Marcas do Passado - DTRL 20

— Bom dia, doutor — disse a moça que estava do lado de fora da porta aberta do consultório — Eu vim um pouco mais cedo, a aflição não me deixou esperar — trajava um vestido grande e usava um chapéu preto assim como o vestido sobre a pele branca salpicada por vermelho que o vento gelado causara.

— Bom dia senhorita Dalson. Entre e sente-se — a voz era indiferente à atribulação evidente no rosto da moça, mas havia gentileza nela.

A mulher entrou com as mãos em formato de concha levadas à boca. Ela baforava nelas para tentar esquentá-las.

Dirigiu-se a uma poltrona grande de couro beje com fendas marcadas que ficava no centro da sala. Acima de um tapete branco e peludo que tomava o cômodo todo. Uma lareira grande crepitava alto atrás dela em sons constantes e a luz das chamas dançavam nas paredes de pedra. A casa era grande e rústica, um cenário perfeito para o dia que se fazia. Pela janela grande de vidro podia se ver o mundo desabando em branco, o véu de neve se tornara, em poucas horas, uma camada assustadora de gelo. O frio que adornava o clima entrava por cada fresta e fazia questão de subir pela barra das saias e calças. O terrível inverno havia de fato chegado.

A senhora Allen Dalson após acomodada no sofá conseguiu tragar uma boa lufada de ar para dentro dos pulmões sem que o frio lhe espancasse as mucosas. As mãos de dedos longos e finos se agarraram a um lencinho azul mar e levaram com toda distinção de uma dama até o nariz que assoou quase inaudivelmente. Os grandes olhos negros trataram de passar bem longe do doutor nesses momentos. Guardou o lenço devidamente dobrado na bolsinha de camurça e a escondeu debaixo da barra do vestido, o chapéu que ainda adornava a cabeça caiu para frente e ela tratou de tirá-lo e colocar no braço da poltrona, o véu que lhe tampou precariamente metade do rosto esse tempo todo deslizou anonimamente pelo ar até pousar no chão de modo gracioso. Ela então se aprumou, passou as mãos no cabelo escuro que agora escorria em cascatas nos ombros e disse:

— Começo o serviço eu mesma ou devo aguardar o senhor terminar de observar-me?

— O clichê da paciência é um dom atribuído aos melhores, senhorita.

Ela deu um sorriso grande, que mostrava todos os dentes harmônicos da boca. Os lábios vermelhos envergaram de modo a desenhar o sorriso gatuno que ela pretendia emitir.

— Pois bem. A aflição que lhe disse a pouco é justificável? Tenho de temer algo?

— O quão sombria é sua mente, senhorita Allen?

— Ela é tal qual o seu preço, doutor.

O vento bateu à porta, lhes convidando a sair e contemplar a piada que ele fizera do clima. A fogueira ainda ardia atrás de Dalson e os olhos superficiais do doutor eram um convite a perguntas de sua existência.

Ele enfiou a mão no bolso do jaleco branco que usava e ao passo que retirava uma corda de prata ia saindo revelando cada vez mais comprimento, até que um objeto redondo surgiu na ponta dele com movimentos pendulares, um relógio antigo com ponteiros dourados.

Ela ao ver o relógio tomou uma expressão de surpresa sutil e quase imperceptível.

— Como ousa?

— Disse-lhe que era necessário um objeto pessoal. Quanto aos meios que usei para tirá-los de suas delicadas mãos... Não perca o tempo tentando descobrir, voltará a você, afinal.

A mulher ali sentada em nada parecia com a que chegara a pouco, assustada e acuada. Ela tinha uma postura rija e presença forte. No entanto, o que a atormentava a fazia desabar em certos momentos.

— É hora de contemplar o monstro que se faz em labaredas no recôndito de sua mente. — a voz soou sombria.

A indiferença sumiu da face dela, e logo o rosto franziu em expressão de dúvida.

— Vamos a isso.

— Sente-se ereta — ele levantou o relógio na altura do queixo e fez movimentos que representavam dois terços de uma meia-lua. O som do relógio ritmava o quase ritual que acontecia ali.

Tic-tac (som direto e incisivo)

— Concentre sua mente no limbo da total inexistência das coisas. Onde apenas você é material.

Tic-tac (direto e abafado)

— Agora busque um medo, uma dor, um horror terrível. Vá lá, no escuro. Deixe-se guiar pelos sentidos.

Tic-tac-ac-ac (som indireto, desfocado, abafado e ecoante)

— Isso. É algo pulsante, no fundo, bem lá no fundo. Grite, se precisar de forças — a voz dele soava abafada e muito distante.

Ela gritou, como gritou. Se impulsionou em direção ao objeto parado ali. Mais escuro e preto que o negro que predominava. Fedia, exalava algo quase vivo. Ela gritou mais, suas roupas fizeram um som agudo e se rasgaram como se feitas de papel. Ela vestia agora um vestido marrom abatido com barra listrada. Era apertado demais nela, muito pequeno, iria rasgar a qualquer momento. Então em um último grito ela esticou a mão e tocou a coisa. O nada pareceu encolher e sufocá-la. Uma explosão de som seco se fez sem qualquer lufada de vento, e ela foi lançada pelo negrume da inexistência. Logo, um ponto quase como uma estrela apareceu e ela estava indo em sua direção, ele cresceu, cresceu, até que se tornou um clarão insuportável. Ela sentiu-se puxada pela gravidade, estava agora caindo, então fechou os olhos com todo o medo que estava sentindo.

Abriu os olhos. Estava em um chão gelado de pedra e agora o vestido lhe encaixava perfeitamente no corpo. Ela se assustou e se sentou em um pulo. Sentiu dor na cabeça e colocou a mão nela, sentiu o cabelo, estava curto e desgrenhado. Ela deu um grito agudo e com espanto olhou pras próprias mãos.

Mãos de criança. Levantou-se e olhou para o próprio corpo encaixado no vestido... era criança novamente.

Quando olhou em volta viu uma casinha precária de madeira, com partes escurecidas pela velhice. O chão de pedra era irregular e áspero. Um cômodo apenas, com dois colchões finos e improvisados no canto, algumas panelas e pratos velhos ficava do lado junto a roupas.

Um voz estridente então ecoou vindo de trás da parede fina que dava para o quintal de terra. Allen, agora uma criança. Se encolheu involuntariamente no canto do cômodo. Um homem de barriga protuberante enfiado em um macacão branco e encardido cuspia palavrões em turbilhões, tinha a pele avermelhada de raiva, suada, e veias saltavam da testa. A barba por fazer estava suja de comida e de algum líquido que fedia a cerveja. Uma menina entrou choramingando atrás dele chamando por Allen com gestos. Os cabelos negros estavam desgrenhados e o braço tinha marcas vermelhas.

— Saia daqui garota!!! — Bradou ele.

Ela parou, baixou a cabeça e saiu. Dalson ainda estava encolhida em gesto involuntário, então o homem a olhou, lançou um sorriso mordaz e andou até ela. Ela gritou. “Não. Não pai”, a consciência de Allen conseguiu finalmente se tocar de que era ela ali, na infância, e aquele seu pai, e o que ele faria a seguir ela não sabia, agora ela apenas ouvia sons, como se não pudesse processar aquilo. Ela se sentiu sendo erguida. E jogada no chão novamente. Ouviu o vestido sendo rasgado e com espanto a pele quente do pai esfregando nas nádegas nuas. Sentiu desespero e dor. E então a visão voltou. Ele estava e cima dela e ela de costas para o chão, ele ria e arfava periodicamente. O membro oscilava entre dentro e fora dela. Ela sangrava.

De repente, no entanto, ela ouviu um estalo. O pai caiu no chão em um som abafado. A menina que a chamou estava com um bastão em uma mão e uma faca em outra. Ela respirava pesadamente e a face era agora dura e sem medo. Encarava Allen, porém o momento de distração custou caro, o pai tomou o bastão de sua mão e atingiu sua face. Custou-lhe um corte profundo acima do olho, o que viraria um cicatriz grossa no futuro. A menina caiu desacordada.

— De adeus a sua irmanzinha — mas ela já não via mais nada novamente.

Em um momento ela apenas ouvia e no outro ela conseguiu ver o homem de pé a sua frente se recompondo prestes a montar nela novamente. Ela gritou. Ele sorriu, estava suado e tinha a testa avermelhada pela pancada. Então sua irmã levantou. Cambaleante, mas ainda portava a lâmina. Ele não a viu. Ela olhou de Allen para ele e então uma lágrima surgiu em meio ao sangue que escorria, era como um pedido de desculpa. Ela ergueu a lâmina branca... e Dalson, enquanto ela corria se deu conta de algo que a estarreceu, ela quis gritar, mas estava aprisionada no corpo, ela se lembrou de tudo. A menina bradou um urro e enfiou a faca na barriga grande do pai, sangue manchou o macacão, ela enfiou de novo, e de novo, e de novo... Ele pôs as mão no sangue que jorrava, e caiu como um saco de merda no chão. Os olhos se fecharam. Ele morreu.

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Allen acordou assustada na poltrona de couro. O doutor mal disse as palavras de destrave da mente. Ela o encarou, uma figura esguia e silenciosa, quase desconhecida. Os olhos da mulher tinham algo mais agora, e tinham plena consciência de tudo. Se levantou, recolocou o chapéu com as mãos tremendo, retirou um bolo gordo de dinheiro e entregou a ele. Sem emitir uma palavra sequer. Saiu pela porta, o vento frio rugiu lá dentro e fez o doutor, ainda atônito se levantar. Ele andou pelo tapete branco, ficou de frente pela lareira e ali no chão, anônimo, estava o véu negro de Allen Dalson, que por anos escondia a enorme cicatriz que lhe adornava o rosto um pouco acima do olho.

Hipnose. Suspense.

Douglas Moreira
Enviado por Douglas Moreira em 06/02/2015
Reeditado em 08/02/2015
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