O ESTRANHO E O OUTRO ESTRANHO

A pessoa a quem aconteceu a seguinte história chamava-se Alexandre, e sua esposa atendia por Rosana. Mas ele não soube me dizer como se chamavam outros dois principais envolvidos, nem eu me atrevo a nomeá-los. Vou referir-me a eles como Alexandre o fez ao me contar sua pequena epopéia: o Estranho e o Outro Estranho. Daí, o leitor que tire as conclusões que bem entender acerca da identidade de tão singulares personagens.

Alexandre era representante comercial e enfrentava uma tempestade, em meio a uma estrada de terra, naquela noite de inverno. Tinha fome, precisava ir ao banheiro e o frio não lhe deixava sentir as pontas dos dedos. Os raios caíam cada vez mais perto de seu carro, que deslizava na estrada, como se esta fosse de manteiga. Até que, de repente, o motor enguiçou. Alexandre soltou um palavrão e empurrou o automóvel até o arremedo de acostamento que havia, levantou o capô e examinou o interior do veículo, enquanto a chuva impiedosa o encharcava. Mas seus precários conhecimentos acerca de mecânica de automóveis não iriam ajudá-lo a sair daquela situação.

Foi quando viu dois faróis se aproximarem. Fez sinal para o carro, que parou. A chuva cessou por um momento quando o Estranho desceu do veículo que conduzia. Era um homem alto, forte, com bastos cabelos negros e uma expressão tão fria quanto a morte.

– Amigo – disse Alexandre –, meu carro estragou, e eu queria pedir, por favor...

– Eu não faço favores – respondeu o Estranho, com uma voz rouca. – Posso te ajudar. Mas vou querer alguma coisa em troca.

Alexandre meteu a mão no bolso e ia puxar a carteira.

– Está bem – disse –, eu entendo. Afinal de contas, estou mesmo precisando...

– Guarde seu dinheiro, Alexandre. Não é isso que eu quero em troca do meu auxílio.

Alexandre estremeceu. Não conhecia o sujeito. Como ele sabia seu nome? Tentou esforçar-se para ver se acaso se lembrava dele, mas não conseguia. Um arrepio percorreu-lhe todo o corpo, e ele recuou dois passos.

– Olha – disse, meio em tom de brincadeira –, se vai me custar a minha alma, pode me deixar aqui, que eu me viro...

– Não vai lhe custar a sua alma, Alexandre. Posso lhe garantir que o que quero de você é estritamente proporcional ao que vou lhe dar.

O jovem representante comercial franziu a testa. O que poderia ser proporcional a ajudar alguém que estava com frio, com fome, na chuva e com o carro enguiçado? Provavelmente, uma ajuda semelhante, numa situação parecida. Pareceu-lhe bastante justo.

– Neste caso, eu aceito – respondeu.

– Ótimo. Entre no carro e tente ligar o motor.

Alexandre obedeceu, enquanto o Estranho se curvava sobre o capô e examinava o motor, ou fingia examiná-lo. Mal acionou a ignição, o motor pegou, para seu espanto. Deixou-o ligado e desceu do carro.

– O que você fez? perguntou ao Estranho.

– Não lhe importa. O fato é que agora você pode prosseguir viagem. Boa noite.

O jovem o olhou, espantado, enquanto ele voltava para seu automóvel e partia. Alexandre voltou para o carro e pôs-se a dirigir. De repente, parecia-lhe que até a estrada estava mais firme. A chuva cessara por completo, e uma lua cheia iluminava o céu, por entre as nuvens.

Súbito, viu algo no meio da estrada, e pisou no freio. O carro deslizou alguns metros, mas parou antes de bater naquele obstáculo. Alexandre sentiu-se gelar ainda mais. À luz dos faróis, enxergou o que lhe parecia ser um corpo humano...

Desceu do carro e viu que se tratava de uma jovem, de uma linda jovem, em cujo abdômen havia um ferimento profundo. Colocou-a imediatamente no carro, e dirigiu o mais rápido que pôde para a cidade mais próxima. Começou a rezar para que conseguisse chegar a tempo ao hospital, para que conseguisse salvar a vida da moça. E suas preces foram ouvidas, pois, quando chegou ao Pronto-Socorro, a jovem imediatamente foi atendida, e, após algumas horas, vieram-lhe dizer que o estado de saúde dela era promissor.

Alexandre ficou sabendo que a moça se chamava Rosana, e era secretária. Ela havia sido assaltada, e o bandido, que lhe roubara o carro, esfaqueara-a e a havia deixado naquela estrada deserta. Os dois se tornaram amigos. Com o tempo, a amizade foi-se transformando em algo mais intenso. Por fim, declararam-se apaixonados um pelo outro, e trataram de se casar. Cerca de três anos após haverem-se conhecido, Rosana deu a Alexandre a maravilhosa notícia de que estava grávida.

Naquele dia de inverno, Alexandre havia conseguido fazer os seus negócios mais rápido do que imaginara, e voltara de viagem. Era cerca de sete horas da noite. Rosana já deveria estar quase voltando do trabalho. Alexandre acomodou-se no sofá, ligou a televisão e ficou esperando pela esposa.

De repente, ouviu um barulho, e percebeu que a porta da frente estava sendo arrombada. Tentou fugir pelos fundos, mas a porta dos fundos também cedera. Amaldiçoando a idéia que tivera de comprar uma casa naquele bairro afastado – a única maneira de arranjar uma casa mais ou menos confortável com o dinheiro que ele e a mulher possuíam, tentou pegar o telefone para chamar a polícia. Mas, antes que o fizesse, os criminosos invadiram a sala e saltaram sobre ele, imobilizando-o. Eram três homens, usavam máscaras e todos estavam armados. Um deles apontou-lhe um revólver.

– O.K., cara, vai desembuchando aí onde é que está a grana – disse.

– Eu não tenho muito dinheiro em casa – respondeu Alexandre, assustado. – Mas podem levar tudo o que quiserem...

– Bem, vamos dar uma geral – respondeu o bandido. – Você – apontou para um dos comparsas –, fique aí e tome conta dele.

Enquanto os outros dois se enfiavam casa adentro, o que ficara tomando conta do refém aproximou-se devagar, apontando-lhe a arma.

– Ora, ora, Alexandre – disse, com uma voz que o jovem imediatamente reconheceu. – Finalmente nos reencontramos.

– Você?... perguntou ele.

O homem tirou a máscara. Era realmente o Estranho, que encarou-o com um ar terrivelmente ameaçador.

– Vim buscar o que você me deve – disse.

– O quê? Pelo amor de Deus, eu só lhe devo uma ajuda com o carro...

O Estranho deu uma gargalhada.

– Deveras? perguntou. – Responda-me, Alexandre: se o motor de seu carro não tivesse pegado, você teria chegado aonde sua mulher estava a tempo de salvá-la?

Alexandre estremeceu.

– Você me deve a vida dela, Alexandre – disse o Estranho. – E, conseqüentemente, a de seu filho. E é isso que eu vim buscar. Um desses bandidos que estão comigo é justamente o homem que assaltou Rosana, na ocasião em que vocês se conheceram. Ela está quase chegando em casa. Quando ela chegar, o bandido vai reconhecê-la e matá-la.

O jovem olhou-o, angustiado.

– Pelo amor de Deus, não!... gemeu.

– Pare de me pedir “pelo amor de Deus”, Alexandre. Quem lhe disse que eu amo a Deus? Mas, de qualquer forma, podemos negociar uma troca. Posso deixá-la viva, se você livremente aceitar me dar sua vida no lugar da dela. Claro, o choque a fará perder o bebê...

– Pelo amor de... Por favor, por piedade, poupe o bebê!...

– Sinto muito, Alexandre. Você me deve duas vidas. E você só tem uma para negociar comigo.

Alexandre fechou os olhos e respirou fundo.

– Então, que seja – respondeu, num fio de voz.

O Estranho pegou o telefone sem fio e alcançou-o ao jovem.

– Faça com que ela demore um pouco mais para chegar aqui – disse. – Assim, terei tempo de convencer o bandido a matar você e ir embora, antes que ela chegue.

Alexandre digitou rapidamente o número do celular de Rosana.

– Alô, meu amor? Será que você poderia... Hã... Passar no supermercado e me comprar... Uma lasanha de microondas?...

– Ah, Alexandre, eu não estou a fim de enfrentar aquela fila horrível.

– Pelo amor de Deus, Rô! É muito, muito importante! Não posso explicar, mas...

Ouviu uma risadinha do outro lado da ligação.

– Eu é que estou grávida, e você é que fica com desejo? Tudo bem, não é o primeiro caso desses que acontece. Vou fazer a sua vontade. Tchau.

– Rosana, espere!

– O que foi?

– Eu te amo...

– Eu também te amo. Tchau.

Alexandre desligou o telefone e encarou o Estranho.

– Agora, por favor, cumpra a sua parte – disse.

O Estranho aproximou-se dele e lhe encostou o revólver no peito.

– Sabe, Alexandre, eu já matei várias pessoas através de terceiros. Mas nunca experimentei a sensação de matar pessoalmente. Talvez seja uma boa hora para isso...

De repente, um dos outros mascarados entrou na sala.

– Pare – disse ele ao Estranho. – Você sabe que não funciona assim.

O Estranho paralisou-se e arregalou os olhos.

– Você? perguntou, entre incrédulo e nervoso.

O homem, o Outro Estranho, tirou a máscara e o encarou. Alexandre também nunca o tinha visto antes – mas lhe pareceu que a fisionomia bondosa, mas firme, do sujeito não combinava com a imagem de um assaltante.

– Não se meta nisso – disse-lhe o Estranho. – Só vim buscar o que ele me deve.

– Deixe de ser mentiroso. Você sabe muito bem que, quando esse jovem começou a rezar, a decisão sobre a vida da moça saiu completamente de suas mãos, e passou para as dEle. Você não tem qualquer direito sobre a vida dela.

Alexandre olhava, angustiado, para um e para o outro, enquanto se perguntava que tipo de criaturas estava vendo. Os olhos do Estranho faiscavam de raiva. Apertou o revólver contra o osso do peito de Alexandre, causando-lhe uma dor que aumentava cada vez que o jovem tentava respirar.

– Acontece que esse jovem ainda me deve o fato de ter conhecido a esposa. E, conseqüentemente, a vida do bebê que ela espera. Portanto, ainda posso escolher pelo menos uma vida para destruir aqui, hoje, sim.

– Isso é o que você pensa! respondeu o Outro Estranho. – Esse é o problema de vocês. Vocês acham que podem adivinhar a vontade de Deus e interferir nela a seu bel-prazer. As previsões que vocês fazem são parciais e imprecisas. Mas Ele sabe tudo, meu caro, e posso lhe garantir que, mesmo que você não houvesse atraído a moça para aquela armadilha, mesmo que você não tivesse feito o carro deste rapaz estragar, eles se encontrariam mais cedo ou mais tarde, e essa criança iria nascer. Portanto, você não tem direito a que nenhum sangue seja derramado por aqui. Vai aceitar isso pacificamente, ou vou ter de usar meus métodos para convencê-lo?

O Estranho hesitou por longos segundos. Por fim, guardou o revólver.

– Mas ele ainda me deve o conserto do carro – resmungou.

Nesse momento, o outro bandido entrou na sala.

– Gente, não tem nada aqui que valha a pena roubar – disse –, a não ser o carro que tem na garagem. Vamos pegá-lo e dar o fora.

– Certo – respondeu o Estranho, emburrado.

O bandido que era mesmo humano ainda apontou o revólver para Alexandre, mas não quis atirar – ou o Outro Estranho, de alguma maneira, o fez desistir. Os três entraram no carro – o Estranho, com indisfarçável irritação – e partiram, para alívio de Alexandre.

O jovem se pôs de joelhos e começou a rezar, entre lágrimas. Ainda estava assim quando Rosana chegou.

– Caramba, Alexandre, o que houve? A porta da frente está arrebentada, a garagem está aberta e o carro sumiu!...

Alexandre levantou-se e abraçou-a.

– Está tudo bem – disse. – Levaram o carro, mas nós ainda estamos vivos.

Ela correspondeu ao abraço, carinhosamente.

– Graças a Deus – murmurou. – Mas, afinal de contas, o que houve? Um assalto?

– Não sei se foi exatamente um assalto, amor. Só sei que a gente tem que rezar muito – respondeu ele, suspirando profundamente.

Embora não me haja dito com todas as letras, certamente Alexandre não tem dúvidas acerca da natureza do Estranho. Quanto ao Outro Estranho, parece-me significativo o fato de ele ter posto o nome de Angélica na filha do casal...

MAIO DE 2007

Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.

Mauren Guedes Müller
Enviado por Mauren Guedes Müller em 08/06/2007
Reeditado em 29/06/2007
Código do texto: T518531