O Violino de Hélida

Ah, a música! "A Arte das Musas"... Impossível lhe dar rótulos. A música, a harmonia dos sons que são completamente distintos de fenômenos meramente ruidosos, que constituem as diversas escalas sonoras do Dó ao Si... Sim, a música. O regozijo transcendental do qual se valeram os antigos alquimistas para explicar a origem dos mundos; que diverte as massas e aconchega a introspecção; que desperta a emoção dos enamorados; que atravessou os éons dos tempos e fez parte de toda e qualquer sociedade até hoje.

Ainda lembro do meu primeiro violão e do primeiro acorde que aprendi - o de Ré Maior. Mas aqui, senhores, não se desfechará uma história muito graciosa a respeito da magnífica arte de Beethoven, o grande Elohim do Templo Sonoro. Aqui, é justo que se conte a desgraça que recaiu sobre a jovem violinista Hélida; há quem divirja, dizendo que não foi culpa da música, porque não poderia sê-lo... Contudo não pretendo desenredar, e deixarei ao sabor do julgo dos leitores.

O ano era 1974. Hélida, de seus tenros dezessete anos, aspirava viajar o mundo com seu violino. Era exímia violinista; começara a estudar música com quatro anos e logo sua paixão foi desperta pelo singular instrumento de arco. Ainda não eram os melhores tempos para as mulheres artistas, pois havia sério preconceito entre as famílias, apesar da efervescência de certos movimentos culturais da época.

Mas a moça nascera em meio à música; sua avó paterna fora conhecida por possuir uma das vozes mais belas do blues de New Orleans, onde morou até os cinquenta anos, altura em que regressou ao Brasil e veio a falecer em seguida devido a complicações no fígado; sua mãe estudara piano e deu aulas em casa até enquanto a saúde lhe permitiu, e seu pai entendia-se com os instrumentos de sopro – herança do blues materno. A bem da verdade, os pais de Hélida enchiam-se de orgulho da filha e partilhavam do sonho dela.

Naqueles idos, o Teatro Municipal apresentava, a cada quinzena, um espetáculo com a orquestra local. Hélida tinha, por simpatia do maestro e justa admiração do público, um número solo, onde executava geralmente músicas próprias, já que também compunha – e muito bem, interessa dizer. Aquele momento sob a luz era mágico, divinal. O encanto pelo talento da menina era unânime, e assim ela tinha expressiva soma de admiradores, que lhe mandavam sempre pequenos mimos ao camarim e, os mais ousados, flores à porta de casa, anonimamente, nas mortas horas da madrugada. É natural que a jovem ficasse lisonjeada com os presentes, mas nada além disso. No momento em que os recebia, sentia aquela narcísica simpatia, inerente do psique feminino, para logo esquecer por completo. Porém, houve um que lhe foi inigualável... Terrivelmente.

O domingo amanheceu espetacular; Hélida despertou por volta das oito horas e foi surpreendida com as batidas da mãe à porta do quarto enquanto penteava os louros cachos.

- Hélida! Hélida, minha filha, apressa-te. Eis que te deixaram à porta um presente em caixa grande. Vem ver!

- Ora, mamãe, bom dia! Santo alvoroço... Senão vejamos, o que será desta vez? - disse, sacudindo o pacote. - Aposto em uma obra de arte! Que tal um quadro? Imagine se um pintor, enamorado por mim, resolveu retratar-me a tocar? - E riu.

O pacote media aproximadamente setenta centímetros por um metro, com altura lateral de uns dezesseis centímetros; estava envolto em papel pardo, fechado com barbantes, sem nenhuma identificação do remetente ou selo dos correios, o que indicava que foi deixado a mãos próprias. Quão grande a surpresa da artista ao abrir o presente! Tratava-se, a primeira vista, de um estojo para violino, trabalhado em veludo bordô, finíssimo. Maravilhada, Hélida demorou alguns segundos para intentar às dobradiças e observar-lhe o interior; quando o fez, eis que a surpresa passou a espanto: havia dentro do estojo, repousado em mais nobre estofamento revestido em seda, um belíssimo violino.

O instrumento era realmente impressionante, confeccionado por mãos de cuidadoso artista, sem dúvida. Em ébano e átiro, coberto por verniz fosco envelhecido, tinha, da queixeira à voluta, delicadíssimos entalhes em formato de arabescos. Chamavam a atenção as cravelhas, de pura prata 925. Era de um estrondoso requinte. No grande e pomposo estojo ainda haviam o arco e uma flanela branca, acetinada, igualmente trabalhada com bordados arabescais.

A jovem ficou estupefata. Que presente! Que belíssima peça! Certamente uma obra de arte, ainda que não fosse o quadro... Era infinitamente melhor do que qualquer outro regalo que já recebera.

Houve grande alarde na casa. Os pais estavam de queixos caídos ante o violino. Teria a filha apaixonado algum jovem ricaço amante da música? De qualquer forma, essa possibilidade não parecia fazer alguma diferença para a moça, afixada na beleza do instrumento, hipnoticamente.

Por três consecutivos dias, Hélida não tocou no violino novo. Praticava em seu velho e estimado, e sentia como se não tivesse coragem de fazê-lo no outro. Apenas abria o estojo e vislumbrava, encantada, o inusitado presente. Até que, numa noite sem sono, foi subitamente tomada por uma ideia volitiva acerca de determinada composição. Ergueu-se então da cama, calçou-se, vestiu-se, e tomou nas mãos o estojo bordô. Sem nenhum titubear, tirou-lhe o objeto exíguo do interior e, posicionando-o com carinho, fez soar do arco às cordas o som mais belo que já ouvira em toda a sua vida. Tocou então a famosíssima “La Campanella”, de Niccòlo Paganini, deliciosa composição em Mi Menor.

A canção, originalmente já tão bela, parecia ter tomado um novo e elegante manto d'ouro quando executada com aquele violino. Daquela noite em diante, Hélida abandonou totalmente seu antigo instrumento e passou a praticar apenas no novo, extraordinário.

Praticava por horas a fio, incansável. Por ali soava Bach, Paganini, Beethoven, entre tantos outros. A música parecia renascer através daquele luxurioso encontro entre cordas, dedos e arco. Não demorou muito para que a moça levasse à palco o seu presente. O maestro ficou deslumbrado por ele, e atemorizado por outro ângulo. Ocorreu que, após acompanhar Hélida ao violão em uma sonata, pediu cheio de alegria à moça para tocar algo com suas próprias mãos calejadas, ao que a aluna não relutou em entregar-lhe o fantástico instrumento. Mas tamanho foi o espanto quando o excelente maestro nada conseguiu extrair dali senão uns ruídos mui desagradáveis! Não conseguia entender como acontecia: a menina tinha tamanha intimidade com aquele violino que, mesmo ele estando, aos olhos de um experiente profissional, completamente avariado, ela tirava-lhe sons divinais. Era sem dúvida uma incógnita.

O maestro franzia a testa àquele violino, mas permitia que a jovem se apresentasse com ele, porque o som era indubitavelmente magnífico.

Conforme as semanas passavam, Hélida aperfeiçoava cada vez mais sua técnica. Por muitas horas do dia, o violino era seu principal companheiro, e já nem sequer mostrava um pingo de interesse pelos mimos que recebia dos admiradores, deixando toda a tarefa de abri-los para a mãe.

A descoberta nefasta aconteceu numa tarde morna de primavera, enquanto ela praticava. Ao remexer o estojo em busca da flanela, deu por conta de que ele possuía uma espécie de guarda-volumes ao fundo, que só podia ser aberto com forçoso puxão. Demorou um tanto para conseguir levantá-lo, mas com real esforço logrou êxito. Lá estava, depositado, na madeira que formava o fundo do estojo, um envelope. Dentro do envelope havia uma folha de partitura, bastante amarelada. Parecia, a um correr de olhos, qualquer canção curta desconhecida. Poderia ser – pensou a moça – do antigo dono do violino, se é que houve algum dono anterior; examinou com mais cuidado a partitura e percebeu algo interessante: a canção contida no papel estava formada quase que inteiramente por trítonos.

Essa é a parte da história em que devo desapontar um certo benquisto leitor, que me alertou dos perigos de explicar coisas dentro do que se escreve, quer no início, quer no meio; desde já peço a ele desculpas, mas é preciso que eu assim faça.

Um trítono é uma determinada composição de notas, que apesar de ser muito antiga, é vastamente utilizada na música moderna, especialmente por bandas de “black metal” e afins. Posso citar, por exemplo, a canção “Black Sabbath” da banda homônima, ou as músicas do álbum “Diabolus in Musica” da banda Slayer. Os trítonos são considerados as mais complexas dissonâncias possíveis dentro da música, e é complicado explicá-los a quem desconhece acordes. É interessante que se fale um pouco da atmosfera sinistra que lhes cerca, o que justifica seu uso por estas bandas supracitadas.

Durante a Idade das Trevas (Idade Média), a execução dos trítonos foi proibida em apresentações de qualquer natureza pela Igreja Católica, que considerava tais dissonâncias como obra “Diabolus in Musica” (o diabo na música, em livre tradução), por acreditarem que tinham o poder de invocar o Diabo através da música. Com o tempo, tal superstição ocidental foi sendo esquecida, mas não é raro que se encontre ainda músicos que tem receio em executar trítonos. Não colocarei aqui nenhuma fonte de consulta, porque se trata de um assunto extremamente universal e que pode ser encontrado em páginas sérias de toda a Internet que versem sobre história, religião e música propriamente.

Nossa talentosa Hélida não era supersticiosa. Conhecia as lendas e enojava-se delas. Nunca teve problemas em executar trítonos, e até gostava deles, em especial os de 5ª diminuta. Decidiu por executar a esquisita canção.

Enquanto tocava, podia sentir o ar ficando mais pesado e um cheiro de amônia invadir o quarto, que ficava cada vez mais gelado.

A execução foi rápida, coisa de um minuto. A música em si era horrível... Lembrava uma marcha fúnebre com qualquer coisa de romance. Não chegava a ser triste, estava mais para desconcertante, enfadonha e anátema.

Um tanto decepcionada com o já previsto resultado da partitura, tomada por aquele frio e cheiro incomuns, Hélida foi até a janela para fechá-la; quando voltou-se ao interior do cômodo, foi aterrada por horripilante visão.

Estava, em um dos cantos do quarto, - a oeste, para ser mais específica - , meio que de cócoras, assombrosa figura. Recolhia do chão cinzentas e esfarrapadas asas, com pontas de ossos à mostra; media entre um metro e oitenta centímetros a dois metros; possuía espécie de cauda igualmente cinzenta, muito comprida, com um ferrão à ponta, que se enrodilhava junto às patas da criatura. As patas eram algo como de bodes ou carneiros, mas sem os cascos; vestia-se com um tecido sem definição de cor ou material, enegrecido, que lhe enrolava assimetricamente o corpo, não dando noção de onde iniciava ou onde terminava, mais parecendo uma túnica feita de fumaça; por entre a possíveis mangas de tais véstias desciam tenebrosas mãos esqueléticas ostentando disformes garras negras. A face estava oculta por causa da posição em que se achava.

Por alguns instantes, impossíveis de medir, esteve Hélida completamente estática a contemplar os detalhes daquele ser, sem falar absolutamente nada. Sentia querer gritar, contudo não conseguia, se lhe embargou a voz. De repente, a criatura soltou ululantes sons tenebrosos, como vindos de profundas cavernas vulcânicas; em seguida, falou coisas em língua completamente desconhecida, até articular enfim palavras inteligíveis. Foi quando ergueu a cabeça e Hélida pode ver seu rosto.

- O que vós, criatura inferior habitante da superfície, pensais estar fazendo?

Hélida continuava estática, mais ainda depois que viu a face do assustador ente. Tinha feições humanóides, com os olhos desproporcionalmente grandes e inteiramente de cor bordô; o nariz remontava ao de um fauno, e a boca era enorme fenda que ia quase de um lado a outro, crivada de dentes pontiagudos e irregulares, que mal lhe cabiam dentro. A forma do rosto era afinada, com os ossos do que poderiam ser bochechas saltados, terminando num maxilar que se projetava para a frente. Da cabeça, desciam negros e belíssimos - sim, incrivelmente belos - cabelos, que confundiam-se com a túnica na altura do peito.

Hélida abria a boca, tentando gritar; forçava as pernas, tentando correr. Tudo inútil. Não conseguia mover sequer um músculo.

- Ninguém, aqui ou em qualquer reino, tem domínio sobre si ante a minha presença. Mas a vós fiz uma pergunta e preciso da resposta - disse o ser, enquanto colocava-se inteiramente em pé, composto.

- Eu não sei. Eu não sei! - era o que conseguia dizer Hélida, quase sussurrando, ensaiando um choro que tal qual a voz, também não queria vir.

- Tola mortal. Malditos sejam os mortais! Não tendes consciência do que acabais de fazer. Eu sou aquele que sempre esteve e sempre estará; o Filho do Dragão; o Senhor de cem mil legiões. Acaso pensais vós em aprisionar a mim? Com que propósito fizestes a invocação que jamais deve ser feita, nem antes nem agora, e nem depois dos clamores dos homens?

- O violino... Eu... A partitura...

Hélida só conseguia balbuciar palavras. Mas a criatura parecia entender.

- Então, o infeliz objeto reapareceu, tantos milênios depois... Guardeis bem estas palavras: agora, sois prisioneira; agora, sois amaldiçoada. Agora, andarei por cem anos entre os mortais e construirei um Império até o fim dos tempos. Comigo virão todas as desgraças, indizíveis. E a vós é dado o castigo de tocar o violino até que vossa derme rompa, vossas veias sangrem, e os ossos de vossos dedos quebrem. A tristeza e as trevas são agora vosso lar. Vós sois o canal entre a harmonia e o caos, e eu sou o Dono do Caos.

Após dizer essas palavras, a criatura sumiu no chão, como se liquefeita. As amarras invisíveis que mantinham Hélida em pé romperam, e a pobre menina caiu, desatinada, aos berros e no mais copioso pranto. Quase que de imediato irromperam a porta seus pais. Sua mãe, abraçando-a fortemente e erguendo-a do chão, perguntava, nervosa, o que se passava, mas a menina não continha o choro. Quando finalmente acalmou-e um pouco, relatou aos pais todo o acontecido. Eles entreolharam-se.

- Minha querida... É claro que tens estudado demais, praticado muito. Não será o primeiro caso de fadiga mental a acometer um músico... Houveram tantos. Lembro-me ainda do tio Demétrio, que delirava pensando que sua gaita queria comê-lo! E teve ainda o caso do...

- Não, papai! Não! Titio Demétrio tinha setenta anos e demência senil! Eu sei o que vi, e foi terrível!

- Mas seu pai tem razão, minha filha. Procure ficar calma. Vamos lhe dar algo para que durmas e amanhã veremos um médico se assim o quiser, está bem?

Vendo que não haveria forma de convencer os pais, Hélida cedeu. Tomou o calmante da mãe e dormiu. Enquanto isso, seus pais discutiam severamente.

- Chega, Carlota, chega! Isso é fruto da educação que tu destes a ela, sempre mimando demais. Veja, um lunático esbanjador, um rico excêntrico qualquer, é capaz de desvirtuar a sanidade mental de nossa filha! Convém que investiguemos se não anda metida com coisas que não deve, sabes que ela toma remédios para as cólicas, se andar bebendo pode estar aí o problema...

- Horácio, pelo amor de Deus! A nossa menina não é louca. Provável é que ela tenha se fatigado e caído no sono sem nem perceber, misturando o pesadelo com a realidade. Ela tem andado cansada, praticando muito, e evoluiu muito também. É jovem demais...

- Jovem demais? Ora, não sejas bocó! Com a idade dela eu tocava com minha mãe à noite e ainda trabalhava com o verdureiro durante o dia, para arranjar algum. É esse violino maldito, ela está deslumbrada, fixada. Acho que deveríamos mandá-la para a casa da sua irmã por um tempo, dar-lhe férias forçadas da música.

A semana que se seguiu foi um verdadeiro inferno. Os pais estavam sempre a discutir sobre o que fazer com a filha, e esconderam-lhe o violino. Hélida não comia, não saía do quarto - embora não dormisse -, e não queria falar sobre o assunto. Em tão poucos dias, adquiriu péssima aparência. A família nunca foi lá muito religiosa, por isso nem pensaram em procurar alguma ajuda do tipo. Chamaram à casa o médico da família, que atestou Hélida como histérica. Disse que o melhor "remédio" para a moça era arranjar casamento, etc., aqueles absurdos da época. O maestro e os colegas de orquestra foram visitá-la, mas ela recusava-se a recebê-los. Os pais não comentaram o caso, apenas diziam que ela estava adoentada. Mui cordialmente, o maestro pediu que, assim que melhorasse, os pais lhe comunicassem do concerto mais próximo, pois ficaria feliz que ela participasse.

A situação já se arrastava por um mês quando todos tiveram uma surpresa. No cair da tarde, Hélida saiu do quarto e apareceu na sala, linda, trajando seu melhor vestido, e bonita como há muito tempo não a viam. Parecia uma rosa cintilando fora de um jardim. Os pais inflaram de felicidade.

- Minha querida! Como te sentes?

- Ótima, mamãe. Sabe, tem algo que preciso muito fazer hoje.

- E o que seria, meu anjo?

- Lembro, de memória, que hoje haverá grande concerto no Teatro. Eu gostaria de ir. Quero tocar novamente, sabem, retomar a vida...

Os pais ficaram receosos, mas acabaram cedendo ante a felicidade da filha. O pai insistiu para que ela levasse seu velho violino, mas a moça resistiu, e argumentou graciosamente dizendo que duas coisas tão bonitas (ela e o violino, maléfico) não poderiam ficar longe dos olhos de seu público... E foram-se.

Houve grande comoção por parte dos colegas de orquestra e do maestro ao verem Hélida novamente. Estavam preocupadíssimos com ela. Como chegara quase em cima da hora, não houve tempo para prosa, e logo subiram ao palco. Após a apresentação da orquestra, era a vez do tradicional número solo de Hélida.

Abriram-se as cortinas azuis. No centro do palco, aquela jovem que mais parecia uma princesa. Mas havia algo errado na expressão de seu rosto. Um sorriso, um olhar de cima para baixo destoante com a corrente personalidade da moça. Ao lançar a luz sobre ela, a careta que fazia não tirava-lhe a beleza do rosto, mas pintava nele qualquer coisa de bizarro e diabólico.

Hélida não estava com o violino em posição. Demorou mais que o normal para iniciar o número. Mas, ah... Antes não o tivesse iniciado!

Para o espanto e o horror dos ouvidos dos presentes, a violinista executou aquela infeliz obra encontrada no guarda-volumes do estojo. A plateia não teve coragem de vaiar a artista, mas começou a retirar-se, pois insuportável era música tocada. Porém, muitos pararam no caminho para a saída quando ela adentrou numa execução cada vez mais e mais rápida, quase ultra-sônica, movendo arco e dedos de forma frenética e alucinante. O pai e o maestro subiram no palco para tirá-la daquela situação, mas foram arremessados para trás por um tufão invisível de ar gelado. Assim, a moça, que já sangrava pela mão esquerda, derramava silenciosas lágrimas no violino, que aquecia seus dedos como ferro em brasa. Só teve fim o espetáculo quando soou um estalido seco: eram os dedos de Hélida quebrando.

Foi um enorme estardalhaço, um falatório na cidade. Ninguém por estas bandas esqueceu o acontecido, e até hoje se ouve falar no caso da Hélida. Depois daquela noite, os pais deram sumiço ao violino. A versão mais aceita é a de que eles o queimaram antes de internar a filha num sanatório. Até o ano de 2001, quando Dona Hélida faleceu, qualquer um que visitasse o asilo onde estava podia ouvir toda essa história extraordinária de sua própria boca. Ela também dizia que as vezes ainda sonhava que estava com o violino nos braços. A própria artista fazia conjecturas, buscando uma explicação, ainda que insólita, para o que lhe acontecera.

- Imagina, meu filho, que justamente a primeira música que eu toquei naquele instrumento foi uma obra do mordaz Paganini... - dizia a debilitada senhora. - No fim, meu filho, acho que eu fui muito infeliz em ter subestimado certos poderes obscuros que eu desconhecia, e veja agora, quantas dessas bandas modernas que vocês escutam que estão propagando as medonhices das dissonâncias...

Pode ser que Hélida tenha ficado tão impressionada com o que lhe acontecera que associou tudo aos trítonos... Mas lembrando das palavras da própria violinista... Talvez subestimemos muitas coisas que não compreendemos, e que por isso preferimos não lhes acreditar.

FIM