Herói de Guerra

Por: Sidney Muniz

Heróis de Guerra? Uma ova! Seja na ficção ou na realidade, nas histórias de guerra ou nas canções de amor, saiba que eles não passam de ilusão. São sim um punhado de granadas que ameaçam explodir a qualquer momento. Puxe o pino, e seis segundos serão suficientes.  Somos tão temperamentais. O que separa o herói do assassino é apenas quem ele mata, e tenho dito por experiência própria. Assassinar um milhão não é o problema, a solução é matar o primeiro, e anotar a placa sem ler a inscrição. No fim acabamos gostando de matar, isso é fato.

  É um dom, e mais que isso, é um poder. É ter a pomba branca entre os dedos e esmagá-la escutando o último pio escapar pelo bico, junto ao estalido dos ossos e ao irromper do sangue. Ouvir o hino nacional enquanto as balas se esquivam de você, que por uma fração de tempo pensa ser imortal. É acertar um tiro certeiro no peito do inimigo, e sentir o alívio imediato após tal injeção de adrenalina. É perceber o olho atravessando a mira e atingindo o alvo diretamente na retina. Olho por olho, dente por dente. A bala perdida sempre encontra a bandeira de paz e o copo vazio quando descobrir a sede, sempre vai querer mais, e mais. 
 
  O sangue é o combustível dos tanques de guerra, a pólvora dos canhões. Nem sempre que se grita “Fogo!” tem-se a intenção de pará-lo. Não. Somos um bando de corvos covardes, ávidos, batendo as asas, parados no ar imitando beija-flores... Sugando a beleza da vida, gota por gota, e experimentando a língua lamber a ferida, enquanto as pétalas caem, uma a uma.  Maldita seja essa vida! Somos todos guerreiros de um exército só, marchando para o extermínio de nossa própria raça. Grande miséria!  

 
 Alistei-me em uma lista de tantos, e eis que por azar me encontraram, os malditos. Dezessete anos! A idade da libertação, e o que queriam de mim? Queriam me aprisionar com o poder de suas palavras santas... “Tudo tem um propósito divino.” A propósito, quem foi idiota que inventou tal baboseira? Marchamos de encontro a sorte. Adultos ainda meninos, selvagens atirando em tudo e morrendo por nada. Estávamos tão assustados como um grilo que engole o próprio grito. Tudo explodia ao nosso redor, e implodia dentro de nós. Lembro-me como se fosse amanhã, como se tudo fosse acontecer hoje. Tornamos-nos escravos de nosso próprio mau, o perverso reverso do nosso próprio bem.


  Missão? Sempre tínhamos uma. Mas o que é isso afinal? Um compromisso? Mas com quem? Um dever? O caráleo que é um dever! As merecedoras estrelas e medalhas pouco dizem, brilham sem ter luz, sem estar onde verdadeiramente deveriam. Devíamos ter ouvido os nossos corações antes daquela tarde. Ainda arde em minha boca o gosto da contrição. Estávamos embebecidos de patriotismo e coragem, sentimentos camuflados em pura covardia. Essas vidas da gente... Aquelas vidas daquela gente... Foi como rasgar a nossa própria carta de alforria. Éramos então como um bando de negros forros, se achando livres quando na verdade a liberdade nada mais é que uma prisão. Como éramos tolos, todos. Como somos...

 O silêncio na mata, o clique do gatilho, o carvão pintando a cara do mocinho bandido. Heróis? Marchando de encontro ao fadário. Como serpentes, rastejávamos traiçoeiros, cotovelos se arrastando pelo chão. O inimigo do outro lado do espelho ignorava a presença do perigo.  Armas em punho. A pólvora, o dedo, o estalo e os estouros. Que pena as penas na testa do líder caírem tão depois do corpo. Fêmeas corriam nuas carregando suas crias. A cena a minha frente era tão real que parecia teatral. Era um abate. Filhotes de índio caíam de peito desnudo sobre o chão duro.  Os brutos atiravam sem piedade, o fogo incendiava as casas, as casas queimavam os índios. Em meio a dor gritavam como se fossem iguais a nós. Vozes, razão e emoção... E no fim, parecia que no amor, na dor e no ódio todos sangravam tão igualmente.

   Nós os cercamos, meus companheiros disparavam no embalo da morte.  Uma leve garoa começou a cair de repente, fazendo com que eles se misturassem a lama do chão. Um indiozinho de olhos de tigre ficou de pé, sacou seu arco e me apontou uma flecha. Observei a lágrima desengonçada deslizando pela poeira da face do pequeno pele-vermelha. “Não zombe de minha espingarda, menino”. Não havia dado um tiro sequer aquele dia, na verdade nunca havia matado alguém até então. “Seria agora?” pensei, enquanto olhava a envergadura dele há apenas cinco metros de mim...  Quanta coragem havia lá. Os homens riam, mas eu não. O garoto piscou um olho, piscou e o manteve fechado. Os dedos da mão direita se desprenderam da corda do arco, que tremeu uma ultima vez. Eu atirei no mesmo momento em que a flecha foi lançada. O que era certo se provou mais certo ainda. A bala é sempre mais rápida que a flecha, e a mira e força do pequeno eram insuficientes. Depois dele caíram tantos, não há números nem rostos, mas dele me lembro. Ainda penso naqueles olhos, é como seu os visse antes de matar qualquer outro. E é por eles que estou aqui.

 Sei que não sou merecedor de perdão algum. Não há orações para tantas almas, muito menos para minha. Meus olhos fitam o céu iluminado, enquanto a criança acorda outras estrelas, uma a uma. Tanto tempo se passou. Entre a corda e o pescoço há o sentimento estreito da morte iminente. Os pés vacilavam no ar, me sinto flutuar em agonia, como se estivesse dançando a dança da chuva, sem a canção, sem a fumaça. “E aqui estou, três metros do chão, as mãos contendo a corda, e as lágrimas escorregadias riscando minha pele e arranhando o meu orgulho. Relutantemente ainda estou vivo, por muito pouco tempo, talvez apenas para dizer que estou desertando.

 
 

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Enviado por Contadores de Histórias em 07/04/2015
Reeditado em 18/05/2015
Código do texto: T5198843
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