do que gosta de manhã.

- Quem... Quem...

- Quem sou eu? Ora, não está me reconhecendo? Sou eu. Gary Oldman.

- Não pode ser...

- Por que não?

- Como?... O que faz aqui?

- Bem, por que um ator procuraria uma cineasta? – Oldman perguntou.

Kátia permaneceu calada e de olhos arregalados.

- Vejo que precisa de um café. Vou pegar – Oldman levantou e quando bateu a porta ao sair, Kátia abriu os olhos, se vendo novamente entre os lençóis.

- Foi um sonho – disse, aliviada e desconcertada. Olhou pela janela e viu que a chuva já estava passando.

Essa história do dinheiro estava com certeza mexendo com seus nervos. Imagina se dos atores que ela havia assistido praticamente a todos os filmes e guardado fotos e cartazes o seu favorito estaria ali, em sua casa. Certamente era uma ilusão provocada pela preocupação pelo dinheiro, a não ser que o próprio dinheiro fosse outra ilusão.

Só para se certificar foi ao computador e abriu a conta. O dinheiro estava lá, com sua longa seqüência de dígitos. Com essa fortuna, daria para fazer muitas coisas, inclusive realizar sonhos perdidos de infância. A tentação do pensamento provocou um aperto doloroso em seu peito e um desejo insano de falar com o marido, de saber o que ele estava pensando ou fazendo. Sem poder resistir, e sabendo que não se concentraria no trabalho se não falasse com ele, pegou o telefone e ligou.

- Alô? Mateus?

- Oi. Kátia? O que foi?

- Você já falou com alguém sobre a herança?

- Não. Telefonarei para os advogados do meu padrinho hoje.

- Não! – Kátia por pouco não derrubou o telefone – Não faça nada ainda. Falarei com você em casa.

- Mas...

- Tchau! – ela desligou o telefone com uma rispidez que a surpreendeu a si mesmo. O que afinal estava acontecendo? Foi para o trabalho, mas não conseguiu tirar da cabeça o sonho, o dinheiro, e as possíveis conseqüências caso ficasse com este último. Qual o problema disso? Não tinha ido deliberadamente para a conta deles?

Ao final do expediente, que com seu atual estado de nervos pareceu uma vida inteira, ela foi correndo para casa. Preparou um lanche qualquer para o filho que depois subiu para o quarto, e então foi para a sala esperar o marido como uma sentinela.

- Você demorou – disse para Mateus, depois que ele chegou.

- Tive que pegar um desvio. O trânsito não estava nada bom.

- Precisamos falar sobre o dinheiro.

- Sim. Você tem razão. Vou entrar em contato com os responsáveis pela administração do patrimônio do meu padrinho e expor a verdade.

- Então é isso? Vai devolver?

- É... Espere um pouco. Não me diga que...

- Não diga o quê?

- Kátia, esse dinheiro não é nosso. Já imaginou a confusão que vai gerar se ficarmos com ele. Mais cedo ou mais tarde, a verdade viria à tona e como sairíamos dessa? Passaríamos por usurpadores. Não vale a pena.

Kátia mordeu levemente o lábio e suas mãos apertaram o tecido do vestido. No fundo admitia que o marido estava certo, mas isso só tornava o que sentia – e queria – ainda pior. Não conseguia conter a vergonha pelo que desejava pedir, e certa frustração pelo que o marido estava disposto a fazer. A confusão de sentimentos girava em seu âmago como em um caldeirão.

- Eu vou... Vou preparar o jantar – ela se virou e saiu da sala em direção a cozinha como se o assunto fosse doloroso para ela. Foi logo a pia e passou a lavar o restante da louça, querendo ocupar a cabeça e não se torturar com aquilo. Kátia sentiu as mãos do marido em seus ombros, e sua voz solícita e preocupada atrás.

- Vai ficar tudo bem. Prometo. Amanhã telefonarei para os advogados do meu padrinho e explicarei tudo, nem que eu tire a manhã de folga para isso. Você está bem?

Kátia assentiu, sem expor sua voz embargada e seguiu enxaguando o mesmo prato mais do que seria normal. Mateus sabia que forçá-la nesse momento tornaria tudo pior, seria melhor dar um tempo para ela. Depois que o marido saiu para o quarto, deixando-a na cozinha a guardar os pratos lavados e por as panelas no fogão, Kátia parou um instante, com as mãos na beirada da pia, e deixou as lágrimas verterem por seu rosto.

- Você sabe, não sabe?

Ela se virou, e de repente parou de sentir as pernas. Gary Oldman estava encostado à mesa, de braços cruzados, o charme britânico característico no jeito de falar.

- Você!

- Você sabe por que eu estou aqui, não sabe? Por que um ator procuraria uma cineasta a não ser para trabalhar com ela?

- Eu não sou uma cineasta.

- Mas pode ser – Oldman a olhou fixamente através dos óculos – Você tem talento. Só precisa dos contatos certos e... – fez uma pausa sugestiva – Uma ajuda para custos diversos.

- O dinheiro.

- Isso mesmo.

- Ele não é nosso. Meu marido não é o herdeiro legítimo.

- Detalhes, moça. Ninguém precisa saber disso.

- O meu marido... Ele está determinado a contar a verdade. Ele vai contar que há um herdeiro.

- Sim. É verdade... – Oldman considerou aquilo – Ele pode devolver a herança, e esse herdeiro pode até se tornar amigo de vocês. Ele pode ajudar a pagar uma conta de água ou luz, pode pagar umas férias em Orlando para sua família, ou nada disso. Ou ainda você pode ficar com tudo e fazer da fortuna o que bem entender. Pode dar um futuro brilhante para seu filho e para si mesma. A vida de viúva rica não é tão difícil assim.

- Quê? – Kátia engasgou com a sugestão.

- Ele está entre você e seu sonho, Kátia. Pense nisso. Ele está entre você e eu.

- Kátia!

A mulher desviou a atenção para o marido que adentrava agoniado na cozinha, um instante depois Oldman não estava mais no lugar.

- Cuidado, amor – ele desligou o fogo enquanto uma pequena coluna de fumaça saia da panela – O que houve?

- Desculpe... Eu me distraí.

Mateus olhou em volta.

- Você falava sozinha?

- Não. Estava pensando alto.

- É – Mateus avaliou o estado da panela depois que a pôs na pia com uma camada negra em baixo – Nosso jantar já era. Pelo menos boa parte dele.

- Não sei o que deu em mim – Kátia puxou uma cadeira da mesa e se sentou, apoiando a cabeça na mão – Ultimamente não estou nos meus melhores dias.

- Essa história do meu padrinho tem sido bastante desgastante para nós dois. Mas não precisa se preocupar. Começarei a resolver tudo amanhã cedinho. Prometo.

- Mateus – Kátia olhou para ele de repente, como se algo em sua cabeça clareasse no momento – Por que não vamos ao cinema?

- Quando?

- Hoje. Você tem razão, essa história nos tem dado muita dor de cabeça e você sabe como eu gosto de ir ao cinema. Vai ser bom para nos distrair e aproveitamos para jantar fora, já que nossa jantar de casa literalmente virou cinzas.

- Mas e o Júnior?

- Chamamos a babá dele. Ela pode fazer uma pequena refeição para os dois, ou pedir uma pizza – Kátia pareceu tomada de uma animação, ou uma agitação de outra ordem. Era difícil dizer com certeza.

Mateus pensou um pouco. Depois do dia de trabalho e do trânsito, não estava muito disposto a sair à noite, mas parecia importante para a mulher.

- Está bem... Arrume essa bagunça. Eu vou tomar um banho rápido.

Mateus saiu para o banheiro do quarto do casal, enquanto Kátia permaneceu na cozinha por mais uns minutos, jogando fora o jantar queimado e lavando a louça. Ao terminar, ela foi ao quarto, abrindo a porta do banheiro que o marido havia deixado aberta e entrou discretamente. Ele estava atrás da cortina do Box, mergulhado em vapor da água quente e assobiando uma canção qualquer de Bon Jovi.

Kátia se aproximou devagar. Com uma trilha de suspense apropriada e uma faca, tudo estaria acabado no maior estilo do grande Alfred Hitchcock. Ela somente precisava ter coragem. Coragem e sangue frio. Mas acabou recuando. “O que estou fazendo?” pensou, chegando a ficar nauseada. Deu passos para trás e em uma rápida olhada para o espelho, viu o reflexo de Oldman ao seu lado, olhando para ela como se não tivesse qualquer dúvida. “Não adianta fingir, Kátia. É isso o que você deseja. Você sabe muito bem o que quer e há apenas uma maneira de conseguir”.

- Cala a boca!

- Kátia? – Mateus pôs o rosto ensaboado para fora da cortina do Box – É você?

- Sim. É... – ela hesitou – Vim só lavar o rosto. Pode continuar.

- Ah... Já estou saindo.

- Tudo bem – Kátia deu meia volta e tratou de ir para a sala para telefonar para a babá, rezando para que ela esteja disponível para esta noite. Felizmente estava e disse que em menos de meia hora chegaria.

- Mamãe e papai vão sair – disse pondo o pijama no filho – Obedeça à tia quando ela chegar. Não vamos demorar.

- Para onde vocês vão? – perguntou o garoto.

- Para o cinema. Na próxima vez te levamos. Vá para a cama cedo. Quando chegar venho te ver no quarto.

Depois que vestiu o filho, Kátia foi tomar banho, demorando-se pouco debaixo do chuveiro, sabendo da pressa do marido esperando na sala.

Na hora de escolher o vestido, preferiu um azul escuro longo e não muito decotado, perfeito com aquele colar de pérolas que ganhou da mãe no natal passado. Geralmente não se preparava tão bem para uma simples ida ao cinema, preferindo guardar o vestido, as jóias e o perfume para ocasiões de mais classe, mas essa noite pedia isso. Pedia o seu melhor.

- Você está uma estrela! – Gary Oldman apareceu atrás de Kátia, enquanto ela colocava os brincos – Deslumbrante!

Com quem ele se parecia no momento? Não tinha o figurino e o carisma de Sirius Black, nem mesmo o pragmatismo do comissário Gordon de Batman. Talvez se parecesse com um personagem mais antigo. Estava com o cabelo ligeiramente penteado para o lado, usando um terno creme por cima de uma camisa clara. Parecia contente, com as mãos nos bolsos da calça e exibindo um sorriso pouco contido.

- Você não me deixará em paz, não é? – perguntou Kátia, olhando para ele através do reflexo no espelho – Você não me deixará mais em paz se eu não fizer isso.

Oldman alargou o sorriso, confirmando. Com dois passos se aproximou dela, curvando-se um pouco perto de seu ombro como se quisesse confidenciar um segredo, e disse uma única palavra:

- Jamais!

Alguém bateu na porta e Mateus a abriu, entrando no quarto.

- Então, querida? Está pronta para o cinema?

Kátia se olhou uma última vez no espelho, terminando de pentear os cabelos. Em que momento aquilo que estava em sua mente surgiu? Quando admitiu o que queria e tomou a decisão? Talvez sempre estivesse lá.

- Sim, amor – disse com extrema naturalidade – Estou pronta para o cinema.

* * *

Jornal Gazeta, 18 de novembro.

Essa semana o país se surpreendeu e se comoveu com o que começa a ser chamado de “O incrível caso da viuvinha”, a impressionante história estampada na capa dos principais jornais da mulher acometida por uma benção e uma tragédia dois dias depois do seu aniversário. Kátia Silva recebeu uma herança milionária do padrinho do seu marido e na noite seguinte, saindo para o cinema, seu companheiro acabou sendo morto em uma tentativa de assalto em um beco perto do metrô. O assassino não foi encontrado. “A morte de Mateus tem sido muito difícil para mim” ela anunciou com exclusividade para nossos repórteres “Mas sei que esteja hoje estiver, ele está tranqüilo sabendo que eu e Júnior, nosso filho, não estamos desamparados, além do mais muitas pessoas nos têm dado conforto nesse momento”. Perguntada sobre seus planos para o futuro agora que está milionária, ela respondeu “Pretendo continuar próxima de meu filho e se possível estudar cinema. Sempre fui muito fã da sétima arte e creio que Mateus ficaria feliz se eu seguisse com esse sonho antigo”.

Com uma história digna de filme como essa, não há motivos para duvidar que uma obra sua esteja em cartaz nos próximos anos.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 20/12/2014
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