FOI COMO EM HAMELIN - DTRL 21

Esta é a terceira noite que passamos aqui. Minhas lembranças não estão bem claras. No início éramos nove, todos montanhistas bem preparados. Confesso não ter as mesmas aptidões que os demais, meu forte era o salto, sofria nas escaladas.

Arrependo-me de ter colocado meus amigos nesta situação. Agora somos apenas três, os outros se perderam. Esta maldita chuva não para. Estamos enrolados, tremendo de medo feito crianças.

Eliane, penso muito em você, era tudo para te impressionar. Fico feliz pelo imprevisto que não deixou você vir com a gente. Queria que conhecesse minha terra, porém não vai ser agora que conhecerá as montanhas de Minas. No fim você teve sorte de não vir, nem as fotos que me pediu poderei enviar.

Esta seria nossa primeira escalada juntos, nosso amor pela aventura nos aproximou. Estou feliz por você estar a salvo. Se puder, lembre-se de mim em suas orações.

O som da flauta recomeçou. Ele vai e volta, às vezes se confunde com o barulho da chuva. A Priscila esta chorando novamente. A gente se aperta mas não temos segurança. O fogo consumiu quase toda a madeira seca, em breve vai se apagar.

Entre os montanhistas mineiros, a Escada do Céu sempre foi a cereja do bolo. Cedo ou tarde deveria ser galgada, era como se fosse um diploma a ser conquistado, um carimbo na folha corrida. Quando o dia estava claro podíamos apreciar o íngreme paredão do lado sul do Pico das Andorinhas, quase dois mil e quinhentos metros de altitude divididos em sete degraus. Num bom dia completaríamos a subida, muitos optavam por demorar um pouco mais, preferiam curtir com calma a paisagem.

Chegamos bem no meio da tarde. Saímos da rodovia por uma estreita estrada de terra. Seguimos em direção ao antigo povoado de Nova Lisboa que nos tempos do segundo Império foi grande produtor de ouro, diziam que até ao lavar a roupa na bica as mulheres encontravam as preciosas pepitas. Mas um dia sem avisos as lavras secaram, ninguém sabe ao certo mais seus quase cinco mil habitantes desapareceram, foram embora abandonando suas residências ainda mobiliadas. Desde então nenhuma viva alma morou ali. Campistas e aventureiros usavam a cidade como ponto de apoio.

Atravessamos o rio por uma ponte de tabuas que rangeu ao peso dos veículos. A rua principal possuía belas casas dos dois lados, tudo ao mais belo estilo barroco, algo digno de ser preservado. Nos áureos tempos até um teatro havia na praça da matriz, falando nisso, muito ampla a igreja foi a primeira a ruir, não resistiu ao tempo deixando apenas algumas paredes como testemunhas da história. Outras construções estavam em melhores condições, vez por outra um campista dava um jeito.

Encontramos um bom local para deixar os carros. Preparamos para nossa noite de descanso, o plano era seguir até a montanha junto com os primeiros raios de sol. Deveríamos repor as energias perdidas na poeira da estrada.

No princípio da noite, abandonados pela luz natural sofremos o primeiro revés. Contrariando todas as previsões uma chuva torrencial se abateu sobre nós. Antes do começo, teve fim nossa aventura. O paredão molhado tornou-se uma armadilha para nós.

Dormir então. Fazer o que?

Enquanto a chuva enchia o rio, a ponte aos poucos se escondia. O sono por sua vez bateu tão forte que ninguém conseguiu manter-se de pé. Aí os pesadelos vieram. Curiosamente todos tivemos o mesmo sonho:

“Era um domingo festivo, os garimpeiros tiveram muita sorte em suas lavras. O vigário recém-chegado do velho mundo aos poucos se habituava aos costumes locais. Na praça, rodeada por árvores nativas, crianças brincavam debaixo das bandeirolas coloridas. Doces e guloseimas expostas em tabuleiros deixavam seu aroma pelo ar. O Barão das Andorinhas, sujeito bonachão, junto a sua patroa tecia elogios ao Imperador. Faminto, o padre digeria todo tipo de informação.

Em meio a tanta alegria uma nuvem negra obscureceu o sol, uma sombra cobriu todo o povoado. Alguns acharam bom, pois o calor estava forte. Os ouvidos mais atentos perceberam um zunido irritante. Com as mãos em concha sobre os olhos o povo investigava o horizonte. A grande nuvem movia como se tivesse vida própria. O zunido aumentava à medida que a nuvem se aproximava.

As primeiras moscas invadiram os tachos de goiabada, por toda parte os insetos ganhavam espaços. Lençóis e ramos eram agitados, nada debelava as invasoras. Os doces foram contaminados, as pessoas tendo seus orifícios invadidos procuravam abrigo por detrás das portas de suas casas.

Uma semana se passou. Ninguém ousou sair. A busca pelo ouro foi abandonada, as lavouras esquecidas, os animais sem trato definharam. Dentro de casa a comida tornava-se pouca. E as moscas só aumentando.

Quando tudo parecia perdido, uma suave melodia se misturou ao irritante som dos insetos. Pelas frestas das janelas os mais ousados espiavam em busca da origem do som.

Nas escadarias da matriz uma figura singular.

De longe parecia um bobo, um Arlequim com roupas verdes espalhafatosamente enfeitadas por losangos azuis e estrelas amarelas, seus sapatos de camurça vermelha com uma ponta enrolada para cima terminavam numa espécie de guizo ou chocalho. Seu rosto pintado como de um palhaço alegre era coberto por um gorro de quatro pontas, cada um de uma cor imitando as roupas. Em suas mãos um pífaro que assoprado magistralmente produzia aquele belo som.

Enquanto ouviam encantados a música, os insetos desapareciam. Medrosos, poucos se arriscavam fora de casa. O Barão como representante maior da cidade, foi o primeiro a se dirigir ao menestrel. Seguindo seu exemplo o povo perdeu o temor. Fizeram um semicírculo em torno do forasteiro e se deliciaram com a paz de suas notas.

O flautista terminou sua melodia fazendo uma burlesca reverência. O povo aplaudiu. Por um instante tiveram a impressão que as moscas não voltariam. Engano. O maldito zunido voltou ainda mais forte, a sombra cobriu novamente o sol.

Suplicante o Barão pediu por mais música. Fazendo firulas, o flautista propôs um acordo.

Cada cidadão deveria lhe entregar um décimo de seu lucro nas lavras daquele mês somente assim ver-se-iam livres dos insetos.

Ínfima paga por tão árduo trabalho. A proposta foi aceita de forma unânime.

Foi pedido ao povo que juntasse uma boa quantidade de lenha a fim de acenderem uma grande fogueira. Rapidamente muita madeira foi amontoada num canto da rua. Aceso o fogo o palhaço tocou a flauta rodopiando em torno das labaredas. Vindos de todas as direções, os insetos se jogavam nas chamas, alguns estouravam como pipocas. Foram poucos minutos até o fogo devorar o ultimo inseto pestilento.

O músico partiu avisando que no começo da noite voltaria em busca de seus honorários.

Revoltados, acharam um absurdo pagar tanto por algo tão simples, sentiram se ludibriados pelo farsante. Pensaram que o trabalho seria feito de uma forma e o gaiato apenas tocou sua flauta como sempre fazia sem paga.

Ao cair da noite o Barão e alguns garimpeiros recepcionaram o brincalhão. Três contos de réis ou uma surra de porrete era o que tinha a escolher.

O palhaço partiu de mãos vazias, não sem antes pronunciar inúmeras maldições contra um povo tão vil.

Na madrugada uma doce melodia invadiu a paz dos casarões. Uma a uma as portas foram escancaradas. Como em Hamelin as crianças maiores ajudavam as pequenas. Todas sem vontade própria caminhavam em profundo silêncio. Sem conhecimento dos pais a procissão seguia o som da flauta. Na frente o bobo saltitava alegremente. Por onde passavam mais crianças apareciam.

Sem piedade, nas margens do rio o músico deteve-se, o cortejo seguiu rumo às águas. Ninguém reagia. A passos lentos todos desapareceram, mesmo depois de submersos continuaram a caminhar.

Pela manhã, gritando desesperados os nomes dos filhos, os adultos saíram às ruas, algo terrível havia acontecido. Em vão buscavam explicações no horizonte. O padre poderia orienta-los.

Chegando à igreja, chamaram, esmurraram e nada das portas abrirem. O Barão seguiu para entrada lateral que devia ser mais vulnerável. A pontapés invadiu a casa do Senhor.

No interior da sacristia, debruçado sobre uma caixa de madeira, tendo nas mãos papeis com recomendações de sua Santidade o Papa Pio IX, os restos do vigário ainda parecia mover-se com vida. Aproximando-se constataram, ali agora apenas existia uma casca recheada por bilhões de varejeiras que muito breve ganhariam asas.

No campanário o hediondo palhaço tocava sua melodia. Arrependidos o povaréu implorou pela volta dos filhos. Alheio aos lamentos por horas ele zombou da tristeza dos pais.

Instintivamente o povo trouxe de casa o que mais precioso possuíam. Ouro, jóias, dinheiro, tudo foi depositado nos degraus da matriz, tinha até mais do que combinado. Vendo-se satisfeito ele desceu ordenando que todos se recolhessem. Naquela noite tudo ficaria bem, que os pais ficariam com os filhos. Assim dispersou o populacho.”

Este foi nosso primeiro pesadelo. O fim desta noite levou também três de nossos amigos. A tempestade não permitia uma busca. O rio cobria a ponte, estávamos presos entre as águas e a montanha.

Passamos o dia encolhidos a espera do retorno dos desaparecidos. Digeríamos os sonhos compartilhados. Os trovões aumentavam nossa angústia.

Veio a segunda noite. Veio o segundo pesadelo.

“Nas portas da Terra Prometida uma árdua batalha era travada, arcanjos e demônios se destruíam mutuamente. Relâmpagos cruzavam os céus, fogo brotava do solo. Moisés sem vida jazia longe de seu povo. Um único troféu estava em disputa. Todos queriam a posse do cajado do peregrino.

As hostes divinas estavam em maior número, hábil no combate Miguel empurrava Lúcifer e sua corja para longe do patriarca.

Num descuido os demônios sorrateiros conseguiram seu objetivo. Com ares de vitória, Lúcifer ergueu firme seu prêmio. A Miguel nada mais restava, havia sido vencido

Num lampejo de astúcia seus olhos brilharam. Destruiria nas mãos do inimigo o objeto de cobiça.

Ao ser atingido pela lança do Arcanjo um forte brilho inundou a terra. Devido ao golpe certeiro o cajado se partiu em três pedaços. Um se perdeu na eternidade, outro foi recuperado pelos anjos. Aos demônios ainda sobrou parte do troféu. Não havia mais por que lutar, retiram-se a seus domínios.

Temendo perder a parte que lhe coube, Belzebu foi encarregado de oculta-lo. Do pedaço de madeira sagrada foi feito um pífaro singelo e ao homem de má fé foi dando como presente.”

No que pareceu ser mais uma manhã, menos três no acampamento.

O dia se arrastou cruelmente, ficou impossível distinguir dia e noite. As únicas luzes que vemos são dos raios que nos ameaçam.

Agora tento colocar minhas ideias em ordem. Só eu estou acordado, Priscila dorme e chora ao mesmo tempo. Algo me diz para não ter medo. Acordei a pouco de outro pesadelo, este foi pior que os anteriores.

“Naquela noite os pais abandonados iluminaram suas casas, alguns se conservavam nas janelas a espera de notícias dos filhos. As conversas eram tristes, traiçoeiro o sono chegou, até o mais forte caiu. O silêncio tomou conta da vila.

Ao som da flauta as águas do rios se agitaram, cabeças emergiam lentamente, as crianças iam se revelando. Como antes caminharam sem vontade pelas ruas. Cada um procurou seu lar. Os adultos dormiam a sono profundo.

Enlameados os jovens se curvavam ao encontro dos pais. Num beijo macabro regurgitaram uma torrente de vermes que de dentro para fora devoravam seus hospedeiros.

Como num circulo esta história se repete, na Alemanha foram ratos, na Índia sofreram com serpentes, na Romênia um ataque de morcegos. Algumas pagaram o preço combinado, livrando-se da punição do palhaço, porém ele não buscava riquezas, o menestrel recrutava almas, ele queria um exército.”

O som da flauta me acalenta, alguma coisa me chama, sei que não devo partir, tem algo na velha igreja, tem alguém me esperando, minhas lágrimas se confundem com a chuva, já não consigo respirar, parece que estou me afogando...

Tema: Esta história é sobre um palhaço que usa a música para dominar as pragas urbanas criando uma verdadeira cidade fantasma. Quanto ao naufrágio, acho que teve água demais.

Esta história contém referências de outras que já postei e ainda irei postar aqui no RL.

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 16/03/2015
Reeditado em 17/03/2015
Código do texto: T5172359
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