Águas Malditas DTRL 21

­— Olá garotinho, o que está desenhando ai?

— É meu ursinho.

— Senhor, documentos, por favor. Próximo, guichê ao lado.

Com sua mochila nas costas, o menino já subia a rampa do navio ao toque da primeira chamada anunciada pela ensurdecedora buzina. Com um som abafado, sua mãe gritava, em vão, para que parasse. Os motores à todo vapor formavam brancas cortinas de fumaça. Milhares de toneladas de ferro e aço, agraciada com o sódio da água, dançavam como bailarinas nas pontas do pés nas profundas águas. Sérgio ganhou tranquilidade ao ver sua namorada dobrar a esquina com as passagens em mãos. Ao vê-la, apertou a aliança guardada no bolso da sua calça ensaiando, mais uma vez, um pedido de casamento.

— Nossa, achei que não iríamos conseguir. O que aconteceu? Se perdeu?

— Ah, me desculpa. Tudo deu errado hoje. Mas vamos logo, já está apitando de novo. Que navio lindo, né?

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Imponente, o enorme navio era um mero brinquedo naquela imensidão escura. Tudo é escuro e calmo. Próximos da polpa, Sérgio quebra o silêncio após esgueirar-se com Cassandra em um local proibido para passageiros:

— Sérgio, você está louco? não podemos ficar aqui, olhe as placas. — Disse Cassandra aflita olhando para todos os lados.

— Bom, estive pensando. Todo esse tempo em que estamos juntos e ... — tremendo, pegou a caixinha da aliança no bolso e abriu. — Casa comigo?

Curiosa, a lua saiu detrás das nuvens escuras e iluminou o anel e os olhos de Sandra.

— Sé.. errr... Seu bobo!

Sem voz, o sim é falado, também, ao encontro de lábios. Com pressa, Sérgio e Cassandra beijavam-se ao mesmo tempo em que corriam para o pequeno bote salva vidas. Nos poucos segundos que escapava dos beijos, olhava o brilho em seu dedo anelar direito. Cobertos pela fina lona, contrariavam a física formando dois corpos no mesmo espaço. Com a visão bloqueada, a lua deixou outra negra nuvem aproximar-se. Chovia forte, mas os raios e trovões não eram mais audíveis que os gemidos provocados pelos dois. Apenas flashs de milhões de volts fotografavam o ritmado vai e vem.

Uma colisão seca os fizeram despertar horas depois. O bote balançava batendo violentamente na lateral quando voltava do seu lugar. Gritos e choros cortavam o silêncio da noite. Uma terrível tempestade despencava do céu.

Uma hora depois, os gritos terminariam nas águas salgadas. O enorme navio afundava como um mero brinquedo nas mãos de Poseidon. Os raios e trovões cortavam os choros e agonias. As ondas gigantescas abafavam qualquer início de pânico. Os botes salva vidas caíam sem muitos passageiros a bordo, sendo logo destroçados pelas violentas ondas. Um barquinho de papel era engolido no meio das águas gélidas do oceano pacífico. Sérgio apenas conseguiu salvar o garoto dos desenhos e sua esposa. Após uma hora de gritos, a tempestade acalmava sua ira. Com os pulmões cheios de água, centenas de corpos flutuavam sem rumo. Tudo é escuro, silencioso e frio.

Cintilantes, as estrelas apagavam-se uma a uma.

**

— Vô, esse carderno é do senhor? Que velho.

— Não, não. Eu o comprei em um leilão. Eu já nem me lembrava mais dele. Gastei uma fortuna, e agora está aqui no meio dessas caixas na garagem.

— O que há de tão importante para um caderno velho de seis páginas ser vendido em um leilão? É como o de Anne Frank?

— Esse caderno relata a vivência de um náufrago. No ano de 1936 o famoso navio August com destino à Buenos Aires afundou na costa do pacífico. Alguns corpos foram achados, mas apenas um terço dos cento e cinquenta tripulantes. Este caderno foi achado em uma ilha a vinte quilômetros do acidente. O autor desapareceu. Dois corpos na praia estavam enterrados com cruzes de madeiras. O corpo de uma mulher e de uma criança, mas Sérgio, a pessoa que escreveu seus dias ali, jamais fora encontrado. Eu me arrepio sempre quando leio. Pode levar e ler, se quiser. Eu queria é conseguir o bom dinheiro que paguei nele, mas ninguém se importa mais com essa velha história.

— Eu quero sim. Vou ler em casa. Depois eu te devolvo.

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— Está desenhando seu ursinho de novo?

O dia estava ensolarado e Cassandra ainda dormia quando Sérgio foi vislumbrar o mar. O pequeno garoto do dia do embarque estava sentado próximo ao deck desenhando. Protegendo os olhos do sol, respondeu:

— Não senhor — coçou a cabeça. — Estou tentado escrever meu nome. Mamãe...

Às pressas, saiu correndo ao ver sua mãe gritando seu nome com alguns sanduiches na saída do saguão. Sérgio desistiu de entregar um lápis que havia caído após ver a mulher dando uma dura ao pé do ouvido do garoto. "Eu já lhe disse para não falar com estranhos" pensou. Guardou o lápis no bolso da calça e posicionou-se com a cabeça para fora hipnotizado com os golfinhos acompanhando, na mesma velocidade, aquele monstro de ferro. Pegou a aliança em seu bolso e ensaiou mais algumas vezes um "casa comigo"?

Ao cair da tarde, nuvens negras brincavam de esconde esconde com a lua. Um sim, sonhos, desejos, tudo estaria debaixo dágua naquela noite.

**

6 de dezembro de 1936.

" Olá, me chamo Sérgio. Eu sou sobrevivente do desastre do navio August. Em 30 de Novembro ele afundou no meio de uma tempestade. Tudo foi engolido nessas águas desgraçadas. Inclusive meus sonhos.

Eu salvei um garotinho e minha futura esposa Cassandra. O lápis e este caderno, após secá-lo no desumano sol da tarde tornou-se útil, eram do menino. Os dois já estão mortos há 6 dias. Eu acabei salvando-os do naufrágio, mas já estavam sem vida quando eu acordei com o barco nas areias desta ilha.

Não vou chamar isso de meu 'querido diário', mas me sinto mais humano escrevendo aqui, falando comigo mesmo. Os vermes que desfiguram os dois, fazem parte de meus cortantes pesadelos. Tentei, por três vezes, morrer afogado. Mas a única coisa que ganhei foi um nariz irritado e um ódio da minha incopetência. Maldito instinto de sobrevivência que não podemos controlar.

Tudo aqui é areia, água e mata. Eu encontrei um pequeno lago de água doce, nem tão doce assim, tudo tem gosto de urina. Encontrei também alguns pés de banana e uma cobra que não sei como vou comê-la. Teria deixado-a viva se soubesse. Hoje vou tentar fazer fogo mais uma vez. Não importa essas bolhas na minha mão.

Mais tarde enterrarei os dois. Não importa quantos vermes eu mate. Eles sempre aparecem saindo de suas bocas, narizes e olhos.

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9 de dezembro de 1936

" Olá, desculpa minha ausência. O lápis quebrou ponta e não sabia como apontá-lo. Usei os dentes e sempre quebrava mais e mais. A ponta io solta, por isso já peço perdão pela letra ruim.

Enterrei Cassandra e o meni quele mesmo dia. Finquei duas cruzes em suas covas que cavei com as mãos. 'Peço desculpas também pelas manchas de sangue aqui. Minhas unhas se soltaram um pouco.' Acho que estou fi m pouco louco. Estou começando a ouvir vozes ndo vou dormir. Minha barba coça muito também, e ach tou com piolhos. É tão irônico estar cerc por água e viv jo e fedido.

Na noite passada a lua ava dentro da água. Era tão grande. Taquei mu dras nela. Nenhuma p ceu acertar. Não quero ninguém me olhando. Quando ela some, tudo é escuro e calmo. Eu ainda não consegui fazer fogo. Minhas mãos estão em carne viva. Então, eu passo a noite procurando os grilos que cantam para comê-los. Hoje faz êncio anormal. Passarei a noite com fome. Amanh tentar fazer uma vara de pesca com bambu e linhas de cipó.

Eu tenho um segredo: eu não só escuto vozes, como també ve

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15 de dezembro de 1936

"Ei, desculpa se errei de data. Os dias aqui estão mais difíceis. Eu tentei desenterrar Cassandra para vê-la, mas o cheiro insuportável me fez parar no meio. Vi apenas uma parte de seus pés e mãos. Estavam negros e meio roxos. Uma parte da tíbia também estava visível. Uma larva me encarava de dentro do pequeno buraco entre os dedos. Tentei puxá-la, mas entrou de forma suave, e com perfeição, para dentro. Chorei muito hoje, mas as lágrimas não vieram.

Encontrei dentro da mochila do menino muitos lápis. E apontador também. Achei um sanduíche podre, como já estou enjoado demais das bananas para dispensá-lo, comi. O nome dele era João. Pelo menos foi o nome que deu para ler na lateral do estojo. Lembrei da mãe dele no navio. Será que ela conseguiu salvar-se e está atrás do seu filho?

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16 de Dezembro de 1936

Olá. Hoje eu terminei de construir minha barraca de bambu e folhas de bananeiras. As pontas dos meus dedos estão inchadas e doem. Acho que estão infeccionadas. Os pelos da barba me incomodam. Arranquei muito deles. Fiquei com febre a noite inteira. Tive pesadelos. Minha mulher e o garoto vieram atrás de mim. Ou não era eles, e sim os outros de verdade.

Hoje esta fazendo muito frio. Eu fui perto das pedras e achei uma pequena caverna úmida. Já desisti de fazer a merda da fogueira. Sanguinolentas, minhas mãos já não conseguem girar a madeira. Ficarei agora nesta caverna. Tenho só mais duas folhas deste caderno. As outras que estavam desenhadas eu arranquei para tentar fazer a fogueira. Mas, como sabem, não deu certo e acabei rasgando-as com raiva.

A maior dor do seu humano é a solidão. Eu não estou sozinho aqui, mas não queria essas companhias. Me sinto só do mesmo jeito. Elas não são humanas, como eu já disse.

" E se restasse apenas um ser humano na terra?"

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30 de dezembro de 1936

Olá. hauscam, em eroved. Oãn uov rezid arap em raroved. Ue uov rias iuqad. Não. Não vou.

Eles é que pensam. Estou construindo uma canoa. Amanhã vai ser ano novo. Sei que as ondas podem quebrá-la. Mas vou tentar mesmo assim. Talvez se eu enxergar os fogos, da pra ter uma noção da distância que vou estar. Vou nadando o resto do caminho. Eu queria levar Cassandra, mas ao ver seu corpo quase todo em ossos, vomitei o resto das bananas que ainda tinha em minha barriga. Não irei profanar mais uma vez seu túmulo. Minhas mãos estão ficando roxas e meus dedos estão negros.

Minha canoa já está quase pronta. Só falta apertá-la com mais cipós, mas Eles não querem me deixar ir. Queria decidir morrer aqui. Mas ninguém irá comer minha alma. Ninguém irá me devorar. Tentarei sair daqui. Se conseguir, voltarei para buscar Cassandra e enterrá-la em um cemitério digno.

Eu daria tudo por uma macarronada.

PS: Nunca mais na minha vida comerei bananas.

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31 de dezembro de 1936

Olá. Acordei um pouco tarde hoje. Foi dificil achar um lugar para dormir. Depois que Eles destruíram minha barraca, o jeito foi voltar para a caverna úmida. Estou com medo do sal da água. Se eu tiver que nadar, minhas mãos arderão demais. Se bem que não a estou sentindo muito bem. Estão ficando muito mais escuras. Lembrei-me de Cassandra quando as unhas se soltaram. Encontro-me morto já?

Estou muito magro e fraco para empurrar a canoa. Ninguém quis me ajudar. Malditos. Eu já tentei 8 vezes desde a hora que acordei. Não irei conseguir. Não tenho mais forças para construir outra mais perto da praia. Faltam só cinco linhas para o caderno acabar. Se acharem esses escritos, enterrem Cassandra em um cemitério digno, por favor. Não se preocupem comigo, não estarei afogado nestas águas malditas. Ah, levem o menino também. Não sei se a mãe dele ainda vive. Se sim, avisem-na que fiz de tudo pelo pequeno. Eu vou Neles mais uma vez pedir ajuda. Terão que me ajudar. Muitas nuvens escuras estão além do horizonte. Irei partir mesmo assim, se puder. Não devo sobreviver a duas tempestades. Isso me alegra bastante. Cassandra, meu amor, espero vê-la em breve.

Pra sempre minha esposa.

Sérgio Alcântara de Almeida

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Tema : Naufrágio

Eduardo monteiro
Enviado por Eduardo monteiro em 25/03/2015
Reeditado em 25/03/2015
Código do texto: T5183236
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