O Enterro de Dinheiro

Nota da autora: o conteúdo da obra possui linguagem regional; por isso, foi incluído ao final da mesma um pequeno glossário com os termos menos conhecidos.

_______________________________________________Femina

É muito comum, na região do Rio Grande do Sul onde moro, escutar dos mais velhos histórias sobre tesouros enterrados. A bem da verdade, praticamente todo o ancião daqui da fronteira conhece ou diz ter vivenciado algum fato relacionado com os ditos "enterros de dinheiro". Se qualquer conterrâneo meu estiver lendo agora, certamente recordará ter ouvido algum desses causos.

Minha avó materna, vovó Arlinda, volta e meia recordava de certa vez em que, morando ainda na região da campanha gaúcha, estava lavando roupas no açude quando foi surpreendida por um forte tufão de vento, que descambou de soco aos pés de um velho umbu. "Lá tinha dinheiro enterrado!", sempre dizia; também da vez em que sua irmã mais nova foi buscar água na cacimba e voltou com os tarros vazios, relatando que saiu correndo depois de ter visto um homem pequenininho, que lhe disse "me entrega a chaleira, guria, que vou encher de moedas de ouro pra ti!".

Só da minha família posso falar um eito. O meu tio-avô paterno, o tio Argeu, por exemplo. Ficou tão maluco com essas crendices que chegou a comprar um detector de metais, para sair por aí, nos campos, procurando tesouros. Teve uma vez - essa é do meu pai - que um senhor que trabalhava numa fazenda contou pro pai um sonho que teve; sonhou que uma velha lhe acordava e lhe mostrava um lugar perto das taperas, e dizia que ali estava submerso um baú cheio de ouro. O pai contou pro tio Argeu, que foi lá com o "aparelho", mas decidiu não escavar, porque, segundo ele, ali não tinha nada; se tivesse, "os espíritos teriam lhe dito"... Que barbaridade!

Sem contar o que aconteceu com meu ex-marido, quando ele estava passando uma noite na casa da fazenda da mãe dele. Diz que acordou no meio da madrugada, apavorado, porque tinha tido uma visão onde ele e um peão da fazenda iam num tal lugar e encontravam uma panela cheia de moedas de ouro... Ah, quase esqueci. O finado Ciro, avô do meu marido, também tinha um detector de metais. O Fabrício - meu marido - pediu pra sogra, mas como ela detesta ser acordada, mandou que ele se lascasse e não disse onde estava o tal aparelho. E pra completar, o tal lugar da visão ficava em campo alheio, não dava pra chegar assim, cavando que nem tatu... E ficou por isso mesmo.

Nunca descobri ao certo - e nem nunca pesquisei, pra ser sincera - a origem de talcrença popular. Algumas pessoas falam que tem a ver com os padres jesuítas; outras, que são tesouros da época das guerras e revoluções. Mas o padrão é o mesmo: moedas de ouro dentro panelas ou baús, enterradas a mais de sete palmos, em regiões de campo aberto.

Pois foi numa empreitada do tipo "caça ao tesouro" dessas que se deu a tragédia com o Tenório.

Verão de 2010, final de janeiro. José, Álvaro e Tenório estavam em uma de suas tradicionais pescarias de final de semana. Que iam pescar era modo de dizer, porque peixe mesmo pegavam pouco, mas grande era a borracheira. Por um disparate de Tenório, a conversa ao pé do fogo a respeito da claridade da lua na noite que recém chegava tomou outros rumos.

- Essa lua tá boa é pra caçar... Ou então pra procurar enterro de dinheiro. Vocês sabiam que, desde piá, sempre escutei meu pai falando que nestas bandas da barragem tem um enterro de ouro? O velho jura de pé junto que veio pescar aqui certa feita, e que viu cavalgando do outro lado da água uma criatura, meio que nem fantasma, carregando um baú brilhante. Mas o pai nunca se interessou em procurar...

- Te aquieta, tchê! - retrucou José. - Todo mundo já sabe disso. Tu enche o saco com isso toda vez que a lua é cheia. Álvaro, o que tu acha de levantar acampamento e ir se acomodar lá do outro lado da barragem? Quem sabe daí o Tenório encontra o dito cavaleiro e pede pra ele uns trocos no fiado...

E foi aquela risalhada. Como estavam pra farra mesmo, e já meio altos, resolveram ir pro outro lado, só pra incomodar o Tenório, que teve de recolher todo o acampamento sozinho pra depois montar de novo. Deitadas já duas garrafas de Velho Barreiro, deram uma averiguada nas linhas e foram pras barracas. Até aqui, me contou o Álvaro; daqui pra frente, me contou o Zé. E um concordou com o outro.

Lá pelas tantas, acordaram com o Tenório, que andava aos berros perto das barracas deles.

- Valei-me minha mãe do céu! Salta pra fora Zé! Salta pra fora! Venham cá!

Quase que na mesma hora saíram o Álvaro e o Zé das barracas pra ver o que se sucedia com o Tenório. O Zé mesmo disse que se levantou tapado de nojo, pensando que o Tenório estava bêbado, incomodando. Foi ai que a coisa ficou feia.

Quando os dois botaram as cabeças pra fora, viram um facho de luz amarela "correndo" por cima da água. E nada do Tenório. Chamaram por ele, procuraram por tudo. Nada. Foram embora deixando tudo atirado. Chegando na cidade, bateram na delegacia. Foi uma mobilização daquelas. No final, até drenar a barragem drenaram, pra ver se o Tenório não tinha caído e se afogado, hipótese que, com a drenagem, foi totalmente descartada.

Os anos passaram e com eles a lembrança do sumiço do amigo. Não é que tenham esquecido dele; o Zé mesmo, nunca parou de procurar. Mas a vida tem que seguir, e os amigos e familiares acabaram cedendo à ideia trazida pelas autoridades de que Tenório haveria de ter sido completamente devorado por um animal selvagem, ou caído em algum buraco desconhecido na imensidão daquelas quadras de sesmaria. Até que, no final do ano passado, visitando a fazenda onde sempre pescavam - que era de um amigo de infância -, Álvaro e Zé, entre um mate e outro, relembraram com Adroaldo - o amigo - os já tão conhecidos fatos daquela noite. Na parte do clarão sobre a água quase ninguém acreditava.

Eis que no meio da prosa se intrometeu um piá, filho de um dos peões de Adroaldo, que estava sempre de butuca na conversa dos outros.

- O senhor tá dizendo lá d'onde que tinha a barragem antigamente?

- É, Diego. Lá mesmo... - replicou Adroaldo.

- Pois o senhor sabe, que eu andava recorrendo aqueles campos outro dia. Dizem que lá tem ouro enterrado, eu levei inté uma pá pra cavocar... Vi uma coisa, acho que era um "malassombro"; contei pro pai e ele quase que me deu uns relhaços, pra eu parar de inventar coisa. Mas lhe digo, que eu vi, eu vi...

- E o que que tu viu, piá? - indagou Álvaro.

- Vi um "home" à cavalo. Tava com uma capa preta, carregando um baú, brilhoso que nem o sol. Eu não fiquei com medo. Toquei meu baio pra cima dele. Daí eu vi a cara dele. Um dos "óio" era vazado eu acho, e o nariz bem torto p'rum lado... Ele inté falou comigo. Me disse "vai-te embora, guri, antes que tu acabe que nem eu". E daí eu fui embora.

Terminando de dizer isso, o menino Diego, que não tem mais do que uns dez anos e nem o hábito de mentir, saiu de perto e foi ajudar o pai.

Nesse momento todos passavam a mão nos bigodes, desconcertados, até que o Zé ousou pensar alto.

- Tchê... Por causa dum coice de vaca, o Tenório perdeu o olho aquela vez... Nunca tirava aquele tapa-olho de couro. E o rosto ficou torto pra esquerda, não deu jeito de os doutores consertarem...

Álvaro soltou um triste suspiro. Adroaldo ainda estava de olhos arregalados. Ninguém mais quis tomar mate. Despediram-se, pegaram o rumo das casas. No caminho, Álvaro e Zé conversaram um tanto sobre tudo aquilo. Voltaram à barragem - que hoje não existia mais - por vários dias depois daquele, mas nunca viram o tal cavaleiro fantasma.

Eu tenho minhas teorias, e sempre digo pro seu Zé que eles não viram e nunca vão ver, porque eles não vão lá procurar o enterro de dinheiro; eles vão lá procurar o amigo.

GLOSSÁRIO

CAUSOS - casos, histórias;

DESCAMBOU - desembocou, caiu em;

UMBÚ - árvore típica da campanha gaúcha;

CACIMBA - espécie de pequena cascata, dique natural;

GURIA - menina;

UM EITO - um monte;

TAPERAS - construções rurais desabitadas ou desativadas;

BORRACHEIRA - bebedeira;

PIÁ - menino, guri;

BARRAGEM - espécie de açude artificial;

TAPADO DE NOJO - contrariado, desconforme;

QUADRAS DE SESMARIAS - certa medida agrária;

BAIO - pelagem de cavalo;

RELHAÇO - golpe com relho, chicotada.

Femina Morituri
Enviado por Femina Morituri em 17/03/2015
Reeditado em 30/03/2015
Código do texto: T5173491
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