Apenas um velho, oras!

No antigo vilarejo onde nasci, Caburé, distante 230 km da capital, havia um senhor de longeva idade que morava em uma casa tão velha quanto ele no alto do morro. Ninguém sabia direito quem ele era, ou quando chegara à vila.

Meus dois melhores amigos, Francisco e Ricardo, e eu resolvemos perguntar aos moradores mais antigos quando ele havia chegado. Mas ninguém se lembrava de nada sobre a vinda do ancião, a quem todos chamavam de Capitão Jack.

Até D. Severina, a parteira mais velha e mais fofoqueira da região, dizia que ele estava na vila desde que ela era pequena. E, quando percebeu que nos tinha como uma pequena plateia, desandou a contar histórias.

Disse ela que o senhor era um rico capitão que, em suas muitas idas e vindas pelos oceanos, aprendera todo tipo de bruxaria. E jurou a nós de pé junto que o bruxo velho tinha na sala de estar, sobre uma mesa, duas garrafas de vidro. Cada garrafa tinha areia colorida que a enchia até a metade e um pequeno chumbinho.

Vez ou outra o velho conversa com as garrafas, apelidadas Cap. Franz e Ritinha. E mandava ao Inferno a alma da santa mãezinha dela se as garrafas não respondiam, ao som do chumbo tilintando.

Ricardo logo sugeriu que fôssemos à casa do velho, de noite, investigar. Sabíamos, eu e Chiquinho, que ele estava fascinado pelo tesouro do velho, fonte de cobiça e desgraça. Indagamos sobre o velho, que poderia causar algum problema. Com um sorriso estranho ele replicou: "É apenas um velho, oras!"

De qualquer forma, para que não se zangasse, resolvemos fazer o que ele queria, marcando para a próxima lua cheia, quando tudo estaria claro e fácil de ver. Após reclamar pela distância, e ver-nos irredutíveis, ele aceitou a data.

Aquela manhã de março amanheceu chuvosa. A chuva fria e gélida causou arrepios em mim e permaneceu até o ocaso. Foi quando as nuvens desceram, causando uma enorme névoa na região.

Ficou dito o seguinte: Chiquinho o iria à casa do velho. Bateria à porta e conversaria com ele enquanto Ricardo entrava pelos fundos, para sondar a casa do ancião em busca de um "tesouro perdido". Enquanto que eu, por ser o único que tinha carro, ficaria em uma rua deserta, no fundo da propriedade, esperando eles.

Eram dez horas quanto puseram o plano em prática. Do lugar onde estava eu mal podia vê-los, muito menos ouví-los, mas observei a silhueta delgada do Chiquinho entrecortada à luz do lampião. Eles entraram e eu, sozinho, comecei a longa vigília.

Meia-noite e eles ainda não haviam chegado. Uma da manhã e eu pensei ter ouvido um som vindo da casa. Parecia um lamúrio antigo, como se penasse todas as dores do mundo.

Assim como chegaram se foram as duas horas. Comecei a cogitar a id ia de eles terem matado o velho e, por isso, estarem procurando um jeito de resolver o mesmo.

Três da manhã o primeiro galo cantou. Meia hora depois eu vi a porta dos fundos abrir. Era o velho, e estava parado na porta, olhando para o nada, como se procurasse algo ou alguém. Do lugar onde eu estava não teria como ele me ver, a menos que ele não fosse hum...

Não acreditei. O Capitão estava olhando em minha direção! E pior: Estava fazendo gestos com o dedo, querendo que eu fosse até ele. Foi quando, por algum motivo, meu corpo começou a agir sozinho, levantando-se e seguindo-o, contra a minha vontade, e ia sem pestanejar, sem reclamar com um cheiro que lembrava o açougue do meu pai, mesmo quando a sombra alta e velha na soleira da porta se afastou, permitindo que eu visse os corpos desfalecidos dos meus amigos estirados no chão, e, ao ver minha cara de pânico, se permitiu um breve sorriso sádico.

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Até hoje ninguém em Caburé conseguiu entender aquele trágico incidente perto do morro do Capitão. A história passou de pai a filho e, embora sofresse alterações com o tempo, sempre relatava o básico:

"Três jovens que, talvez por uma mulher ou por dinheiro, ninguém realmente sabia, resolveram se encontrar num lugar deserto e se suicidarem. Dois tiveram pernas e braços arrancados enquanto que o terceiro, mais velho, se contentou em arrancar os olhos, em algumas versões para não ver o que fizera aos amigos, e extirpar a própria vida com uma facada na cabeça."

A única pessoa que não se importou com o evento foi o Cap. Jack. Os pouquíssimos moradores que tiveram a coragem de perguntar qual a opinião dele sobre os assassinatos na porta da casa dele obtiveram a seguinte resposta enigmática: "Não tenho opinião... Se eles caíram na besteira de procurar um modo de morrer, quem sou eu pra reclamar? Sou apenas um velho, oras!"