O Jogador

Aconteceu na década de 50, em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, onde os lugares ainda são distantes e pouco povoados; naquela época, formavam-se vilarejos onde tudo era longe de tudo, os vizinhos mais próximos distavam 5 ou 6 quilômetros e praticamente não havia policiamento nos arredores. Ainda não é muito diferente, afinal.

Francisco – o Chico, como era conhecido – era um apostador convicto. Atirado à jogatina, já havia perdido muito do pouco que herdara em uma pequena propriedade rural, e estava atolado em dívidas pelo comércio. Com seus quarenta e poucos anos, patriarca de uma família de quatro filhos e uma esposa de saúde não muito boa, cada vez mais via-se afundado na bebida e no jogo. Mas nem sempre foi assim. Quando era jovem, era conhecido por suas habilidades com as cartas. Apostar era seu triunfo. Na verdade, ainda era bom, e se agora se encontrava nesta situação, não era exatamente por azar, mas sim por vingança. Deu-se que, certa noite, em uma das mais famosas casas de jogatina da cidadela, foi feita uma aposta muito alta entre Chico e um fazendeiro ricaço, conhecido por estar sempre acompanhado de uns dois ou três jagunços. Este fazendeiro era orgulhoso, e também era bom no jogo. Sabia da fama de Chico e há muito queria desafiá-lo, pois não era acostumado a perder. Mas Chico, ao que parece, tinha o dom. Venceu a altíssima aposta e, embora a pequena fortuna em gado que o fazendeiro perdeu não lhe fizesse grande falta, seus brios ficaram abalados. Uma semana depois, mandou que entregasse o gado à Chico, e duas noites a contar da entrega, mandou dez jagunços até a pequena propriedade de Chico e carregou quase toda a criação. Sobraram exatamente dois bois, uma vaca de leite e um porco, mais o galinheiro. Chico sabia quem fizera, mas não tinha provas; e mais: não tinha como combater seu malfeitor. Dívida de jogo é sagrada, é claro; mas ocorreu que, na verdade, a dívida foi paga. Se sobreveio uma desgraça a Chico, o problema era dele... E, agora, Chico tinha muitos problemas.

Certa noite, estava Chico em uma das seis casas de jogo da cidade quando ouviu uma conversa na mesa ao lado. Esta noite, Chico não estava apostando, só bebia e refletia sobre sua desgraça. Começou a prestar atenção nos assuntos da mesa vizinha quando os seus ocupantes comentaram sobre um forasteiro que estava pelas bandas, e que na cidade próxima, havia deixado um homem rico, porque era jogador por profissão e sempre apostava alto. Quando perdeu, perdeu feio. E o melhor: parece que a aposta era díspar. Um vultuoso valor em ouro do forasteiro contra uma dose de uísque do adversário! Era ridículo, inacreditável! Chico logo deduziu que não passavam os cavalheiros de bêbados delirando. Riu-se da prosa e seguiu seu drinque. Algum tempo depois, já totalmente ébrio, foi tomado pela fantasia das ilusões. E se fosse verdade? E se o forasteiro fosse algum tipo de homem abastado e excêntrico que gostava de “rasgar dinheiro” só por diversão? E se fosse a solução para os seus problemas financeiros? Além do mais, se perdesse, seria uma dose de uísque seu prejuízo, muito menos do que ele próprio consumia em uma noite! Então, lembrou-se de ter ouvido algo sobre um bar, no final de um certo beco mal frequentado. Depois de delirar mais uns minutos, resolveu ir até o lugar e tomar informações.

O bar ficava em um beco em que Chico nunca tinha ido, mas do qual conhecia a fama. Ponto de trambiques de todo o tipo (dizem que certa vez uma mãe vendeu um dos filhos por pouco mais de nada), chão lodoso devido ao esgoto aberto, matagal em volta... Enfim, um lugar nefasto. E o bar era uma espelunca, repugnante mesmo. Chico não ligou muito para estes pormenores, e foi logo entrando, dirigindo-se para o bar, e lançando os dados.

- Ouvi falar de um certo tipo que frequenta o lugar, e que anda fazendo apostas...

O dono do bar franziu a testa. Deu uma baforada no charuto barato.

- Pois sim. As pessoas falam muito, e algumas ouvem demais. E daí?

- Bom, eu queria ver o tal. Ando com saudades de me aventurar com as cartas...

O dono da bodega conhecia Chico, embora o contrário não fosse verdade. Sabia de sua situação e do acontecido todo. Coçou a careca com a ponta do lápis.

- Muito bem. O senhor terá de esperar. Tem uma fila enorme para jogar lá nos fundos. O homem não para de jogar enquanto houver um lhe desafiando. E olha, já tomou tantas doses de uísque de ontem para hoje que não sei como não teve um treco. Ou, se o senhor preferir, volte amanhã mais cedo...

- Eu espero.

E Chico esperou, por duas horas. Via o entra-e-sai de um “garçom” levando doses e mais doses de uísque para os fundos do bar. Começou a crer que estava perdendo tempo. Finalmente, foi chamado com um aceno para os fundos.

Estava escuro. Uma luz pendia sobre o centro da mesa, a uns dois palmos da cabeça de quem estivesse sentado. Havia uns sete homens em torno, acavalados nas cadeiras, como que aguardando o próximo espetáculo. O ambiente estava completamente fumacento pelos tantos cigarros acesos que os “expectadores” reviravam na boca. Chico deu um passo firme. Mais outro. Quando estava bem próximo da mesa, ao descortinar a fumaceira, pôde ver um pouco do forasteiro. Era uma figura esquálida. Vestia um sobretudo de lã preto velho e batido e um chapéu da mesma qualidade. Tossia como um tuberculoso. Aproximou-se da mesa. Sentou-se.

O forasteiro tinha nas mãos um baralho novíssimo, que não parecia ter sido manuseado sequer uma vez na vida, que dirá uma noite inteira. Bom de olho, Chico percebeu que não havia nenhum tipo de marca nas cartas. Era um baralho comum e novo, não marcado. Parecia então que as coisas seriam honestas. O homem, ainda de cabeça sutilmente reclinada para um lado, ergueu-lhe os olhos por debaixo da aba do chapéu, permitindo que a luz lhe iluminasse o rosto. Tinha as maçãs do rosto secas, ossudas, olheiras profundas como as de quem há muitas noites não dorme. Os lábios finos, entre os quais havia um cigarro. O queixo era retraído e ostentava uma grossa e feia cicatriz. Um das sobrancelhas fazia-se em duas por uma falha no meio, como um talho de faca. As mãos eram filosóficas (como dito na quiromancia), com as unhas compridas e arredondadas, um tanto côncavas. Mas, de tudo, o que mais chamava atenção eram os olhos. Tinham uma expressão incomum, indescritível. Pareciam olhar através do indivíduo, parecido com a forma de quando nós olhamos para algo pensando longe, sem prestar atenção.

- Então, o senhor... (gesticulou, como esperando um nome)

- Chico. Pode me chamar de Chico.

- Muito bem, Chico. Certamente que pretende jogar. Diga-me, qual seu jogo?

- Poker. Gosto do poker.

- Poker. Ótima escolha. Que seja. Poker. Antes, apenas por questões éticas, preciso de sua assinatura num contrato. Só para o caso de o senhor me levar alguns bons trocados, estar ciente de que não lhe pagarei um centavo a mais do que o apostado. E também para que eu tenha minha dose de uísque, se for o caso! - riu.

Chico achou engraçado também, embora fosse estranho. O homem tirou do bolso interno do sobretudo uma folha amarelada dobrada ao meio. Desamassou-a e estendeu-a sobre a mesa. Apontou incisivamente para as poucas cláusulas do contrato, mostrando.

- Veja, se eu perder, fico obrigado a lhe pagar esta quantia – cravando a unha do indicador em um valor expressivo acompanhado de muitos zeros – . Se o senhor perder, paga-me uma dose de uísque. Mas também não saio no prejuízo se perder, pois levo sua alma!

Todos riram-se. Inclusive o homem e o Chico. Alcançando a Chico uma caneta-tinteiro, foi o contrato – ridículo, ao que parecia –, por ambos os apostadores assinado.

E iniciou-se o jogo. A sorte não pendeu só para um lado, as rodadas iam parelhas até a rodada final. O jogo foi tenso. Era a última cartada. Chico tinha o jogo ganho. Suava e estalava os dedos. Estava eufórico, era muito dinheiro! Cartas na mesa. Fim de jogo. Chico venceu. O homem não pareceu espantado, não esboçou sequer uma careta de desapontamento. Pelo contrário, deu um largo sorriso de dentes amarelados e apertou a mão de Chico, parabenizando-o.

- Muito bem, muito bem! Combinemos de seu pagamento.

Levou Chico discretamente para a frente do bar para tratar do assunto sem que ninguém ouvisse. Ficou combinado que, no dia seguinte, na praça, às três horas da tarde, encontrar-se-iam para o pagamento.

Chico voltou pra casa transbordando de felicidade. Um misto de euforia, loucura e alívio lhe tomara a alma. Não se continha. Naquela madrugada, não disse nada à esposa e nem dormiu. Ria-se à toa. Estava maravilhado.

No dia seguinte, tudo correu como o planejado. Encontraram-se na praça no horário marcado e o forasteiro levou consigo uma maleta de couro, muito bem recheada. Chico notou que o homem parecia incomodar-se com o sol. Talvez fosse pela pele flácida, pensou.

- Eis aqui, amigo. Espero que faça bom uso.

- O senhor é uma boa pessoa! Parece desapegado nesta vida. Só lhe tenho a agradecer!

- Não é nada, é meu trabalho. E, além do mais, é muito divertido. Conheço diversos lugares, diversas pessoas... Enfim, eu amo o que faço! - e riu-se. Mas, não esqueça que, daqui um tempo, mandarei buscarem-lhe a alma! - e riu-se, pondo a mão no ombro de Chico.

- Hahahahahaha! Certamente, certamente... E ainda terá a alma de um homem bem melhor de vida do que agora! Hahahahaha!

E assim despediram-se. O forasteiro foi embora da cidade, ninguém soube como, já que ninguém sabia como chegou e nem onde dormia. Chico sequer perguntou seu nome, e nem estava interessado. Agora tinha muito dinheiro e muitos planos. Voltou apressado para a casa e contou os fatos à esposa. Daquele dia em diante, tudo mudou na vida de Chico. Sua pequena e falida propriedade rural aumentou significativamente; pôde pagar um tratamento adequado aos males respiratórios de de sua esposa e dar melhores condições de vida a seus filhos, que agora frequentavam a escola e já sabiam ler e escrever.

Foram deleitosos seis meses de tranquilidade e bonança. O rebanho farto e saudável, as plantações variadas e bonitas, o prestígio da cidadezinha. Até que um mal desconhecido acometeu Chico violentamente.

No início, não pareceu nada de grave, nada além de uma gripe de verão. Dores de cabeça, enjoos e vômitos, sudorese noturna, febre. Com alguns emplastros, analgésicos e banhos mornos estava sendo contornada a situação. Chico não piorava, mas também não melhorava. A esposa começou a preocupar-se severamente e a lhe dispensar maiores cuidados. Após algumas semanas no mesmo quadro, Chico apresentou pioras. Passou a ter pesadelos e a sofrer de terror noturno – situação em que o indivíduo acorda e não consegue mover-se, misturando uma espécie de semi-sonho com a realidade – e alguns dias depois passou a apresentar alucinações auditivas.

A princípio, seus sintomas não lhe incomodavam. Na verdade, os sintomas físicos nunca incomodaram muito, pois com o tratamento médico eram facilmente controlados; foi a sintomática psíquica e o sufoco à noite que lhe desesperaram. Não comentava com ninguém o que se passava, pois estava completamente lúcido de tudo, e acreditava estar ficando louco. No início, as vozes que ouvia eram confusas e pareciam não articular palavras, mas, com o passar dos dias, logo pôde perceber o teor das mensagens dessas vozes. Foi procurar ajuda no único lugar em que não seria julgado como louco: a igreja do Padre Onório. Padre Onório foi grande amigo do pai de Chico antes de dedicar-se ao celibato, e viu Chico crescer. Sempre ajudou a família como um padrinho, no que podia, com seus conselhos. Ao chegar na igreja, Chico foi recebido pelo Padre com um largo sorriso e um carinhoso abraço.

- Que alegria, menino! Vejo que já não está convalescente. Que felicidade poder vê-lo!

- Padre, preciso muito de sua ajuda!

Padre Onório lançou um olhar de ternura e, sentando no primeiro banco da igreja vazia, convidou Chico a desabafar.

- Padre, ando muito atormentado, mas não tenho motivos para isso.

- Atormentado como, meu filho? Por sua doença?

- Não, padre. Não exatamente. A febre e os sintomas da gripe estão amenos. É outra coisa que vem me atormentando....

- Diga, meu filho. Não tenha medo, Deus lhe ajudará...

- De uns dias pra cá, Padre, eu tenho ouvido vozes. No início, eu pensei que fossem apenas zumbidos do atordoamento pelo tempo acamado, mas agora eu consigo percebê-las com clareza. Elas me dizem coisas horríveis Padre! Mas eu não estou louco, eu sei que não estou louco!

- Meu filho... Existem muitos males espirituais neste mundo. Fale-me mais sobre isso.

- Bom, Padre... Geralmente é a voz de um homem. Ele diz que chegou a hora, que eu devo pagar a conta. Diz que vai matar toda minha família... As vezes é outro homem, com uma voz mais grave... Essa voz me “manda” fazer coisas horríveis, Padre! Diz que eu tenho que matar pessoas!

O Padre franziu a testa. Olhou para Chico desconfiado. O filho de seu grande amigo estaria ficando maluco? Este enriquecimento repentino teria lhe afetado a sanidade? Ou, pior: a vida que andava levando de bebedeiras e noitadas, estava sendo por ela castigado? Não soube bem o que dizer.

- Meu filho, procure ficar calmo. Ouça, a melhor arma contra tais eventos é a oração. Ore, ore com fervor, e todos esses problemas, tenho certeza, desaparecerão. E volte a frequentar as missas aos domingos, tudo ficará bem. Tenha fé no Senhor Deus.

Não muito feliz com a resposta, Chico agradeceu e despediu-se de Padre Onório. As vozes geralmente surgiam com clareza à noite, de madrugada. Não acordava sua esposa, pois não queria causar mais preocupações e, quem sabe, uma recaída na saúde dela. Ao chegar em casa, agiu naturalmente. Antes de deitar-se, orou solitário. Suplicou, chorou... Fez o que o Padre recomendara afinal. Não surtiu nenhum efeito. Aliás, acarretou em atormentações ainda maiores. Agora, as vozes eram mais frequentes, inclusive durante o dia. As pessoas ao redor de Chico percebiam que ele não andava muito bem, já estava difícil manter as aparências.

No domingo seguinte foi à missa. Sentiu um tremendo desconforto. Teve calafrios e sua pele queimava ao tocar a água benta. Aguentou o quanto pôde, até a hora da recepção da hóstia, quando teve de sair às pressas da igreja, vomitando. Desculpou-se e justificou o episódio dizendo que provavelmente havia recaído em doença, algum tipo de virose. Foi para a casa com a família.

A essas alturas, Chico compreendeu que algo de anormal passava-se com ele, muito além de um possível problema psíquico. Resolveu, às escondidas, procurar ajuda. Quando era menino, sempre ouvia falar em uma benzedeira que morava em lugar retirado. Diziam que era curandeira de mão cheia e que nada cobrava por isso. Obviamente que o problema de Chico não era mais dinheiro. Então, ele foi à procura da velha senhora - Sinhá Jacira. Chegando no casebre, humilde, porém digno, foi atendido por ela. Estava muito idosa, já quase não enxergava mais. Explicou-lhe tudo o que com ele se passava e ofereceu-lhe razoável quantia por uma cura. A vela mulher esfregou com um pano branco o olho esquerdo e disse:

- Moço, eu não aceito pagamento pelos meus serviços, porque é um dom para ser de graça. Mas mesmo que aceitasse, não poderia receber. Sinto em não poder ajudá-lo.

- Mas, Sinhá... Todos sabem que a senhora é especialista nestas coisas que a medicina não explica... E eu...

Foi interrompido.

- Moço, assim como na medicina, na espiritualidade também existem coisas que não podem ser curadas. Existem regras que devem ser cumpridas. Foi o senhor que escolheu, assim como quem escolhe o suicídio. É impossível trazê-lo de volta à vida...

- Senhora, com todo o respeito! Eu não escolhi essas barbaridades que me estão sobrepujando! Como pode a senhora dizer tamanha bobagem?

- Seja mais sereno com seu destino, meu jovem. Eu não digo bobagens. Minha visão do mundo da carne e do osso pode estar comprometida, mas ainda enxergo muito bem para além dela. Quando o moço entrou, meus amuletos impediram que seu companheiro também entrasse, mas ele está lá fora, lhe esperando.

- Eu vim sozinho, senhora...

- Não, não veio. O moço tem por perto uma criatura que há muito eu não via. Veste um terno bordô e uma cartola de mesma cor. Tem nas mãos cobertas de anéis de ouro um documento, com a sua assinatura. Esta assinatura foi feita com uma caneta muito peculiar, compreende? A tinta é sangue de um recém nascido. O moço selou um acordo, destes que é impossível escapar devendo. Agora, ume cobrador está lhe visitando. Não sei o que ele quer, talvez se o moço me contasse eu soubesse como lhe aconselhar.

Chico ficou estarrecido, perplexo. Não conseguia falar. Lembrou do jogo nos fundos daquele bar, há seis meses atrás. Lembrou da "brincadeira" que lhe fez o adversário. Entrou em pânico, levou alguns minutos para se recompor.

- Sinhá... Aconteceu há seis meses atrás, num jogo de cartas...

Ao terminar de ouvir a história toda, a velha soltou um penoso suspiro.

- Vocês jovens gananciosos não pesam as consequências. Acaso o moço não estranhou as circunstâncias do fato? O moço assinou um contrato de venda da alma. Agora, ela pertence àquele que comprou, que pode usá-la como bem entender. Sinto muito, meu filho... Não há uma saída. Você será pressionado a cumprir as ordens e, caso não as cumpra conscientemente, acabará fazendo de uma forma ou outra. É muito triste tudo, mas se o moço ama sua família, aconselho que tire a própria vida e assim desça de vez ao lugar onde deve ir, para que possa fazer o que precisa sem o peso da responsabilidade com os seus. Essa criatura que está lá fora, já foi como você um dia, caiu na mesma armadilha, e agora trabalha assim.

O pobre Chico não quis ouvir mais nada. Saiu porta à fora. Correu para o meio do mato, aos prantos, desesperado. Caiu de joelhos e ali ficou, até o cair da noite. Quando já estava estafado de suplicar e chorar, completamente sem força, sentou-se sobre uma pedra chata.

- Por que vocês sempre relutam? Isso torna meu trabalho tão mais difícil.

Chico subitamente procurou ao redor quem tinha falado, e deparou-se, às suas costas, com a criatura que a velha lhe descrevera. Pasmou de horror.

- É sempre a mesma coisa. Olha, eu não vejo ninguém brincando com as graças que os céus lhes dá, nem duvidando das promessas do Senhor. Mas, com o patrão, é sempre assim. Isso irrita todo mundo! É tão mais fácil cooperar. Meu patrão foi um bom pagador, e não gosta de caloteiros...

- Sai! Sai de perto de mim! Me deixa em paz! Eu não sabia o que estava fazendo! Tem de haver um jeito de reverter. Eu devolvo o dinheiro.

- Hahahahahahahahahaha! Dinheiro? Sério? Vamos parar de conversa fiada. Já estou com o senhor há alguns dias e tenho outros para cobrar. As regras ficaram mais apertadas para o senhor. Mate sete crianças hoje, até à meia-noite, ou seus filhos morrerão lenta e dolorosamente. Sete crianças, não com mais de dez anos de idade. Não importa se menino ou menina, mas tem de estar saudáveis. Mate-as e deposite os corpos na entrada do velho cemitério no alto do morro. É um lugar isolado, ninguém vai lá há anos. Além do mais, estará protegido do olho humano.

A criatura terminou o veredito e sumiu. Chico descabelava-se de remorso e ódio. Por que com ele? Logo com ele, que já fora tão injustiçado? Decidiu. Iria fazer. Ele merecia toda a desgraça, mas seus filhos não. Além do mais, não poderia morrer, não agora. Precisava manter a vida em ordem, pelo menos até os filhos crescerem mais e a esposa recuperar completamente a saúde.

Naquela noite, Chico não foi pra casa. Ficou no matagal, pensando como faria. Havia anoitecido e ele não sabia como encontrar as sete crianças de que precisava. Então, teve uma ideia. Lembrou-se de quatro crianças órfãs de pai que moravam na parte mais pobre da cidade. Sua mãe, dona Inácia, costumava chegar em casa depois das oito da noite, porque trabalhava muito no matadouro para sustentar a família sozinha. O filho mais velho dela, um rapazinho, não deveria ter mais do que uns oito anos, ficava reparando os irmãos quando da ausência da mãe. Não titubeou então e foi-se.

Chegou na vila miserável. Já não havia movimento na rua. Uns dois ou três mendigos bêbados pelas esquinas, nada além disso. Haviam poucas casas, com muito mato em volta e sem luminosidade. Foi até um tanto difícil encontrar o casebre certo. Observou o interior da casa pela janelinha dos fundos. Como imaginou, dona Inácia ainda não havia chegado. Era uma noite muito fria e as crianças estavam próximas a um fogão improvisado, enroladas com sacos de estopa, sentadas no chão. Eram três meninos e uma menininha, a menor, ainda bebê. Chico reparou numa portinhola ao lado da janela, que parecia fácil de abrir por conta da madeira quase podre. Não precisou de muito esforço, nada além de uns empurrões. Antes, ainda pensou em como as mataria. Como não tinha arma, precisava desacordá-las e também de alguma coisa para carregá-las até a charrete. Armado com um pedaço de pau, entrou de vez na casa. As crianças soltaram gritos ao vê-lo, mas sua ação foi rápida. Golpeou primeiro o mais velho, que caiu desacordado. Feito isso, os menores foi fácil, pois não faziam nada além de chorar sentados onde estavam. No final, tinha quatro corpos desmaiados no chão, e a bebê já morta com o impacto do golpe. Foi até à gaveta da mesa que havia no único cômodo da casa e deu de mãos em uma faca. Arrastou-os então, de dois em dois, para o matagal perto de onde deixara a charrete, e degolou-os, um a um. O mais velho acordou antes do fim, e morreu esperneando e babando sangue. Os sacos de estopa que serviam aos pequenos como manto, agora eram suas mortalhas e caixões. Chico então pôs os inocentes desfalecidos na charrete e seguiu caminho pela trilha do mato. Estava apavorado, ensanguentado, tremia dos pés à cabeça e suava de pingar no assoalho da charrete. Estava feito. Só precisava de mais três. Mais da metade estava cumprido. Agora, tinha de manter a mente funcionando, esquecendo por hora as inevitáveis emoções e pensar quais seriam as outras três crianças. Restava-lhe pouco mais de quatro horas.

No caminho pelo mato Chico atordoou-se. Caiu em prantos, praguejou contra Deus que não lhe ajudara. Aos poucos, recobrou um mínimo de tino e seguiu na empreitada macabra. Pensava consigo mesmo, como forma de alívio, que seria isso e pronto. Estaria livre até que morresse e fosse julgado pelos seus abomináveis atos. Até lá, sustentaria sua família com dignidade, pois os seus nada tinham que ver com suas dívidas. Se lhe clareou, de repente, uma solução para seu problema. Na rua paralela à trilha do mato, avistou uma família de mendigos. Era um casal mulambento, envolto em trapos de todo o tipo, encolhidos na beira da estradinha. Tinham, junto com eles, três pequeninos: dois ainda no colo e um que sequer caminhava ainda. E Chico ainda tinha a faca e o pedaço de pau, e ali, não precisaria de sacos para carregá-los. A rua era totalmente deserta. Seu plano era desacordar aos pais e depois degolar as crianças ali mesmo, deixando a faca na mão de um deles. Assim, tudo ficaria perfeito: as crianças que "desapareceram" da cara de dona Inácia, assim como os filhos do casal de mendigos, foram por eles mortas e enterradas no matagal - que era imenso - ou jogadas no rio. Ninguém acreditaria na versão de dois bêbados, e eles seriam logo atirados às masmorras para apodrecerem sem sequer um julgamento. A polícia raramente ficava sabendo dos casos dessas cidades, e tudo era resolvido por ali mesmo, uma espécie antiga de autotutela.

Aproveitou então que todos dormiam, encolhidos, e procedeu com o planejado. Desacordou os pais com pauladas na cabeça. Degolou as três crianças. Enfiou o cabo da faca pingando sangue entre os dedos cerrados do homem. Atou as crianças em uma espécie de trouxa feita com trapos e as levou até a charrete. Dali, foi direto ao cemitério. Despejou cada corpo tenro no portão. Ficou um tempo sentado junto deles, numa cena pavorosa e dramática. Depois, como precisava de água para lavar a charrete e de uma desculpa para chegar tão tarde em casa, resolveu ir até algum bar e encher por lá a cara. Nada melhor do que o velho bar onde selou seu destino cruel.

Chico tomara cuidado para não sujar-se de sangue. Sua roupa estava incólume. Apenas algumas manchas no assoalho da charrete, que foram fáceis de limpar. Tinha um trapo que sempre carregava para o caso de precisar limpar a carroceria por conta de algum carregamento. Só precisou pedir um balde de água e dizer uma ovelha havia lhe sujado a condução. No bar, nada havia mudado. Trocou algumas palavras com o dono do bar, que lhe disse nunca mais ter visto o tal forasteiro; falaram também sobre como Chico tivera sorte naquela noite. "Ah, se ele soubesse da minha sorte...". Depois de muitos copos, Chico foi-se embora. Ao chegar em casa, a esposa não estranhou. Viu que ele estava bêbado e deduziu que havia saído com alguns outros para comemorar a recuperação da constipação que lhe andara acometendo. Ficou até mais aliviada. Chico só queria dormir e esquecer aquela noite horrenda.

Amanheceu. Chico dormira como há muito não dormia. Acordou bem disposto, abraçou a esposa e os filhos. Perquiriu-lhes sobre a escola, olhou seus cadernos. Resolveu então ir ao comércio, ver se corria alguma notícia sobre o sumiço das crianças e o casal assassino. Era uma bonita manhã, apesar do frio. Para sua surpresa, tudo estava tranquilo na cidade. Nenhuma notícia escabrosa, a não ser que João, um funcionário do velho engenho, perdera uma mãe ao operar um moedor. Sentiu um alívio, ainda que sentisse tremendo remorso.

Passaram-se alguns dias em perfeita paz. Chico procurava desviar o pensamento toda a vez que lhe vinha à memória as cenas dos brutais assassinatos. Agarrava-se aos seus filhos, e agradecia por eles estarem a salvo. Só isso lhe importava a essa altura. Passaram-se semanas, e chegou o dia de finados. A família preparava-se para ir ao cemitério, como todos na cidade. Mas não àquele cemitério em cima do morro, ao cemitério que ficava mais próximo à cidade, onde estavam enterrados aqueles que ainda tinham parentes vivos para visitar-lhes os túmulos. E foram. Comparam flores no caminho. Havia muita gente no cemitério, arrumando túmulos, aparando grama, levando velas e flores. A família foi até o túmulo de vovó Mercedes, sogra de Chico, enquanto Chico resolveu dar uma volta pelo cemitério e encontrar os conhecidos. Caminhava por um corredor de túmulos quando ouviu um sussurro. De pronto, pensou que fossem crianças a brincar, o que era comum naquela época do ano. Mas o sussurro era seu nome, e ficou muito próximo a seu ouvido. As pupilas de Chico dilataram e encolheram-se rapidamente. Ficou estático. Engoliu seco. De repente, sentia medo. Virou-se num movimento lento para trás e deparou-se com aquilo...

Era como se o tempo tivesse parado para ele ou as pessoas simplesmente não o notavam. Há uns cinco palmos do chão, pairava aquele ser espectral. Tinha a aparência de um esqueleto, mas dava para definir alguma feição inumana naquilo. Um esqueleto de algo que não era humano. Vestia um comprido manto acinzentado e na mãe carregava uma enorme gadanha. Era como as típicas figuras retratadas como sendo a personificação da morte.

- Chico, hoje é dia de tributo, Chico...

- Quem é você? Que quer de mim?

- Eu sou aquele que não tem nome. Hoje, é meu dia de passear entre vós. É meu dia de ceifar os endividados...

- Eu já paguei minha dívida! Fiz exatamente o que o homem de cartola me disse para fazer. Não devo mais nada!

- Ah, Chico... Algumas dívidas são para sempre. Alguns, jamais poderão descansar. Precisam trabalhar em labores cada vez mais pesarosos para manter o pagamento em dia. Agora chegou sua vez. Às doze badaladas do sino da Matriz, levarei sua alma para que ocupe um posto dentre os miseráveis.

- Eu não entendo! Na verdade, jamais entendi. O homem com quem joguei nada tinha de parecido com vocês. É com ele minha dívida. Preciso falar com ele!

- Tolo mortal... Parece que não compreendeis negócios. O jogador também estava trabalhando. Era um endividado, assim como vós. Eu também estou trabalhando, pois também o sou. Nem sempre fui este espectro. Tudo depende de como negocias a si mesmo. O jogador tinha uma enorme dívida de jogo em vida que não podia pagar; eu, troquei minha vida pela de minha filha mais velha. É assim que as coisas acontecem, Chico. Quando se quebra a ordem natural das coisas, a roda do tempo gira e nos insere novamente nesta ordem natural. Agora é a sua vez.

A entidade foi sumindo como fumaça desfazendo-se. Chico sentia como se acordasse de um sonho. Voltou a si com o filho mais novo lhe puxando do casaco e pedindo colo. Terminou-se então o passeio e voltaram para a casa.

À medida que a noite se aproximava, Chico ficava mais nervoso. Resolveu então sair de casa. Antes, deixou algumas últimas palavras escritas para a esposa, onde deixava toda sua propriedade a seus cuidados e pedia pela boa educação dos meninos. Explicou que fora fraco, que estava doente e não teve coragem de contar, e que seu tempo esgotara. Iria para um retiro, onde morreria. Saiu à pé. Pegou a trilha do mato. Sentou-se perto do rio e ficou ali, rememorando o passado. Desde os tempos de sua infância, até onde lhe era possível lembrar, até aquela noite no bar do beco. Pensou nas coisas que poderia ter feito e não fez. Não chorou nem suplicou. Aceitou seu destino. Então, há meia-noite, numa madrugada fria e sem estrelas no céu, o espectro apareceu por sobre as águas do rio e aproximando-se. Chico já não tomava sustos nem se horrorizava. Tinha entendido bem tudo. Era o fim para ele neste mundo.

- Então, Chico. É chegada a vossa hora. - e a última imagem que Chico viu foi a da gadanha descendo em sua direção.

Aconteceu no ano de 2014, em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, onde muitos lugares ainda são distantes e pouco povoados. Nos bares da cidade, haviam muitas atividades para entreter os interioranos. Entre elas, o tradicional jogo de truco. Chegou um homem no bar, aparentava uns quarenta e poucos anos. Tinha espessas costeletas e um charuto entre os lábios. Sentou-se no balcão e pediu uma dose de uísque. Manuseando um baralho espanhol, não demorou muito para ouvir um convite.

- Ei, barbudo! Joga uma de mano com o José! Traz teu baralho pra cá, vamo colocar ele na mesa. Primeiro, deixa o Nico ver se não tá marcado!

- Pois não, senhores.

- Tu parece endinheirado, mas nunca te avistamo por estes lados... Qual teu nome, barbudo?

- Chico. Podem me chamar de... Chico.

-----------------------FIM-------------------------

Femina Morituri
Enviado por Femina Morituri em 06/02/2015
Reeditado em 06/02/2015
Código do texto: T5128256
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.