Balão Prateado DTRL 20

Existe uma lenda urbana. "Carlos sem face, Carlos do purgatório ou Carlos sem alma", esses foram alguns dos nomes dados à essa estória. Eu lhe contaria muitas versões, leitor. Mas vocês mesmo sabem que, a partir da bíblia, todas estórias tornaram-se polissêmicas. Não há originalidade alguma em narrar fatos. Cada narrativa ganha uma nova versão ao ser contada. Me chamariam de mentiroso, sei lá. Não me julguem por ter bebido algumas cervejas antes de conhecer essa estória, cervejas me deixam mais sóbrio do que comida.

Na verdade, Carlos possuia um rosto. Mas não o seu rosto original. Após passar 7 dias perambulando pelos túneis do metrô, mudou-se com seu rosto infantil para dentro dos esgotos. Já se passaram vinte anos e nunca mais ele foi visto novamente. O que a polissemia não mudou foi o rosto infantil. Essa característica foi preservada até hoje.

***

A pequena porta do bar abriu-se com seu grito peculiar exalando das enferrujadas dobradiças. De forma simultânea, mas não ensaiada, todas as cabeças viraram-se para a entrada. Era apenas um velho maltrapilho. Logo, as bolas voltaram a rolar na mesa de bilhar e o bar voltou a ser apenas o ocioso antro de depressão.

-Caro Jovem - disse o velho projetando-se para frente e apontando o dedo indicador para a cadeira na minha mesa - , posso sentar-me aqui?

Causou-me estranheza aquele mendigo ter um linguajar tão formal. Sua voz era grave, mas tinha a dosagem certa para ser calma. Aparentava uns 80 anos, vestia um grande capuz negro em forma de cone, seus olhos, boca e nariz perdiam-se dentro da grande barba amarelada. Não tomava banho há pelo menos uns 2 anos e o seu sobretudo marrom, aposto 100 pratas que um dia já foi verde, cobria o resto do seu corpo magro.

-Fique a vontade - respondi prontamente ao soltar a respiração e me surpreender por ele não ter cheiro algum. - Sente-se.

Antes de sentar cumprimentou-me com um chapéu imaginário e retirou um pequeno diário e um lápis, todo apontado de faca, de dentro de um dos bolsos do sobretudo.

-Quer beber ou comer alguma coisa? - Disse chamando Heitor.

-Bondade sua - bateu duas vezes o lápis na mesa e o assoprou verificando sua ponta antes de escrever. - Já estou satisfeito em ter um lugar para sentar.

- O que vai querer? -Disse Heitor enxugando um copo com seu pano envolto na cintura.

Heitor era um velho ranziza. Principalmente por não vender nada fiado nem para sua mãe. Tinha a pele parda desbotada. Sua testa sempre estava em formato de atenção com linhas de expressão a todo momento. Mexia de tempos em tempos no seu bigode preto e sempre estava mastigando algo. Era o dono de bar mais mesquinho de toda a redondeza. Sempre cobrava a mais pela cerveja dependendo do nível de embriaguez. Mas era o único bar por ali, por isso tinha seus cliente fiéis.

-Senhor - disse virando-se para o velho -, já digo de antemão que o chuveiro instalado no banheiro é para meu uso apenas. E caso o senhor tente quebrar o cadeado do registro de água, eu saberei e lhe tirarei a pontapés daqui. Está me ouvindo?

O velho estava escrevendo no velho caderninho. Seus dedos, livres da luva de tricô que só cobria a palma da mão, pareciam dançar a cada linha que escrevia ali.

- Senhor - disse tocando em seu ombro -, não irá querer nada mesmo?

Fitando-me, sua barba fez um movimento que eu pude imaginar ser um sorriso. Voltou toda sua atenção para sua escrita ignorando mais uma vez minha presença ali. Heitor voltou para o balcão balbuciando xingamentos peculiares de sua falta de paciência.

Em um quarto de hora, eu contei duas páginas escritas. Antes do início da quarta página, não sei se ele notou minha impaciência pelos bocejos alternados, com a cabeça baixa me perguntou:

-Quer ouvir uma estória, meu rapaz?

-Que tipo de estória o senhor conta? - Disse tentando conhecer mais daquele curioso senhor.

-Estórias da vida, apenas - coçou a barba e deu uma linguada na ponta do lápis. - Para que dizer que são estórias de terror se a própria vida é um terror?

Não acredito em fantasmas ou coisas do tipo, já vou dizendo - dei um gole na cerveja que já estava ficando quente e continuei: - Isso tudo é baboseira. Heitor, traz uma cerveja. Dessa vez gelada, seu velho desgraçado!

Passamos 6 minutos em silêncio. Pedi mais uma cerveja e olhei no relógio. Já era onze e meia.

-Meu rapaz, não estou lhe pedindo uma investigação sobre suas crenças. Quer ouvir uma estória? - Disse-me fechando o pequeno caderno.

Fiz que sim com a cabeça ao notar a pequena mudança na voz grave. Já me perguntara umas três vezes seguidas a razão de estar dando atenção para esse velho estranho. Beber sozinho é monótono, talvez essa seja a razão da minha paciência com ele.

**

Heitor trouxe mais uma cerveja. Alertou-me, três vezes seguidas, que minha conta já estava ficando alta demais. E, se quissesse continuar bebendo, era melhor pagar previamente o que já havia consumido. Não escutei, como todas as vezes, uma só palavra do que ele havia dito.

-Conte-me sua estória, jovem rapaz - Disse o velho encarando-me com seus olhos invisíveis.

-Não sou bom em contar estórias - Disse.

-Não? Conte-me de você, então. Toda nossa vida é uma estória -Insistiu.

Minha vida não era uma maravilha. Os últimos três meses foram os mais divertidos, mas a mágoa pós bebedeira estava tornando-se chata e massacrante. É verdade quando dizem que as mulheres expressam seus sentimentos na hora do fim do relacionamento. E nós, os bastardos machos, temos esse déficit de tempo para sofrermos depois.

Não foi fácil relembrar o assunto do meu casamento acabado precocemente. Ainda mais para um desconhecido. Contei sobre meu péssimo emprego, não sei se estarei empregado por chegar tantas vezes bêbado, na gráfica. A falta de amigos. A família longe. Enfim, ressaltei, mais uma vez, que não tinha estória nenhuma a ser contata.

- Até esse seu pequeno caderno tem mais estórias que eu - Disse entornando mais um gole de cerveja.

-Estórias são apenas estórias. Se todas fossem iguais não teria nenhuma graça. A sua é boa, mas você tem preguiça para dar descrições e a devida atenção que ela merece - Disse.

-Deixe-me lhe contar uma...

**

“Papai, como essa bexiga voa”?

- Gás nobre, Filho. Dentro dela há um gás nobre chamado Hélio. Ele é mais leve que o ar, por isso a bexiga flutua”.

“O que é gás nobre?”

“Gases nobre são os que, mesmo na presença de outros gases, não se transformam. São neutros em suas propriedades.”

“Posso colocar gás hélio em mim para voar, papai?”

“Não, filho. Não pode.”

O sorriso tomou o rosto de Carlos.

A inocência na infância é algo mágico. Carlos sabia bem porque Peter Pan não queria crescer. É bem verdade que quando crescemos, todos sabemos disso.

Era uma tarde quente no mês de dezembro de 1985. A poluição sonora vinha de todos os lados. Com o sol da tarde, o jornaleiro bradava, com olhares de fuga do golpe militar, as manchetes do dia. Os carros impacientes buzinavam para os quietos à frente. O vendedor de leite xingava sua bicicleta quebrada. O fanático religioso julgava todos que passavam. Numa vitrine muda, o caro video cassete era assediado de tempos em tempos pelos transeuntes. Era um dia normal em São Paulo.

Com passos apressados, Carlos segurava a mão de Pedro descendo as escadas do metrô.

“Papai, a professora disse que a vovó não sabe nada.”

“Por que sua professora disse isso?”

“Porque ela perguntou como nos protegemos dos raios. Eu disse que a vovó manda a gente colocar panos em todos os espelhos da casa, guardar todas as facas e tirar as coisas das tomadas. Ela disse que isso é lenda. Que nada disso existe.”

“Filho, é melhor sua professora não se meter com sua avó. Deixa isso pra lá. Fica sendo segredo nosso, ok? Não quero sua avó tacando raios na cara dessa professorinha.”

A estação com destino ao Jabaquara estava lotada. Rostos impacientes enxergavam apenas os próprios narizes. O balão prateado de Pedro lutava contra o gás da ignorância produzido pelos ditos seres humanos. Por enquanto, ainda era nobre. Carlos olhava o relógio agitado. Era quatro e meia da tarde.

O metrô estava a caminho. Os trilhos rangiam. O vento quente refrescava a pressa. O balão prateado flutuava sobre os trilhos agora. Por um instante, o tempo parou. Nada mais se movia. Apenas Pedro tinha movimentos. Sem gás Hélio em seu corpo, não pode voar para pegar seu balão. A pequena mãozinha apenas tocou o cordão antes de cair. A carcaça prateada de muitas tonaledas deu uma martelada no pequeno corpo. A gravidade é implacável. Com toda força, o maquinista acionou, em vão, o freio. Carlos, incrédulo, olhava o sangue do seu filho respingado em todas aquelas pessoas. No teto da estação, o gás hélio tentava escapar de seu corpo prateado para misturar-se, mas apenas pairava sem ter para onde fugir. O grito ensudercedor de Carlos transformou o gás da ignorância dos humanos, em gás da compaixão. O mais nobre de todos.

Com o que sobrou do corpo de Pedro nos braços, Carlos aventurou-se para dentro dos túneis do metrô para nunca mais ser visto. O balão prateado, sujo com pequenos jatos de sangue, encontrou uma saída de ar e ganhou o céu.

**

Lembrei-me da minha ex mulher. Tive uma súbita vontade de reatar o casamento perdido. Ter filhos, talvez.

Com a mão na parede e a cabeça baixa, não conseguia acertar o jato de urina na privada. O efeito da cerveja me fizera chorar. Ou fora Pedro, uma criança que eu nem sei se existiu, que me fizera chorar? Droga, que velho filho da mãe! Por que me contar uma merda de estória triste dessa? Que saco! Sua barba não deixou eu ver as lágrimas, mas aposto que ele chorou também debaixo daquele rosto invisível.

- Heitor, fecha minha conta por favor -Disse ajeitando o zíper do meu jeans.

- Já era a tempo - disse Heitor puxando a calculadora debaixo do balcão. - Vai pagar a conta anterior também? Tudo dá oitenta e sete e noventa.

- Tudo isso? - Disse verificando a anotação na caderneta. - Cinco sacos de jujubas e três litros de leite? Eu não comprei isso não, seu estelionatário!

- Quem manda você dar atenção para todos que pedem para sentar a sua mesa? Fica dando liberdade, dá nisso - Mexeu no bigode e continuou: - O mendigo me disse que mandou eu dar a ele enquanto você passava uma eternidade vomitando, ou fazendo sei lá o que, no banheiro. Espero que não tenha usado o chuveiro - Acrescentou.

Sempre existe intenção em tudo que se faz. Seja um conselho, um gesto de carinho ou até mesmo uma estória. Se passar por cinco sacos de jujubas e um litro de leite? Tem gente para tudo nesse mundo mesmo.

-Táxi, táxi. Preciso ir para a Avenida Dona Belmira Marin. Perto do circo escola, por favor.

Após cinco minutos dentro do carro, eu avistei aquele mendigo cruzando o farol vermelho à nossa frente. Com a cabeça fora da janela eu gritei:

-De nada pelas jujubas e o leite, espertinho.

O velho puxou o velho capuz para trás e revelou-me um grotesco rosto infantil. Como uma máscara, o rosto cobria suas bochechas e o nariz. A parte dos olhos era rasgada e continuava um pouco acima da testa. A pele era verde musgo. Estava aprodecida há anos. Uma máscara feita de um ser humano morto. Com a mão direita deu um tchau, colocou um punhado de jujubas na sua boca e atravessou a rua. O taxista perguntou-me quatro vezes seguidas se devia proseguir viagem ou não. Minha voz não saia. O táxi acelerou ignorando-me totalmente.

**

Tema: Lendas Urbanas

Que neste ano, nossa fogueira queime mais forte do que no ótimo ano anterior. Você, é escritor e gosta do terror? Venha participar conosco desse desafio. Acesse a página do autor Sidney Muniz e descubra como.

Eduardo monteiro
Enviado por Eduardo monteiro em 22/01/2015
Reeditado em 17/02/2015
Código do texto: T5110966
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.