AS MÃOS DA PIANISTA

AS MÃOS DA PIANISTA

Lúcia era uma jovem visivelmente doentia. Sua pele era pálida e seu rosto, sem grandes atrativos, era mal emoldurado por uma rala cabeleira castanha. A moça era muito magra – quem a via, perguntava-se como ela conseguia se sustentar em pé. Quando fazia frio, seus lábios adquiriam uma tonalidade azulada, e os grandes olhos negros pareciam mergulhar ainda mais no arroxeado das olheiras.

Mas Lúcia tinha um dom que ninguém deixaria de reconhecer, nem mesmo seu arrogante primo Carlos, a quem o coração da moça dedicava cada um de seus frágeis batimentos. Quando as mãos de Lúcia pousavam sobre o piano, produziam sons que pareciam ter vindo diretamente dos Céus, e que arrancavam lágrimas dos olhos de quem os ouvisse. Naquela tarde de outono, acomodado no sofá da casa dos tios, os pensamentos de Carlos se dividiam entre os sons maravilhosos que fluíam do piano e as palavras zombeteiras de seu amigo Eustáquio sobre a moça. Algumas outras pessoas, parentes e amigos da família, também se encontravam presentes ao pequeno recital doméstico.

– É sublime – murmurou outro dos circunstantes. – Lúcia toca com o coração.

– Para mim, ela toca com os dedos – respondeu-lhe Carlos, baixinho, fingindo desdém.

Lúcia parara de tocar por alguns momentos, recuperando-se, a respiração difícil demonstrando-lhe a dificuldade em tocar com a intensidade com que costumava fazê-lo. Vieram à mente de Carlos as palavras rudes de Eustáquio. Carlos, no meio de uma conversa, confessara-lhe a grande admiração que sentia pelo dom da prima.

– Ela toca divinamente – comentara. – Se fosse um pouco mais bonita...

Eustáquio dera uma gargalhada.

– Lúcia? Nem que tocasse melhor do que Mozart! Carlos, a pobre é feia que dói! Além disso, parece um cadáver. Não me venhas dizer que estás apaixonado por ela!

Carlos franzira a testa, ao mesmo tempo em que sorrira.

– Apaixonado, eu? Ora, meu caro, o meu coração tem asas. Eu jamais o entregaria a mulher alguma.

– Melhor assim – respondera Eustáquio. – Mas, se algum dia decidires te casar, vê se ao menos escolhe uma mulher bonita. Senão, vais acabar por estragar a tua raça!...

Lúcia ainda tocou por algumas horas. Todos estavam encantados, mas Carlos mantinha a fisionomia distante. Quando Lúcia o olhava, quando os grandes olhos tristes da moça encontravam os dele, Carlos desviava os seus, com ar de pouco caso. Porém, sentia um leve aperto no peito, algo como se, no fundo, estivesse com vontade de se levantar e aplaudir de pé o talento da pianista. Quando o recital acabou, a mãe de Lúcia convidou os presentes para o jantar. Lúcia ainda permaneceu ao piano, as mãos magras e pálidas tocando suavemente algumas notas. A sala ficou deserta, exceto por ela e por Carlos, que, por algum motivo, não conseguia sair do lugar.

Lúcia ergueu-lhe o rosto feio e triste.

– Querido primo – disse, baixinho –, que bom que estás aí. Tenho uma coisa para te mostrar.

– E o que seria?

Lúcia respirou profundamente, fechou os olhos e se concentrou. Então, tocou baixinho uma pequena valsa, de sua própria composição. Carlos estremeceu ao ouvi-la. Era simplesmente linda. Reunia, numa mesma peça, a profusão de emoções de Liszt e a doce tristeza de Schubert.

– E então? perguntou ela, ao terminar. – O que achas?

Carlos a encarou com forçado desprezo.

– Já ouvi melhores – respondeu.

– Como?

– Ora, minha cara, desculpe-me se sou tão sincero, mas essa tua valsa me parece um tanto quanto... Pueril.

Lúcia baixou os olhos. Um ligeiro rubor coloriu, por um momento, suas faces cor de mármore.

– Eu pensei que irias gostar... – murmurou ela.

– Pois te enganaste. Desculpa-me.

Saiu da sala, sem olhar para a jovem, e dirigiu-se à mesa do jantar. Para espanto de todos, Lúcia não vinha. A mãe foi buscá-la. Encontrou-a debruçada sobre o piano, já fechado. Tocou nela, chamou-a, e viu que não se mexia. Assustada, chamou o pai da jovem, que a levou para a cama, enquanto alguém chamava às pressas o médico da família.

Lúcia ainda viveu alguns dias, mas já não podia comer. Não contou a ninguém os motivos da tristeza que ceifou o pouco de saúde que ainda lhe restava, até que, numa manhã, simplesmente não abriu mais os olhos...

Os anos se passaram. Carlos tornou-se um homem de razoável posição social, mas permaneceu solteiro. Tivera algumas namoradas e muitas amantes, mas em nenhuma delas encontrara algo que lhe preenchesse o coração. Parecia que em todas faltava alguma coisa – por mais belas que fossem, por mais fogosas que se mostrassem, por mais prendadas ou por mais inteligentes, nada o satisfazia. Nem entre as donzelas, nem entre as damas casadas que traíram com ele seus maridos, nem entre todas as prostitutas cujo corpo alugara a preços maiores ou menores – mulher alguma lhe trouxera a alma um mínimo que fosse do sentimento que, um dia, num passado distante, a havia aquecido...

Bem, faleceram-lhe os tios. Como a única filha os havia precedido na morte, e como não havia parentes mais próximos, coube a Carlos a casa que pertencera à família de Lúcia, por herança. Eustáquio havia-se tornado corretor de imóveis, e de bom grado aceitou o encargo de vender o solar do primo. Mas logo percebeu que não seria fácil. Embora a casa fosse grande e bem mobiliada, e estivesse num ponto nobre da cidade, havia boatos que diziam que era mal-assombrada. Comentava-se que, seguidamente, o velho piano produzia sons de outro mundo, ao toque dos dedos pálidos e doentios do fantasma da donzela Lúcia.

Eustáquio já havia levado vários possíveis compradores ao local, mas todos diziam sentir na casa uma presença aterrorizadora, e nenhum quisera fechar o negócio. Numa das visitas, o próprio corretor teve a impressão de ouvir um som vindo do piano. Mas não quis admiti-lo. Porém os meses se passaram, e, um dia, Carlos veio-lhe perguntar porque ainda não efetuara a venda.

– Isso te pergunto eu! respondeu o corretor. – Não sabes que a infeliz da tua prima tem assombrado o lugar?

– Ora, mas que tolice! Logo tu vens me acreditar nisso?

– Ainda que eu não acredite, o mesmo não posso dizer do povo. Ninguém se atreve a comprar uma casa onde o piano toca sozinho de madrugada! Por que não te livras primeiro do piano, para então tentares vender o solar?

– Porque não quero! Porque não acredito nessas sandices, nessas superstições!

– Pois a mim tem-me causado transtornos o fato de não conseguir vender um imóvel. Tem arranhado a minha reputação como corretor. Acho melhor procurares outro...

– Então, faço-te uma proposta. Passemos nós dois uma noite inteira no solar. Se o piano permanecer mudo, continuarás tentando vender a casa. Se o piano tocar, libero-te desse encargo.

O outro estremeceu ligeiramente.

– Estás com medo? perguntou Carlos.

– Não... Claro que não. Faremos isso assim que tu quiseres.

Carlos e Eustáquio levaram duas garrafas de vinho e começaram a bebê-las tão logo o sol se pôs. Haviam-se instalado na sala principal, onde o piano permanecia fechado. Carlos aproximou-se do instrumento e levantou a tampa sobre as teclas.

– Por que estás fazendo isso? perguntou Eustáquio, estremecendo.

– Para provocar minha prima – respondeu Carlos, rindo. – Vamos ver se ela vem tocar a valsa que compôs pouco antes de morrer.

– Não brinques com uma coisa dessas.

– Ora, até parece que acreditas mesmo em aparições!...

À medida que a noite avançava, Eustáquio sentia-se cada vez mais inquieto. Estranhamente, Carlos também foi ficando apreensivo. Em vez de embotar-lhes os sentidos, parecia que o álcool havia-lhes excitado a mente. Carlos começou a ter a sensação de que ambos eram observados, mas não quis dizer nada ao corretor.

Eustáquio, porém, cada vez mais pálido, murmurou:

– Acho que vi alguma coisa ali... – e apontou para um canto.

À pouca luz das velas que haviam acendido, Carlos tentou divisar alguma coisa no lugar para onde seu amigo apontava.

– Tolice – respondeu. – Não vejo nada.

Daí a pouco, porém, o próprio Carlos enxergou, com o canto do olho, uma sombra negra movimentar-se na penumbra.

Sentindo o coração aos pulos, aproximou-se de Eustáquio, que estava no canto oposto da sala. Queria estar perto do amigo para sentir-se mais seguro. Eustáquio levou aos lábios a garrafa e sorveu um grande gole de vinho.

De repente, ambos ouviram várias teclas do piano soarem ao mesmo tempo, fortemente, produzindo um som terrível.

Eustáquio deixou cair a garrafa e saiu correndo da casa, tão rápido quanto suas pernas lhe permitiram. Carlos o teria acompanhado, mas sentiu-se paralisar por um instante. Quando recuperou o controle de seus membros, voltou-se devagar para o piano, e viu sobre o teclado o que lhe pareceu serem duas chamas esverdeadas, em meio a uma sombra negra.

Porém, a sombra se moveu, acionando novamente algumas teclas, e a garganta da criatura emitiu um som agudo que imediatamente Carlos identificou.

Aproximou-se devagar e espantou o gato preto de cima do piano.

– Então, eras tu que assombravas esta casa! resmungou. – Como vou rir de Eustáquio, quando conseguir encontrá-lo! Sim, porque, da forma como saiu correndo, talvez não pare antes de chegar à China!...

Correu o gato até fazê-lo sair por uma janela aberta. Então, voltou-se novamente para o piano.

Foi então que, à luz das velas, enxergou nitidamente o vulto pálido e doentio de sua prima, sentado diante do instrumento e lançando-lhe um sorriso triste.

Teve a sensação de que seu coração parara de bater por um momento.

– O que... O que estas fazendo aqui? perguntou, assim que conseguiu falar.

– Vim apenas para pedir novamente tua opinião sobre a valsa que eu compus – respondeu ela, com voz suave.

Carlos aproximou-se.

– A valsa... Foi por causa dessa valsa... Por causa das palavras duras que eu te disse acerca dessa valsa, que...

– Que a vida que ainda me restava me abandonou, Carlos. Sim, foi.

Ela colocou as mãos sobre o piano e olhou para o primo. Sua expressão era suave, e pareceu a Carlos que ela se tornara muito mais bela depois de morta.

– Quero a tua opinião sincera – disse.

E dedilhou a valsa ao piano. Suas mãos muito brancas deslizavam sobre as teclas. A música sublime penetrou pelos ouvidos de Carlos e pareceu aquecer-lhe o coração e a alma.

– E então? perguntou, por fim.

Carlos tinha lágrimas nos olhos.

– Divina – respondeu, batendo palmas. – Simplesmente maravilhosa. Lúcia, peço-te que me perdoes...

Ela sorriu.

– Eu te perdôo, Carlos. – Suspirou. – Bem, parece que cheguei a tempo.

– A tempo de quê?

Lúcia estendeu-lhe as mãos. Carlos também lhe estendeu as suas, perguntando-se se conseguiria tocar naquelas mãos imateriais.

Porém, ao mesmo tempo em que lhe parecia flutuar, seus dedos se entrelaçaram aos da prima, embora não sentisse exatamente o toque. Então, ambos se dirigiram, esvoaçando, para a grande janela, e, quando Carlos se deu conta, haviam-na atravessado...

No dia seguinte, Eustáquio foi chamado pela polícia para reconhecer o corpo.

– É meu amigo Carlos, sim – confirmou. – Do que ele morreu?

– Não temos certeza, mas o médico legista disse que, provavelmente, arrebentou um aneurisma cerebral – disse um dos dois guardas que o acompanhavam.

– Por causa de um susto?

– Ele acha que não. Há muito tempo estava para rebentar. Ele morreria de qualquer jeito, a qualquer instante. Não há culpados.

– Bem, pela expressão de seu rosto, parece que ele morreu em paz – comentou Eustáquio.

– O rosto dos mortos sempre é inexpressivo – respondeu o policial.

– Nem sempre – respondeu o outro guarda. – Ao menos, pela minha experiência. Olhando para este cadáver, meu caro, tenho a impressão de que ele morreu em êxtase, como se estivesse... Como se já estivesse ouvindo a música dos anjos...

JUNHO DE 2007

Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias e opiniões. Qualquer semelhança com nomes, pessoas ou fatos reais terá sido mera coincidência.

Mauren Guedes Müller
Enviado por Mauren Guedes Müller em 08/06/2007
Reeditado em 29/06/2007
Código do texto: T518543