O Velho Quadro da Casa de Campo

Nota: baseado em caso real. Os nomes das pessoas envolvidas e parte das localidades foram substituídas; primeiro, para preservação; segundo, porque a família não gostaria de ter os fatos que inspiraram a presente obra divulgados.

___________________________________________ Morituri

Os Franco Barbosa são parte da própria história da cidade. Família tradicional, de brasão e reconhecimento, estabeleceram suas atividades de cunho agropecuário na região desde antes de o município ser efetivamente constituído, quando os "senhores do campo" faziam grandes fortunas e arrecadavam vastas extensões de terra para o patrimônio. Como acontece com a maioria das famílias que assim fizeram fortuna no passado, decaíram, mas o renome continua; todos os Franco Barbosa são conhecidos e a memória do falecido patriarca Hermínio Franco Barbosa é mantida nos museus e homenagens anuais.

Ainda possuem certa quantidade de terras produtivas na região, e a fazenda principal tem duas Casas Grandes, mantida a arquitetura da década de 20, quando foram construídas, bem como a decoração. A decoração é simples, porém curiosa. O ponto desagradável é que, aos Franco Barbosa mais jovens, pouca coisa restou da história concreta da família. Nada muito além de alguns álbuns e das transmissões orais feitas por tias, pais, avós. Da maioria dos objetos peculiares que decoram as Casas da Fazenda, antigos e valiosos sentimentalmente, esses moços quase nada sabem, e nem tem grandes interesses em saber.

Aconteceu em um feriado de Carnaval. É costume aqui na região que as pessoas que possuem propriedades rurais e que não gostam da folia, procurem o refúgio na natureza da qual podem desfrutar. Foi o que fizeram dois primos da família em questão: reuniram alguns amigos, as namoradas, dois freezers lotados de cerveja, apetrechos para o churrasco e foram para o "retiro", que fica há cerca de 32 quilômetros da cidade.

Deixando de lado os pormenores da farra particular, as bebedeiras de sempre e os desentendimentos oriundos delas, prefiro contar-lhes o que interessa.

Dentre as coisas que decoravam a cozinha, havia um quadro na parede ao lado da porta que sai para o pátio do lado da casa. A primeira coisa a se estranhar foi a incompatibilidade do objeto com o cômodo: ao lado de outros quadros pequenos que continham pinturas como vasos de flores e réstias de alho - típico das cozinhas -, estava ele: um grande quadro com a imagem de um jovem garboso.

Geralmente, esse tipo de obra de arte é colocado nas salas ou nos quartos, até mesmo nos corredores; ainda mais a obra em questão, que parecia ser, a primeiras vistas, o retrato de algum Franco Barbosa importante, ainda que não fosse o velho Hermínio, porque o velho Hermínio tinha fotos de quando era jovem, e não se parecia muito com o jovem da pintura. Era bonito, imponente. Segurava um chapéu em uma das mãos e uma espada fincada ao chão na outra, numa pose quase napoleônica; tinha longos e ondulados cabelos castanhos, que passavam um pouco dos ombros; era extremamente alva a sua pele e as bochechas levemente rosadas; vestia um traje burguês típico, ou talvez fosse uma véstia de navegador importante, algo do tipo. É difícil descrever; tentem os senhores, por consideração, imaginar o jovem.

Uma das garotas que estava na casa reparou no quadro e fez comentários.

- Que quadro bonito. Mas é um pouco assustador. Acho assustador esses quadros antigos com pessoas pintadas. Quem é o cara?

- Não faço a mínima ideia - respondeu um dos primos. Mas não é o tata (tataravô, Hermínio). Deve ser algum tio, sei lá.

- Por que tu não pergunta pra tua mãe?

- Já perguntei uma vez. Ela disse que não sabe quem é.

Enquanto acontecia essa conversa, outra das meninas reparou em algo e intrigou-se.

- Olha, Guilherme (o outro primo). É a tua cara!

- Verdade, Gui! Só te colocar essa roupinha aboiolada e uma peruca que tá pronto. É idêntico! - retrucou a outra menina.

Os jovens então observaram que era verdade. A imagem do quadro tinha singular parecência com o jovem Guilherme. Dava para dizer, inclusive, que era ele, na idade que tinha hoje, com aquela roupa e de cabelos compridos. Sem sombra de dúvidas, era um parente, ao qual o Guilherme saíra muito parecido...

Logo o assunto do quadro foi esquecido. O quadro não tinha data e nem assinatura. Os mais velhos não sabiam quem era. Parecia com um dos primos. Estava estranhamente pendurado na cozinha. A conclusão foi que tratava-se de um parente pouco importante, e ficou nessa. Mas Guilherme, que há muito tempo não ia à Casa da Fazenda, ficou intrigado. Como nunca havia reparado naquela pintura antes? Estava incomodado com a semelhança e por não saber quem era o retratado.

Assim, foi chegando a noite. O único que não conseguiu dormir foi Guilherme. Ainda meio atordoado do porre, resolveu tomar um pouco de água. Era madrugada. Entrou na cozinha, acendeu a luz, abriu a geladeira, pegou uma jarra de água e sentou-se em uma cadeira de balanço que por ali havia. Quase inconscientemente, flagrou-se com o olhar fixo no quadro. Sentia como se estivesse olhando para um espelho, que retratava uma época antiga dele próprio. Uma forma antiga, dele próprio. Ficou ali, parado, bebendo água, observando o quadro. De repente, uma tirada de filmes de terror clichê: pensou ter visto os olhos da pintura moverem-se. Levou um tremendo susto e voltou, ofegante, para o quarto, com o copo de água trêmulo na mão direita. Ficou um tempo sentado na cama, apavorado. Acordou sua namorada com o movimento, e contou a ela o acontecido. Ela riu, e disse que ele estava assistindo muita televisão. Em seguida, foi vencido pelo cansaço e pela bebedeira, pegando no sono.

Na manhã seguinte, Guilherme foi o último a levantar. Quando acordou, todos já estavam na cozinha, preparando café preto sem açúcar. A namorada de Guilherme estava contando aos demais o que acontecera na noite passada, pensando na brincadeira mais vergonhosa para fazer com o rapaz por conta disso, quando ele apareceu na porta da cozinha.

Todos espantaram-se com sua má aparência. Tinha olheiras fundas demais para uma ressaca. Estava extremamente pálido e seus lábios muito ressecados. Trazia consigo o copo no qual levara água para o quarto na madrugada anterior. Estava descalço e vestia uma camisa branca toda amarrotada. Caminhou, sem dizer uma palavra, em direção à pia e deixou ali o copo.

- Bom dia, seu Guilherme! Tudo isso é ressaca? - brincou seu primo.

Guilherme não respondeu.

- Oh, surdão! Tô falando contigo! - insistiu.

- Ahn. Ah! Comigo? Ah, sim. É. - respondeu enfim.

Todos notaram que ele realmente não estava bem. Aconselharam que tomasse um banho frio e um café forte, para melhorar do porre logo. Também podia ser que ele tivesse simplesmente adoecido de alguma coisa, sabia-se lá... Naqueles confins, haviam mosquitos que poderiam transmitir doenças. Pensaram várias coisas ao mesmo tempo. Por fim, conseguiram fazer com que Guilherme se deitasse um pouco mais. A namorada foi tirar-lhe a camisa e viu que, nas costas, Guilherme tinha um enorme corte, que ia de ombro à quadril. Parecia ser fundo, porém não novo. "Mas como? Da onde isso? Ontem ele não tinha isso!" - pensou a menina.

- Guilherme, o que houve com as tuas costas?

- Ontem fui caminhar no campo à noite quando, passando uma cerca de arame farpado, arranhei as costas.

- Por que tu tá falando esquisito assim? Tu deve estar doente mesmo... Que horror. Vai ver foi algum bixo que fez isso aí em ti, algum bixo peçonhento. Também, andando no mato de madrugada... É pedir coisa ruim mesmo!

A garota foi contar aos outros. Ficou decidido que voltariam para a cidade naquele dia mesmo e o levariam ao hospital. E assim fizeram.

A viagem foi pesarosa. Estavam todos cansados, de ressaca e preocupados com Guilherme. Ele era o mais jovem dos primos... E se acontecesse algo de ruim com ele? A família jamais perdoaria Inácio...

Chegando na cidade, foram direto ao pronto-socorro. Que grande vergonha não passaram todos quando o médico, ao examinar as costas de guilherme, não encontrou sequer uma picada de mosquito!

- Gente, vocês estão um pouco altos ainda. Vão pra enfermaria, vou pedir pra alguém fazer uma glicose em vocês... - disse o médico - O rapaz aqui só está com um probleminha de fígado por conta do álcool, nada de mais. Fiquem tranquilos.

O pessoal se entreolhou. Pairou uma atmosfera de desconfiança no ar. Era uma situação no mínimo esquisita. Foram fazer o procedimento na enfermaria.

Voltando pra casa, foi uma enorme discussão.

- Olha gente, nós sabemos o que vimos, ok? Guilherme, o que que foi, tu tava brincando ou algo assim? Por que não foi engraçado. - disse Inácio.

Guilherme estava dormindo, ou fingindo que dormia. Inácio deixou todo mundo em casa e deixou Guilherme por último.

- Ué, o Carnaval terminou mais cedo? - disse a mãe de Guilherme.

- Não foi nada tia, só não tava lá essas coisas. Muito quente e tal. Resolvemos voltar. O Gui tá meio de porre ainda, mas já estivemos no hospital. Logo vai estar bom já.

Nos dias subsequentes, não se encontraram mais, só se falavam por telefone. Guilherme logo melhorou, recobrando a cor na pele e perdendo as olheiras. Porém, nunca mais foi o mesmo. Os pais diziam que foi culpa da bebedeira, que ele tinha sofrido algum dano neurológico, alguma coisa assim. Não era nada para causar severa preocupação, mas ele estava diferente. Sultimente diferente. Na maneira de falar, de agir... Não fazia nada errado, só fazia as coisas de um jeito... Diferente! Desculpem as repetições mas a palavra é mesmo essa. A mãe do menino, após muitas conversas, conseguiu levá-lo em um psicólogo. O parecer foi que ele estava passando por um período de transição para a maturidade, afinal, tinha só dezesseis anos...

Uns sete ou oito meses depois, os irmãos Franco Barbosa resolveram mandar arrumar as duas Casas de Campo, trocar algumas telhas e coisas do tipo. Um deles então foi até lá para retirar das casas objetos que pudessem danificar durante a obra; entre estes objetos, veio um quadro - era o retrato, o quadro da cozinha.

- Olha só, Abelar! Quem será que foi esse parente?

- Pois sabe Adácio que a gente nunca ficou sabendo... Mas olha, pelo jeito era violento!

- Por quê?

- A espada. Pintaram sangue na lâmina...

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A família Franco Barbosa guarda hoje o quadro em casa. As únicas pessoas que fizeram ligações com os fatos foram os jovens que estiveram na casa de campo naquela noite de carnaval, após Inácio ter visto o quadro na casa de um dos tios e ter reparado que haviam coisas diferentes nele, como o sangue na espada e a ausência das retinas nos olhos. Tentaram falar sobre o assunto com a família, mas não lograram êxito. Dizem que Guilherme desenvolveu gostos que não tinha antes, como apreço por cavalos e pelo mar. Sempre que podia, viajava para a praia. Deixou o cabelo crescer. As vezes, falava coisas que ninguém entendia; tinha o palavreado de quem lê muito, um tanto rebuscado demais para um adolescente. A namorada o abandonou, e ele aparentemente não se importou nem um pouco. Nunca mais saiu com os amigos. Atualmente, está estudando história em uma universidade federal.

Femina Morituri
Enviado por Femina Morituri em 09/02/2015
Reeditado em 10/02/2015
Código do texto: T5131378
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