A Criança

Débora suava frio. Tamborilando os dedos da mão direita sobre a mesa com tampo de vidro e tremendo freneticamente os pés, aguardava a chegada do médico no consultório.

- Boa tarde. Desculpe o atraso, estava atendendo uma paciente que entrou em trabalho de parto, no hospital. Ainda vai demorar umas duas horas, no mínimo, mas está tudo bem com ela.

Doutor Vicente era um senhor simpático; vivia com a agenda cheia e amava o que fazia. Quando terminou a explicação sobre a demora, sentou-se no lado que lhe cabe na mesa e, discretamente, reparou na debilidade física que a jovem à sua frente apresentava.

- Muito bem... Débora – disse, enquanto lia a ficha que a secretária deixara sob o teclado do computador –, tens então dezenove anos, certo?

A moça confirmou com a cabeça.

- Vamos conversar. O que se passa?

A paciente soltou um profundo suspiro, tomando coragem para falar. Engoliu seco, cessou os movimentos de mãos e pés. Ergueu a cabeça e empurrou os óculos contra a face com o indicador.

- Eu estou com um sério problema doutor, estou desesperada.

“Gravidez”, pensou doutor Vicente.

- Calma, fique calma. Me explique.

- Estou grávida, doutor. Mas é impossível! Eu não posso estar grávida. É impossível.

- Mas se é impossível, querida, como é que pode estar? Já fez o teste?

- Fiz sim, doutor. Fiz semana passada... O [teste] de farmácia e o de sangue. Parece que estou com duas semanas já! Mas, é que não pode ser...

E desatou a chorar.

- Débora, você precisa manter a calma. Eu compreendo tudo isso, já estou há trinta anos na profissão. Por maior que seja o seu problema em relação a estar grávida, acredite, é superável, contornável. Se estiver sendo aborrecida por seus pais ou com medo de ser, fique tranquila; hoje em dia a lei ampara muito esses casos. A mesma coisa se o problema for o pai da criança...

- Não é nada disso doutor! - interrompeu – É que não existe pai!

- Então você não sabe quem é o pai... Acontece bastante também. O importante é focarmos em você e na sua condição de saúde agora para que possamos... - Foi interrompido novamente.

- Não! Ai meu Deus, não... Não existe pai, não tem pai mesmo! Doutor, eu sou virgem, eu nunca tive nem namorado. O último beijo que eu dei foi há seis meses atrás, não tem como eu estar grávida, entende? É impossível!

Quantas vezes as jovens mães caíam em negação para se eximir da culpa. Era algo que o doutor conhecia muito bem. Afinal, nessa profissão, tinha que ser meio psicólogo também.

- Tudo bem, tudo bem. Calma. Eu vou lhe examinar. Pode tirar sua roupa aqui e vestir este avental.

Qual foi a surpresa do médico quando, ao examinar Débora, verificou que ela era realmente virgem, e que, por outro lado, estava indubitavelmente grávida! Mas era explicável. Um simples contato, ainda que sem penetração, pode gerar gravidez; aí estaria o motivo para tanta negação.

- É, Débora. Vamos ter que conversar mais um pouco. Vou lhe pedir alguns exames iniciais e depois você volta aqui, tudo bem?

Doutor Vicente fez o que pode para confortar a garota. Explicou que, para engravidar, não é necessário que haja a completa penetração, etc., etc., etc. Mas ela não se convencia. A situação era delicada.

Os dias foram passando. Débora fez os exames, sentia-se muito mal desde o início. Tudo o que comia, vomitava; não conseguia dormir direito; tinha enormes olheiras e emagrecera quase dez quilos. Quando levou os exames para o doutor, seus índices glicêmicos, vitamínicos e de plaqueta estavam péssimos. Iniciou então um tratamento para recompô-los. Queixava-se muito, de dores e vertigens.

E ficou pior. Morava sozinha desde os dezoito anos, quando sua mãe faleceu e seu pai casou-se de novo, muito rapidamente para o desgosto da família. Débora decidiu então apertar um pouco com o salário que recebia como técnica contábil de um escritório e ir cuidar da própria vida, longe daquela madrasta que detestava. Não falava com o pai já faziam quase três meses, e não tinha muitos amigos; por isso, quando passava mal, especialmente à noite, não tinha a quem recorrer.

Já estava com quinze semanas e apresentava pouca melhora. O doutor Vicente, que a acompanhava, solicitou que marcasse um ultrassom; a barriga estava grande para quinze semanas, ainda mais para uma mulher tão magra.

- Débora, eu acho que você não está se ajudando muito. Não está melhorando como nós gostaríamos, não é verdade? Bom, vamos dar uma olhada. Com esse tempo transcorrido, talvez já possamos ver o sexo do bebê; à medida que a imagem for aparecendo eu vou lhe explicando, certo?

Débora, a essa altura, já não ia mais trabalhar; estava afastada por ordens médicas pela sua má condição de saúde como gestante. Naquele dia, enquanto esperava que o médico acomodasse os materiais do exame e lhe passasse o gel na barriga, ela preferia olhar para a parede do que para o monitor. Não tinha certeza se queria ver aquela criança.

Iniciado o exame. O médico manuseava o aparelho, que deslizava sobre o gel, sem dizer nada. Débora preocupou-se; resolveu olhar para a tela. Antes, olhou para doutor Vicente, que estava de boca aberta e olhos arregalados.

- Doutor. Doutor? Eu não entendo a imagem, não dá pra ver nada. DOUTOR!

- Ãh, desculpe, desculpe! É que...

Ficou relutante. Débora, assustada.

- É que...?

- É que eu nunca vi nada assim antes.

O ginecologista experiente referia-se ao feto. Não parecia com um humano em quase nada, a não ser pela presença de uma coluna vertebral. Também não podia dizer que se tratava de uma deformação, porque estava bastante desenvolvido, correspondendo ao tamanho da barriga, e eram nítidas as suas formas. Por outro lado, o que o exame propunha como verdade era algo absurdo; estava o médico num impasse: dizer para a mãe o que estava percebendo ou mentir, a fim de preservar a saúde dela, já tão débil? Era algo assustador. Decidiu falar algo que ficasse entre a mentira e a verdade, afinal.

- Débora, sinto muito, mas acho que o aparelho do exame está avariado. Olhe aqui. Vê estas “fendinhas” escuras nesta região? São os olhos; mais acima tem estas pontas, que se parecem... Não sei direito, ossos, chifres...

- CHIFRES? E aquelas coisas rasgadas são os olhos???

- Fo-foi como eu disse, Débora. O equipamento, ele...

- E o que são estas coisas em forma de “w” aqui?

- Ahn, deveriam ser os pés... Que parecem patas.

Ambos atordoaram-se e ficaram em silêncio alguns segundos. A paciente sentou na cama e cobriu com as mãos o rosto.

- Está explicado, doutor! Está explicado. Os malditos sonhos, as dores, tudo.

- Do que você está falando, querida? Não se precipite nem se impressione; melhor esperar; vou mandar o ultrassom para consertar. - não havia o que concertar, ele sabia, mas o que mais poderia dizer?

- Não precisa, doutor. Agora eu entendo. Desde que os enjoos, desmaios e dores apareceram, quando minha prima insistiu que eu fizesse um teste de gravidez daqueles da farmácia e eu fiz, mais por brincadeira, e ele deu positivo, eu sou atormentada. Não consigo dormir quase nada; quando durmo, tenho sonhos horríveis. Uma coisa, metade homem metade touro, está sentado em um banco, trono, sei lá... Um assento de pedra. Ele diz “cuida do meu filho!” e solta uns bufos de fogo pelo nariz. É horrível doutor! Horrível! O senhor precisa tirar isso de dentro de mim!

O caso era apavorante. Mas um aborto? Isso jamais doutor Vicente faria. Pediu que Débora se vestisse a remarcou o exame, dizendo que iria aguardar o conserto da máquina.

Passou-se uma semana sem que o doutor tivesse notícias da paciente, e não conseguia tirar aquelas imagens da memória; como havia salvado nos arquivos, revia diariamente, mais de uma vez ao dia, os bizarros resultados daquele exame.

- Alô, Débora?!

- É ela. Quem fala?

- Ahn, Débora. É o Vicente. Preciso que venha ao consultório, se possível hoje.

- Não vai dar, doutor. Estou muito pior. Acho que vou morrer. Até prefiro que seja assim. Visitei uma dessas clínicas de aborto e não quiseram fazer, disseram que eu morreria com certeza e que seria sujeira para eles. Mal consigo me mexer na cama.

- Então me dê seu endereço. Eu vou aí.

Doutor Vicente estava nos últimos estágios do pavor. Havia sonhado duas noites seguidas com a criatura que Débora descreveu. Já duvidava da própria sanidade mental; sentia que precisava fazer alguma coisa. No estado que a grávida se encontrava, provavelmente morreria dando à luz mesmo, ou antes.

Débora estava na cama. Com muito sacrifício foi que se levantou para atender à porta. Já era tarde da noite.

- Oi doutor. Entre, mas não repare a bagunça... Como o senhor pode imaginar, não tenho conseguido cumprir com os afazeres domésticos.

- Débora, ouça. O que eu pretendo fazer aqui hoje não pode jamais sair daqui. Entendido?

- Do que o senhor está falando? - sentou-se, com as mãos na barriga, enorme.

- Precisamos, vamos dizer... Fazer algo drástico. Sabe, andei revisando as imagens e acredito que se trata de uma anomalia fetal irreversível, e que o feto vai nascer certamente morto... Talvez tenhamos tempo de interromper a gestação.

- Sei. O senhor viu a coisa também, né. Olha doutor, acho que não vai dar certo. Minha barriga está enorme... Eu preferia que o senhor me desse algo para “dormir para sempre”, entende...

- Menina, temos que tentar. Vamos, acomode-se no quarto e tente relaxar. Estou logo atrás de você.

Doutor Vicente arrastou para dentro do quarto uma enorme mala de viajem; resolveu não se utilizar de maletas médicas para não levantar suspeitas. Débora estava deitada, a cama ensopada.

- Tarde demais, Débora. A bolsa rompeu. Vamos ter que fazer o parto.

Foram cinco horas de puro sofrimento até que o médico tivesse a “criança” nos braços.

Era um bezerro meio gente. Um “minotauro”, deva para nomear. Da cintura para baixo, era animal; da cintura para cima até o pescoço, era humano. A cabeça era algo entre um e outro, com pequenos chifres. Esperneou quando o doutor cortou o umbigo; pulou das mãos do médico em poucos minutos e ficou em pé, cambaleante, na cama.

Vicente e Débora olhavam para a criaturinha medonha estarrecidos, sem saber o que fazer. O pequeno infortúnio engatinhou para os braços da genitora, fazendo sons vocais de bebê. Aconchegou-se entre os seios dela e abocanhou um mamilo.

- Vamos... Vamos matá-lo doutor!

- Talvez fosse melhor estudá-lo...

- O quê? O senhor sabe de onde ele vem!

Dizendo isso, arrancou a criatura do peito e forçou-lhe o pescoço, a fim de esganá-la; foi quando suas mãos aqueceram até o insuportável, obrigando-a a soltar a pequena besta, que engatinhou para o chão, acanhada. As mãos da recém mãe ficaram em carne viva, totalmente queimadas. Usando os recursos dos quais dispunha, doutor Vicente as colocou de imediato na água gelada. Nesse momento, uma voz grave e rouca fez-se presente no recinto.

- Não ouses machucar a criança, mulher infame!

- Quem está aí? Quem está falando? Socorro, doutor!

Surgiu através das cortinas acetinadas um homem velho e curvado; vestia uma túnica branca e segurava um cajado de madeira retorcida.

- Ele é o Filho Pródigo, não pertence a esta dimensão ainda. É ele teu dever até que o pai possa buscá-lo, daqui a exatos treze anos. Se algum mal ocorrer à cria, o dobro sucederá para ti. Não deves batizá-lo com nome algum; apenas aguarda. Dar-te-ei instruções de tempos em tempos.

Antes que qualquer pergunta, lamentação ou disparate pudesse ser feito ao velho, sumiu-se pelas cortinas tal como apareceu.

O medo, o horror e a dúvida estavam estampados nas expressões de doutor Vicente e Débora; o pequeno aberrante encolhia-se num canto do quarto.

- O senhor fez o que pode, doutor. Obrigada. Agora peço, por favor, que saia.

Como esse era o maior desejo do médico naquele instante, não titubeou em recolher apressadamente seus pertences e precipitar-se à porta, deixando àquela cena bizarra.

Débora levantou-se, caminhando lentamente até aquilo que acabara de parir; ainda sentindo as pernas flácidas, agachou-se com grande esforço, e o tomou nos braços.

- Vamos. Vamos tomar um banho. Mamãe está toda suja e você também.

E foram.

______________________________________________ Morituri

Femina Morituri
Enviado por Femina Morituri em 20/03/2015
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