O RELÓGIO E A JAQUETA

Dona Adélia era, acima de tudo, uma dama. Um amor não correspondido, na juventude, fizera-a optar por permanecer solteira. Mas isso não a deixara amarga. Era simpática e gostava das pessoas.

Em sete anos como policial militar, era a primeira vez que Artur ficava sozinho na guarnição. O pessoal estava tomando conta do jogo – o mesmo jogo e futebol que estava ouvindo pelo rádio, naquela noite fria. O outro guarda que ficara com ele, Lucas, acabara de sair para atender a uma ocorrência.

Sílvio andava pela casa, inquieto. Chegou na cozinha, abriu a porta da geladeira e ficou sem saber se comia algo doce ou salgado.

Dona Adélia ouviu um barulho na porta da frente de sua casa. Primeiro, achou que fosse na casa do vizinho, aquele rapaz simpático, um estudante que, às vezes, chegava tarde da faculdade. Depois, teve certeza de que era mesmo na porta de sua casa. Mas Dona Adélia nunca fora de se apavorar. A porta era firme, estava bem trancada, e, se o ladrão tentasse entrar pelos fundos, tinha pena dele. Sultão, seu rottweiller, o faria se arrepender amargamente. Acendeu a luz, pegou tranqüilamente o telefone e discou um número.

Sílvio percebeu que a velhinha que morava na casa ao lado havia acendido uma luz. “Estranho”, pensou, “ela costuma dormir cedo”. Mas decidiu-se pelo pudim de leite condensado e se serviu de uma fatia.

Artur estava torcendo nervosamente por seu time quando a campainha do telefone lhe causou um sobressalto. Diminuiu o volume do rádio e atendeu.

– Polícia militar, boa noite.

– Boa noite – respondeu uma voz de anciã. – Será que o senhor poderia fazer a gentileza de vir aqui? Acho que há um ladrão tentando entrar em minha casa.

– Qual é o endereço, senhora? perguntou Artur.

Dona Adélia forneceu-lhe o endereço.

– Certo, estamos mandando uma viatura para aí, senhora – respondeu Artur.

“Deve ser um trote”, pensou. “Ninguém telefona para a polícia com uma voz tão tranqüila. E ninguém liga para cá de uma maneira tão educada. Provavelmente, é algum adolescente cretino, fazendo voz de velha.”

Aumentou o volume do rádio.

Sílvio foi até a janela da frente e espiou. Tinha mesmo um ladrão tentando entrar na casa da Dona Adélia. Pegou o telefone e ligou para ela.

– Dona Adélia? Aqui é Sílvio, o seu vizinho. Acho melhor a senhora chamar a polícia, estão tentando...

– Psst, eu já sei, meu filho – respondeu Dona Adélia. – Eu já chamei a polícia. Fique descansado.

Sílvio consultou o relógio de pulso, apreensivo.

Lucas já havia voltado, e seria a vez de Artur sair com a viatura. Mas ele não disse nada ao colega sobre a ligação da anciã. Seu time estava sofrendo uma forte pressão do adversário. Ele olhou para o telefone, sentindo uma leve sensação de culpa. Mas imaginou que, se não fosse um trote, a pessoa já teria ligado novamente, para insistir com ele.

Dona Adélia esperava pacientemente. A polícia devia ser muito ocupada, talvez não fosse mesmo fácil para eles virem rápido. Além do mais, os barulhos na porta da frente haviam cessado por completo.

De repente, Sultão começou a latir, furioso.

Assustado com os latidos do cachorro, Sílvio correu para os fundos de sua própria casa, e viu que o ladrão invadira o pátio de Dona Adélia. O cão esforçava-se para alcançá-lo, mas o criminoso já percebera que sua corrente o manteria suficientemente afastado da porta dos fundos para permitir a invasão. Sílvio olhou para o relógio. “A polícia não vai vir”, pensou. Já podia imaginar a velhinha sendo atacada pelo bandido. Hesitou, mas lembrou-se de quanto gostava dela. Morava ali há dois anos, vindo do interior, e, naquela cidade enorme e que lhe parecera bastante hostil, Dona Adélia fora uma espécie de porto seguro para o rapaz.

Agarrou uma faca de cozinha e pulou o muro.

Atraída pelos latidos do cachorro, Dona Adélia, imprudentemente, acorreu à porta dos fundos e a abriu. Teve tempo de ver seu jovem vizinho ser desarmado e esfaqueado pelo ladrão – duas vezes. Depois, o criminoso atirou-se sobre ela.

O bandido a derrubou e começou a tirar as próprias roupas. Dona Adélia conseguiu se levantar, gritou, e tentou agarrar alguma coisa para se defender. Pegou um rolo de massa e tentou atingi-lo na cabeça. Chegou a pegar, de raspão. Acabou acertando em seu ombro, e o criminoso gritou de dor.

Impressionado com a coragem dela, acuado por seus gritos, e tendo a impressão de ouvir um carro se aproximar, o bandido puxou a faca. Dona Adélia sentiu uma dor aguda atravessá-la.

Os latidos cessaram, mas o cão pôs-se a ganir, como se estivesse chorando...

No meio da tarde, Artur foi com seu colega Lucas atender a uma ocorrência. Os vizinhos reclamavam que o cachorro de uma senhora não parava de ganir. Também não a viam há horas, e ela costumava sair de casa todos os dias. Artur estremeceu quando Lucas estacionou a viatura, diante daquele endereço.

– É aqui? perguntou, pálido.

– É. Mas por que essa cara?

– Nada...

Os dois policiais desceram do carro e arrombaram a porta da frente. Foram entrando pela casa. Quando chegaram à cozinha, depararam-se com a cena.

A velhinha jazia, caída ao solo, em meio a uma poça de sangue. Perto da entrada dos fundos, um rapaz de uns vinte e poucos anos também estava morto. No pátio, um enorme rottweiller, atado a uma coleira, parecia desesperado...

Lucas pegou o telefone para chamar a polícia judiciária. Enquanto ele o fazia, Artur aproximou-se do morto. Uma coisa havia-lhe chamado a atenção: o relógio no pulso do cadáver – um belo relógio, pensou. Estava parado, marcando onze horas. Disfarçadamente, tirou-o e o colocou no bolso. Afinal, não ia mais fazer falta para o defunto, mesmo...

Enquanto Lucas explicava a cena para os agentes da polícia civil, Artur enxergou uma jaqueta de couro, caída perto da velhinha. Era uma bonita jaqueta. Agarrou-a e a escondeu embaixo do banco da viatura, percebendo que Lucas estava chocado demais com a cena para perceber que um furto estava sendo cometido.

Mais tarde, Lucas voltou à casa, junto com o pessoal da polícia civil. Artur ficara na guarnição. Lucas nunca gostara de cachorros, mas teve pena daquele. Informou-se com os vizinhos. A velhinha não tinha família. O cachorro não tinha com quem ficar, e Lucas decidiu levá-lo para casa.

Artur tentou fazer o relógio voltar a funcionar, mas não conseguiu. Levou-o a um relojoeiro. No dia seguinte, foi buscá-lo. O homem o encarou com expressão curiosa e lhe perguntou:

– Seu Artur, por acaso este relógio é de uma pessoa morta?

Artur empalideceu.

– Claro que não. Por quê?

– Seu Artur, o mecanismo deste relógio não apresenta nenhum defeito. Parece que o único problema é que ele se recusa a funcionar. – O relojoeiro cravou-lhe os olhos penetrantes. – Já ouvi vários casos de relógios que pararam na hora da morte de seus proprietários, e nunca mais voltaram a funcionar, como se tivessem morrido junto...

Artur estremeceu um pouco.

– Bem, devolvo-lhe o relógio – disse o homem. – Infelizmente, não posso resolver. Mas posso lhe indicar um colega, se o senhor quiser experimentar...

– Não, obrigado – respondeu Artur, sentindo-se inquieto.

O policial chegou em casa e largou o relógio na mesinha-de-cabeceira. “Amanhã, resolvo o que fazer com ele”, pensou.

No meio da noite, acordou-se, suando frio. Havia sonhado com o cadáver do jovem, o dono do relógio. Tinha sido um sonho tão real... Parecia-lhe que ainda podia sentir a presença do morto, em seu quarto. Acendeu a luz do abajur e tomou um susto. O relógio estava marcando meia-noite...

Piscou os olhos fortemente e voltou a olhar para o relógio. Os ponteiros permaneciam travados, o grande no número doze, o pequeno no onze. Devia estar imaginando coisas. Mas a sensação ainda o atormentava de forma angustiante.

No dia seguinte, enfiou o relógio no bolso da jaqueta, enfiou-a no guarda-roupas, e tratou de esquecer o assunto.

Alguns meses depois, Lucas recebeu uma herança, uma pequena propriedade rural. Resolveu dar um churrasco para comemorar e convidou todo o pessoal de sua unidade.

No meio da festa, Artur bebeu mais do que deveria. Começou a discutir com um outro policial, e, apreensivo, Lucas tentou apaziguar os ânimos. Acabou por pedir, meio em tom de brincadeira, que ambos lhe entregassem os revólveres. Artur e o outro policial concordaram, pressionados pelos demais circunstantes.

A festa voltou a ficar animada e, mais tarde, Artur perguntou onde ficava o banheiro.

– Bem – respondeu Lucas –, fica lá fora. É uma “casinha”. Ainda não tive tempo de instalar um banheiro decente por aqui. Mas tome cuidado com o cachorro. Está atado, mas nunca se sabe...

– Cachorro? perguntou Artur. – Eu pensei que você não gostava de cachorros.

– Antigamente, eu não gostava. Mas sabe aquela velhinha que morreu lutando contra um marginal? Eu acabei ficando com o cachorro dela. Fiquei com pena do bicho.

Artur franziu a testa. A versão oficial era a de que o jovem estudante tentara invadir a casa da velhinha, e ambos haviam-se matado. Mas aquilo não combinava com o que todos diziam a respeito do rapaz. Todo mundo afirmava que Sílvio era excelente pessoa, e jamais atacaria daquela forma à vizinha, com quem sempre se dera muito bem. No fundo, Artur também sabia que a história estava mal contada – não só porque era o que sua intuição lhe dizia, mas também porque a faca usada para cometer os crimes não havia sido encontrada pela polícia. Mas era-lhe mais conveniente deixar que pesasse a suspeita sobre a memória do jovem do que investigar o que poderia ter realmente acontecido – do que remexer na história de um crime que ele mesmo poderia ter evitado.

Agarrou uma lata de cerveja e saiu, na direção do banheiro. Ao vê-lo, o rottweiller latiu furiosamente. Artur riu.

– Você está atado, idiota – resmungou. – Atado como sempre esteve. Você não passa de um cachorro inútil e muito feio!

E atirou a latinha de cerveja na cabeça do animal.

Ao virar-se, porém, deparou-se com um homem. Estremeceu. Fixou os olhos. À luz da lua cheia, pareceu-lhe que era o jovem que morrera no pátio da casa da velhinha. Mas não era possível! Devia ter bebido muito, mesmo...

Todavia, enfiou a mão no bolso da jaqueta que estava usando – aquela jaqueta – e pegou o relógio. Não havia dúvidas. Os ponteiros marcavam duas horas – haviam voltado a se mexer...

– O que você quer? perguntou, sentindo as pernas um pouco frouxas, mais pelo medo do que pelo álcool.

– Quero apenas que você deixe de possuir o que me pertencia – respondeu o fantasma.

Enquanto isso, o cachorro lutava furiosamente contra a corda que o prendia.

– Tome! disse Artur, atirando-lhe o relógio, e fazendo menção de tirar a jaqueta.

– Oh, não, a jaqueta não é minha.

– O quê? Mas, então... De quem é?

O espectro aproximou-se de Artur e olhou-o de uma forma que o fez paralisar-se.

– Não lhe ocorreu que o verdadeiro criminoso houvesse largado sua jaqueta, quando tentou estuprar Dona Adélia? perguntou.

De repente, Artur sentiu como se o frio da morte passasse do fantasma para seu próprio corpo. Tentou correr. Mas simplesmente não podia.

– O cão de Dona Adélia ainda pode sentir o cheiro daquele homem nesta jaqueta – disse o fantasma.

Subitamente, o rottweiller conseguiu romper a corda e saltou sobre Artur, atirando-o ao chão. O policial sentiu os dentes do animal se cravarem em seu pescoço, por trás, e arrancarem-lhe um pedaço. Uma onda de terror o invadiu. Dores atrozes o consumiram, até que, aos poucos, suas forças foram se esvaindo.

No dia seguinte, os outros policiais militares descobriram o corpo de Artur, ainda vestindo o que fora a bela jaqueta de couro, dilacerada pelos dentes do rottweiller. Perto dele, encontraram o relógio, parado, marcando novamente onze horas...

MAIO DE 2007

(Dedico este conto a Renata Antunes Machado, uma pessoa cuja coragem e dedicação aos amigos faz com que me sinta muito honrada em conhecer.)

Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.

Mauren Guedes Müller
Enviado por Mauren Guedes Müller em 08/06/2007
Reeditado em 29/06/2007
Código do texto: T518525