A Pintura Desolada

Quando a campainha tocou num som cristalino feito sino, desabava um temporal tão furioso que era difícil acreditar que havia alguém lá fora. Era uma carruagem de entregas, e dois carregadores ensopados traziam uma grande estrutura plana, que dava quase dois deles de altura. Era uma época diferente, uma Inglaterra Vitoriana e próspera, de casarões enormes, onde mal os lampiões a óleo de baleia haviam chegado. Aquela casa não era diferente. Era a maior de todas da região, quase um palácio, mas mesmo assim ali viviam apenas duas pessoas, uma menininha de oito anos e sua mãe. Claro, haviam os empregados, mas quase nunca eram vistos, e moravam no fundo da propriedade depois do imenso jardim.

Foi a pequenina que atendeu a porta, era noite e chovia, e os raios estalavam lá fora clareando a campina e deixando todos surdos. Mas como ela brincava cá embaixo, perto do salão de danças, abriu a porta quase que automaticamente. Quando a mãe desceu as escadas, já estava lá encostado na parede, ao lado da pequena que brincava com a sua boneca de lousa. Era fácil de se identificar o quadro atrás do grande pano branco. Quem houvera mandado? Não importa muito, porque aquela casa tinha o seu orgulhoso acervo de obras de arte, e muitas pessoas poderiam ter mandado aquele quadro.

Quando a mulher retirou a cobertura revelando a obra, ela sentiu um arrepio desagradavelmente gelado que a deixou momentaneamente sem ar. Era uma imensa pintura representando um homem desfigurado diante de uma paisagem desolada. O pintor usou técnicas febris e um estilo sombrio, e foi mestre em retratar a tristeza na alma do modelo. Na paisagem que se desenhava atrás, um castelo antigo e distante descansava na sombra fria de um vale quase escuro, não fosse as poucas réstias de sol que rompiam a nuvens pesadas e descansavam no tapete verde da colina. Em primeiro plano, como que sobre um rochedo, a figura realmente assustadora de um homem de cabeça e boca desproporcionais, diferente de tudo o que já se vira, exibia um olhar tão triste que era quase impossível olhar para ele.

Se não fosse tão magistralmente pintada e bela à sua maneira, teria se desfeito dela imediatamente. Mas não era preciso ser perito para saber que havia ali algo que tinha a sua importância monetária, talvez mais do que se pudesse imaginar. Estranhamente ela não percebeu, que apesar de toda a chuva, o quadro estava completamente seco.

O sino da igreja reverberou ao longe, mesmo com toda a chuva e trovões, pôde ser ouvido anunciando que já eram dez da noite. Mais do que a hora de dormir naquela época.

A pequenina criança fora deixada em seu quarto, tão grande quanto uma casa de camponês. E a mãe, por sua vez, fora deitar acompanhada dos seus devaneios de mulher que espera um novo amor, deixando o toucador cheio de vidros de perfumes, sombras e maquiagens abertas.

As horas passavam, as águas da chuva escorriam pelo vidro em ondas preguiçosas e incansáveis. Os raios ainda caiam, e a névoa se assentava sobre a terra lá fora. Mal os postes iluminavam o jardim onírico, e as velas trêmulas faziam as sombras alongadas dançarem dentro da casa.

Um enorme pé molhado alçou o primeiro lance de escadas. Era pesando e lento, e o segundo pé saltou mais três degraus...

A diabólica figura havia abandonado o quadro que a aprisionava. Arrastava-se grunhindo palavras ininteligíveis, como se pertencesse a outro lugar que não ali. E seguia passo a passo, pacientemente pelo corredor escuro, em busca de uma porta. Parou brevemente numa que estava aberta. De pé, assombradamente ereto, apenas desviou a cabeça em direção ao quarto, observando sem muito interesse, quando um raio cortou o céu, e entrando por uma rosácea acima de uma janela, revelou-lhe os contornos horríveis. Uma boca que não continhas os seus dentes, e eram muitos e todos afiados, como espinhos de cacto. Corpulento e de cabelos desgrenhados saltando da cabeça, e de olhos tão profundos que não podia-se vê-los fora da órbita escura como qual poço.

Ele ainda se arrastou mais um pouco. Até o quarto da pequena, e lá diante da porta chamou por seu nome. Três vezes e alto!

Ela mal pôde se levantar da cama, ao vê-lo se aproximar pelas beiradas, olhando e rindo como se estivesse feliz com alguma coisa.

Amanheceu. Não havia mais quadro. Não havia mais tempestade. Não havia mais filha.

A mulher enlouquecida pela casa buscava por sua menina. Ninguém sabia do que ela falava. Muito menos quando ela contava do quadro. Finalmente tinha enlouquecido de solidão! Diziam.

Mas existiu quadro sim. E menina também. Tudo foi real! Mas ela havia feito um trato uma vez, e disse a um homem misterioso que daria tudo por uma vida próspera e feliz. A gente costuma falar sem pensar...

Ela então encontrou um dia um marido rico, que deixou-lhe riquezas sem igual. Mas o outro veio e lhe tirou o tudo.

London
Enviado por London em 27/01/2015
Reeditado em 12/02/2015
Código do texto: T5115733
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