Andorinhas
 
 
- Pedra na estrada, doutor?

- Que nada, é uma andorinha, coitada. Deve ter caído de uma altura muito grande para ter feito esse estrago no para-brisa. Nessa época de calor aparece um monte delas, né?

- Eita, que chato! Tem sim. O pior é que aqui até no inverno é cheio de andorinhas.Tem um amigo meu que mexe com essas coisas ai. Se o doutor quiser, posso pedir para ele dar uma olhada aqui.

- É claro. É meu primeiro dia de plantão aqui na clínica, mas irei ficar até tarde. Será que dá tempo de arrumar isso até a noite?

- Já vou ligar para ele. O doutor pode ficar sossegado que já já está por aqui. Dá tempo sossegado.

- Seu nome?

- João, doutor. Sou o jardineiro aqui.

- Obrigado, João. Chamo-me doutor Elias. Você é muito gentil. Precisando de qualquer coisa, me avise.

- Pode deixar, doutor. Aviso sim.
 
Elias era médico residente de psiquiatria. Alto e magro, ostentava uma vasta cabeleira encaracolada de cor marrom. Seus 27 anos, somado com a falta de pelos em seu rosto, mantinha-o sempre com um ar jovial. Jovem demais para ser médico, diziam algumas algumas línguas sem ócio. Sua aliança dourada em seu dedo esquerdo era o desconforto de muitas mulheres.

-Boa tarde, senhor Pacheco.

- Boa tarde, Elias. Pontual como na descrição da sua ficha. Gosto de alunos assim. Queira sentar-se, por favor.

-Último ano de residência, meu rapaz. Lembro-me da minha época. Eu não estava tão sorridente quanto você. Tive professores da pesada. Bom, o que lhe fez escolher a clínica como sua última experiência de psiquiatria?

-Bom professor - alongou-se à frente para pegar um copo de água depois de um balançar positivo da cabeça de Pacheco  -, estou trabalhando no meu projeto posterior de doutorado, e preciso de mais experiências em clínicas. O senhor deve saber bem como é.

-Sim, claro. Pensando no futuro, isso é bom. Certo, vamos. Vou lhe mostrar as divisões do lugar e os plantões dos pacientes.

Gordo e desajeitado, Pacheco era diretor da clínica há 7 anos. Orgulhoso, dispunha de diplomas, prêmios de encontros e congressos na área de psiquiatria na parede da sua sala. Usava sempre uma camisa social, verde ou azul, com uma generosa mancha de suor nas costas.

-Então, agora esses quartos estão vazios. Os pacientes gostam de aproveitar bem o sol. Isso os deixam calmos. Sou bem maleável quanto a isso, exceto quando abusam e temos que conter. Quero que você se atende a isso também. - pegou um copo de água do filtro e continuou: - alguma dúvida sobre os quartos aqui de dentro?

-Não, senhor. Não é muito diferente do padrão.
-Muito bem. Vamos ao jardim.

O sol do meio dia era agradável para todos. O jardim era dividido em três locais distintos. Dividido por cercas de ferro,  o grande jardim oval dispunha de local para visitas, mesas com jogos e uma pequena piscina com mais ou menos trinta centímetros de profundidade. Ao longe, Elias acenou para João que estava mostrando o carro ao seu amigo mecânico.

Um pouco acima do peso e com uma barba preservada desde que nasceu, João deu sua vida por aquele lugar. As manchas marrons na sua pele eram resultado das longas exposições ao sol no jardim. Sempre com sua tesoura de jardineiro na mão esquerda, era mais que um quebra galho dali.

-Ah, esse é o João. - disse Pacheco acenando também para o jardineiro enquanto usava a outra mão para enxugar o suor na sua testa - Esse dai é relíquia da clínica. Quase 30 anos de serviços. Que coragem, né? Bem, vamos lá.

Enquanto caminhavam pelo jardim dos jogos, Elias apontou para uma paciente em especial:
 
- Essa mulher, o que ela tem? Estranho esse tanto de andorinhas em seus ombros?

- Essa dai é a Suzana. Louca de pedra, sabia? - Pacheco continuou ao notar que Elias não entendera sua ' piada ' no local apropriado para loucos - É uma longa história.
 
**      
''Devolvam meu filho. Devolvam meu filho!!!"

Com o seio à mostra, e com gotas de leite saindo da aureola amarronzada, Suzana gritava para o alto naquela noite sem estrelas e sem lua. A luz que quase cegara seus olhos, dera lugar para a escuridão novamente. Os cachorros continuavam a latir quebrando o silêncio na rua.

"Devolvam meu filho..."

Sem forças para dar mais um grito, desfaleceu.

Aos poucos, os carros de polícia foram saindo da rua cheia de curiosos. Vizinhos que a conheciam não conseguiam acreditar que ela teria coragem de fazer algo com seu bebê tão esperado.

" Será que enlouqueceu de vez?"

" Não sei, viu. Depois que o namorado a deixou quando ganhou o bebê... Vai saber."

" Eu avisei muito, sabe? Mas sempre me dizia que era o homem da sua vida. Parei até de dar conselhos. Vai saber se pensava que eu queria ficar com seu marido."

“ Vocês viram ela dentro da ambulância? Estava doida de pedra. Eu, hein!”

As gotas do soro pingavam lentamente. O som do monitor cardíaco cortava, pontualmente em bips, o som do quarto do hospital. Dois olhos vagos piscavam lentamente, seu cérebro , aos poucos, esforçava-se colocando as sinapses em dia tentando, silenciosamente, se localizar. Com um gosto amargo na boca, Suzana lembrou-se e, com um ímpeto de fúria, arrancou o acesso venoso do seu braço e gritou: Devolvam minha filha! Cadê minha filha?

O quarto encheu de médicos e enfermeiros fazendo-a repousar novamente.
 
**
 
-Perdeu a filha, coitada. Ninguém sabe o que aconteceu. Dizem que ela o matou. Outros dizem que uma luz do céu levou ele. Ficou louca. Fiz vários exames e nada. Nenhuma causa. Eletroencefalograma, tomografia, ressonância magnética, nada consta nos exames. Seu cérebro é normal. Não encontrei nenhuma área afetada junto com o neurologista. – João parou por um minuto fitando Suzana de longe como quem sente dó e continuou : - Sobre os pássaros, é estranho. Não sei o que acontece. Simplesmente eles gostam dela e, do nada, um deles voam subindo quase que em linha reta e somem.

Em um banco à frente dela, Pacheco e Elias sentaram-se observando-a.

Suzana era quase tão branca quanto sua roupa de paciente. Com um grande e macio cabelo negro, sua pele ficava ainda mais cândida. Seu olhos, cansados, eram castanhos vivos, mas eram difíceis de se ver dentro da grande bolsa de insônia abaixo deles. Parecia ignorar o mundo ao seu redor, dando importância somente ao céu.
Os pássaros cobriam seus ombros. Ao dizer alguma coisa no ouvido de um deles, uma rajada de vento, produzida por duas pequenas asas, fizeram esvoaçar seu cabelo. Ganhando o céu quase que em linha reta, o ponto marrom ia ficando cada vez menor. Pacheco e Elias, com a mão protegendo seus olhos do sol, olhavam inquietos o comportamento do pássaro. Suzana encolheu os ombros abaixando sua cabeça demonstrando saber que, o que fazia ali, fora sem sucesso mais uma vez. Os outros pássaros a deixaram em paz e partiram em direção aos seus ninhos nas árvores que rondavam a clínica.

-Pronto, doutor.

Elias assustou-se quando João quebrou o silêncio daquele momento. Demorou um pouco para responder. Precisou de um tempo para se colocar no lugar. Ao ver que Suzana caminhava em direção ao seu quarto, respondeu:

 
- Sério? Mais já? – retirou o talão de cheques do seu bolso – Quanto que foi?

-Olha, doutor. Seu carro é importado, vidro difícil de achar. E teve que trocar tudo. Seria mais caro, mas meu amigo tinha um do seu modelo na oficina. Ficou quatrocentos reais.

- Toma - disse entregando a folha-, o cheque de quatrocentos reais e esse cinquenta reais é para você.

-Doutor, não precisava. – guardou rapidamente o dinheiro na carteira . – Vou dispensar meu amigo. Não quer dar uma olhada no serviço?

-Não, confio em você. Qualquer coisa lhe acho aqui , certo?
João assentiu positivamente antes de dar as costas. Elias deu mais uma olhada para o céu antes de levantar-se do banco. Pacheco estava ao seu lado enxugando sua testa com um lenço olhando o céu também.

-Vamos para a parte burocrática agora, Elias.

-Sim, vamos.
 
**
 
“Olha Suzana, eu quero te ajudar. Mas fica difícil acreditar na sua versão."

O delegado já estava impaciente com a hitória que ela dissera. Como acreditar em referências alienígenas?

“Você esta me dizendo que depois de uma luz branca algumas pessoas, quase sem forma, saíram de uma espécie de nave e levaram seu filho? Me desculpe minha senhora, e os pássaros, sabe que pássaros dormem à noite?”

“Delegado, por favor encontre meu filho.”

Contorcendo-se com os ombros entre os joelhos, Suzana repetia a todo momento a mesma história para todos que perguntavam. Já se passara três dias desde o desaparecimento da criança e as esperanças de encontrá-lo com vida iam acabando.

Vendo que não adiantava tentar contrariá-la o delegado continuou:

“O que os pássaros faziam ao lado daquelas pessoas que levaram seu filho?”

“Eles não queriam deixar levar meu bebê. Tentaram não deixar. Mas não conseguiram, não conseguiram.”

“E por que eles impediriam isso? E seu filho, por que levar seu filho?”

“Jesus, eles trouxeram Jesus. Eu sei. Os anjos, eram eles. A todo momento eles estavam aqui. As pessoas que saíram da nave eram os anjos de Jesus. Maria Madalena também viram eles. Querem ele de volta, e meu filho é o novo Jesus. As andorinhas não gostam de sofrimento. Meu filho vai morrer que nem Jesus. Que nem Jesus. Jesus de Maria Madalena. As andorinhas choram ao saber de morte. Elas tentam buscar meu filho, mas não conseguem”

Segurando um pouco da raiva, continuou as perguntas:

“Seu filho é o novo Jesus? Sabia que seu filho desapareceu em julho e neste mês é inverno? Andorinhas não ficam no inverno, minha senhora. Por isso e por tudo, não da para acreditar na sua história."

No vidro do quarto do hospital, o delegado sentiu um arrepio na espinha ao ver um pequeno passarinho bicar o vidro naquela hora da noite.

 
**
 
-Enfermeira, pode chamar a paciente Suzana Barbosa, por favor? - Disse Elias examinando a ficha da paciente.

A enfermeira deu de ombros e saiu voltando pouco minutos depois com a ela ao seu lado.

- Deixo-a aqui mesmo, Doutor?

-Sim, por favor. Depois eu a levo para o seu leito.

- Feche a por.. - Levantou-se para fechar a porta olhando curiosamente para Suzana que estava com o corpo curvo e balbuciando palavras que não conseguia entender.

-Suzana seu nome, certo? Disse um pouco apreensivo.

-Meu filho. Você vai trazer meu filho? - disse olhando de soslaio para Elias.

-Infelizmente isso esta fora de meus limites.

-Então sai. Sai daqui. Sai. Todo mundo conversa comigo. Todo mundo. Não quero mais remédio. Não quero mais conversar com ninguém. - estava ficando agressiva - Só quero meu filho.

Por um breve momento, Elias conseguiu ver verdade naquele olhar de súplica. Tentando amenizar a agressividade dela usou de todo seu eufemismo para continuar a conversa.

-Olha, eu quero te ajudar a encontrar seu filho. Mas como faço isso?

Suzana parou um pouco seus movimentos repetitivos com a cabeça e começou a chorar.

-Não sei. Não. Não sei como. Não sei. - Voltou a ficar agitada.

-Enfermeira!

Com o olhar de cobrança, a enfermeira fitou Elias na porta do consultório com a pergunta muda: “O senhor não a levaria depois”?

-Pois, não?

-Leve a Suzana por favor. Tente a convencer de tomar seu ansiolítico.

A porta bateu com um som seco. Elias posicionou seus dois cotovelos sobre a mesa e, colocando as mãos conchas sobre a boca, começou a pensar. Ao virar sua cabeça para o lado de fora, além do sol laranja que já começava a chamar a lua, viu à beira da janela uma pequena andorinha espiando.
 
**
 
A lua já ganhara o centro mais alto da noite. Carregado de estrelas, o céu negro era salpicado de gotas cinzas. Toda cheia de charme, o satélite prateado exibia-se para algum luar de uma constelação distante. Os grilos disputavam uma luta covarde contra a cigarra que morrera de tanto esforço. A clínica ganhava menos quartos acessos, e as enfermeiras fechavam, quase que ritmadas, as cortinas.

- João, que cheiro de carniça é esse? - disse Elias verificando o vidro do seu carro - Algum rato morto aqui perto?

- Não, doutor. - disse João apontando em direção as árvores - Eu fui limpar o jardim e tinha duas andorinhas mortas. - deu uma fungada no nariz - Sabe, sempre aparece algumas delas mortas por aqui. Deve ter sido uma delas que caiu no vidro do seu carro. Já vi umas caindo. Coisa estranha, né? Mas o senhor tem razão - deu às costas em direção ao lixo - Eu deveria tê-las enterrado como as outras. É que pensei que o lixeiro passa amanhã cedinho, sabe né?

-É estranho - disse Elias ligando a ignição do carro. - Até amanhã. E obrigado mais uma vez.
 
**
 
O dia ganhara forma quando o carro de Elias estacionou na clínica. Depois de um mês dando plantões, achou estranho João não lhe abrir o portão como fazia todas as manhãs. Ao sair do carro, notou que pisava em pássaros mortos. Ao menos cem pássaros estavam caídos ali no chão.

-Doutor, não pise neles. venha por aqui.- Disse João apontando para a entrada principal da clínica.

-Mas o que foi isso, rapaz? - disse apontando para o chão - Que tipo de veneno você anda usando nessas plantas?

-Doutor, suba aqui. - puxando Elias pelo braço, João chegou ao alto da sacada e apontou para o chão - O que você vê escrito?

A primeira coisa foi uma brincadeira de mau gosto. Depois um leve calafrio lhe subira a espinha. Estava acostumado, nem tanto para um psiquiatra, com corpos e coisas estranhas na sua profissão. Mas aquilo beirava o cúmulo do absurdo. Eram bem mais de cem pássaros que estavam mortos no chão. Antes de ler direito a frase que as andorinhas formaram aali mortas, viu ao longe o corpo de Suzana balançando suavemente na árvore com um colar de corda em volta do pescoço.

-O que está acontecendo aqui, João – disse Elias trêmulo, engoliu seco e continuou: - O que foi isso?

João estava cabisbaixo, nunca vira coisa assim em toda sua vida. Olhava para o chão com sua tesoura de jardineiro estacionada, quase caindo, em sua mão esquerda.

-Não sei, doutor.- olhou mais uma vez para o corpo de Suzana balançando - cheguei de manhã e encontrei isso que o senhor está vendo. - tirou um pedaço de papel de dentro de sua blusa - Olha, isso estava ao pés dela. Uma carta com sua letra.
 
 
“Loucos! Vocês é que são loucos! Sim, eu também posso ser louca. Mas sempre irei acreditar no que me dizem. E como não confiar no meu coração? Ele é bem melhor que todos vocês juntos. Não, não irei morrer. Descobri minha passagem para reencontrar meu filho. Usem meu corpo como quiserem. Estudem-no, porém nunca encontrarão nada de diferente do de vocês. O meu bem mais precioso estou levando: minha alma. Ah, sobre os pássaros: eu sempre estivera errada. Eles não estavam tentando resgatar meu filho, queriam ir para o mundo melhor também, mas morriam com o ar rarefeito deste podre planeta. Caíam mortos e felizes. Sempre sentiam o cheiro doce do meu bebê, e agora eu também estou sentindo. Já que não posso voar, irei desafiar a gravidade e pairar meu pés antes do chão. E não, meu filho não é o novo Jesus, sempre errei muito nas escolhas. Meu filho é um novo deus. Eu? Serei uma eterna santa, a sua mãe.”

Com um nó seco na garganta, Elias dobrou a carta e olhou mais uma vez para o chão coberto de pássaros. Em uma sintonia perfeita, os corpos formavam uma frase mais legível quanto como escrita à mão:
 
“Sim, nós existimos. E nunca mais iremos ajudar vocês. Contemplem sempre as pirâmides. Ingratos”
 
**
 
Duas lascas de pedras envolviam-se em um atrito súbito. Cada vez mais rápido, faíscas eram produzidas provocando fogo no chumaço de grama seca que estava ali. Pegando a grama em brasa e alternando entre as mãos, ele saiu correndo em direção dos homens pássaros. Com uma sobrancelha robusta e um olhar apreensivo, o neandertal contemplava sua glória diante de outros guerreiros. Agora, muitas pedras brincavam de fazer fogo. Todos os chumaços acessos eram oferecidos aos homens pássaros. Comportamento digno de alunos para com seu professor. As mães, orgulhosas de suas crianças que também tentavam ganhar seu ‘diploma’, aproveitavam o tempo raro de atenção dos pequenos para tirar piolhos dos grandes pelos que envolviam aqueles corpos.

Um pouco ao longe, uma luz ofuscante pousara lentamente no grande vale verde. Saindo de dentro da nave, uma grande forma redonda girava delicadamente por entre as gramas guiada pelo homem pássaro. Fungando e com toques de medo, os neandertais começavam a ganhar intimidade com aquela nova peça. Logo, estavam brincando com ela, girando de um lado para o outro. As crianças giravam dentro do meio do orifício da roda.

Ao longe, um neandertal esquecido desenhava nas enormes paredes rochosas das cavernas.
 

“E o mundo, perdeu muito com o fim da inocência.”

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Contadores de Histórias
Enviado por Contadores de Histórias em 28/02/2015
Reeditado em 13/03/2015
Código do texto: T5153546
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