O Arlequim negro (especial carnaval)

Os enormes cartazes e o letreiro no frontispício do teatro municipal anunciavam o show de Andros Conti, o Arlequim Negro. André Figueiredo, ator performista que dava vida ao personagem emblemático que vinha fazendo sucesso há semanas, era um ilustre desconhecido, engolido pelo sucesso de sua criação. Ninguém se referia a seu nome verdadeiro, apenas Andros Conti era citado nos jornais, na TV e na internet. Ele não achava ruim, afinal isso lhe permitia circular tranquilo pelas ruas, o que para ele era vital como o ar que respiramos: essa liberdade dos anônimos…

Dentro das pesadas e antigas paredes, todas as luzes se apagaram mais uma vez e o burburinho da plateia deu lugar a um silêncio de expectativa. Era hora de começar o último ato, o número que deixava a todos boquiabertos noite após noite. Era sempre um número surpresa, depois das apresentações de ilusionismo perfeitas que impressionavam bastante, intercaladas com malabarismos e peripécias do ator vestido e mascarado a caráter como o personagem secular numa roupagem futurista de losangos de seda pretos e prateados.

Na total escuridão, as pesadas cortinas se afastaram lentamente revelando um palco vazio na penumbra. Uma névoa de gelo seco revoluteava junto ao piso e um piano começou a tocar furiosamente ao longe. A primeira surpresa foi uma chuva de pétalas de rosas sobre a plateia, seguida pelo perfume suave das flores, que tirou várias interjeições dos mais românticos. Uma luz tênue surgiu no fundo do palco e por causa dela divisaram uma figura sombria deslizar até a frente. O Arlequim Negro reaparecia, mas agora envolto em um manto negro com capuz que o cobria inteiramente. A primeira coisa a aparecer fora do manto foi uma mão ossuda e muito pálida. Depois outra. A cabeça se revelou com um rosto limpo tão pálido quanto as mãos que o cobriram. Num gesto rápido o manto foi jogado para trás e o rosto agora portava uma máscara branca com plumas vermelhas nas extremidades, que ninguém viu de onde surgiu. Mais um movimento rápido e leques brotaram naquelas mãos ossudas. A cada movimento deles sobre o rosto a máscara era trocada como mágica. “Como ele faz aquilo?” – pensaram as pessoas que assistiam ao show, fascinadas.

A música vigorosa do piano foi se acalmando até se tornar uma balada triste, e um grupo de bailarinos negros dos pés à cabeça tomaram o segundo plano, criando um balé de sombras. Do teto desceram mais dois bailarinos em faixas de tecido rubro e a música voltou a tomar a fúria inicial. Embora esses elementos adicionais criassem uma cena muito rica visualmente, toda a atenção mantinha-se concentrada no Arlequim Negro, seus leques e máscaras infinitas se sobrepondo. Ele se afastou da frente do palco, os bailarinos se juntaram e uma das figuras se ergue. Da roupa negra que se abriu feito um casulo, uma jovem de cabelos ruivos e rosto maquiado feito uma colombina exibiu por pouco tempo o corpo nu exuberante na frente da plateia. Por trás dela o Arlequim Negro ressurgiu com o manto e a envolveu, dando-lhe um beijo voluptuoso. Um grande telão sobre o palco mostrava o beijo em close para que todos vissem bem: A ruiva se curvava sobre o braço do Arlequim que a beijava, os longos cabelos soltos em cascata…

E o susto: Quando o Arlequim ergueu a face, seus lábios e queixo estavam sujos de sangue e longas presas apareciam no lugar dos dentes! A jovem deixava a cabeça tombar como se estivesse morta, com sangue escorrendo pela pele lívida contornando um dos seios! Fecham-se as cortinas e as luzes acendem. A plateia aplaude de pé. Fim do espetáculo dessa noite…

-Quem é ela? – pergunta Andros Conti a um de seus assistentes, ainda limpando com as costas da mão o sangue quente no rosto.

-Uma jovem desconhecida, que queria ser atriz. Selecionei-a ontem. – respondeu com voz gutural o bailarino, após retirar a máscara que lhe cobria totalmente o rosto, revelando uma face deformada e olhos totalmente amarelados, sem pupilas. – Não tem parentes aqui e vem de longe, Mestre…

A figura asquerosa sorriu e passou uma língua reptiliana sobre a arcada de presas afiadas aparentes, pois não possuía lábios.

-Podemos devorá-la agora? – perguntou ansioso, enquanto os demais bailarinos grunhiam impacientes no fundo do palco, alguns já sem as malhas, exibindo corpos pútridos e faces tão horripilantes quanto a do outro bailarino assistente de Andros.

-Essa não, meu amigo… Leve-a para meu camarim, eu a quero usar antes… Mais tarde poderão se fartar com ela.

Após o término da temporada de shows do Arlequim Negro, a polícia começou a investigar uma curiosa onda de desaparecimentos de jovens moças aspirantes ao sucesso na profissão de atriz.

Desconhecido
Enviado por princesslove em 09/02/2015
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