Vudu

O verdadeiro homem quer duas coisas: perigo e jogo. Por isso quer a mulher: o jogo mais perigoso.

(Friedrich Nietzsche)

Naquela época, corria um boato pela cidade sobre a chegada de um certo negro carrancudo. O ano era 1987.

O que chamou atenção dos moradores interioranos foi a aura de mistério que cercava o tal homem. Vestia roupas com estampas de animais, usava couro de boa qualidade nos cintos, nos sapatos e em alguns adornos de pulso; raspava o cabelo, à máquina número dois talvez. Não demonstrava a idade, porém se via que não era tão jovem.

Foi morar na casa dos Silva Marinho que estava para venda a uns dois meses, num bairro nobre, mas não tinha carro. Andava sempre a pé. A cidade era realmente pequena, afinal.

Um tempo depois, apareceu na frente da casa do homem uma placa. "Alabá - Trabalhos Espirituais".

Não demorou muito para que os curiosos se achegassem, mais querendo especular do que qualquer outra coisa; pensavam que era algum pai-de-santo, e o pai-de-santo mais conhecido da localidade ficou enfezado. "Quem esse nêgo pensa que é pra chegá botando banca? Pois eu vô é demandá ele e é hoje...".

Logo os especuladores se afastaram; uma consulta com o espiritualista não custava menos do que muitos cruzados. Assim, apenas a elite realmente interessada no assunto frequentava a casa de Alabá, e ele, que já tinha algum dinheiro, estava prosperando, esvaziando a terreira de Pai Genildo de Ogum.

Havia fila de espera. O então suposto médium, já muito procurado, contratou uma secretária que era encarregada de marcar as consultas, e nada além disso, porque trabalhava sozinho. Certa tarde de outono, entrou um homem na sala de espera, desconcertado.

- Pois não, senhor?

- Preciso de uma consulta. Urgente.

- Deixa eu ver aqui. Quarta-feira da semana que vem, nove da manhã, fica bom?

- Não, a moça não entendeu. É muito urgente.

Dizendo isso em voz baixa, mostrou dentro do paletó um maço gordo de dinheiro.

- Vejamos o que posso fazer pelo senhor. Volte mais tarde, lá pelas seis.

E deu uma piscadela, confirmando o pequeno "ajuste" na agenda.

Quando deu seis horas, o homem voltou até a casa de consultas. As portas já estavam fechadas; começou a imaginar ter sido enganado quando a porta abriu, discretamente. Era a secretária.

- Pode entrar. Ele vai lhe atender.

E entrou.

- Só aguardar um poquinho. E o pagamento é adiantado... O meu pagamento, no caso.

- Entendo, entendo. Aqui está.

- O seu nome, pra eu por na ficha da consulta. Nome completo e nascimento.

- Aureliano da Costa Figuerôa. Onze de janeiro de mil novecentos e quarenta e nove.

Demorou uns quinze minutos até que a secretária voltasse dos fundos, onde, segundo ela, foi deixar a ficha.

- Pode passar, é por aqui.

Andou por um corredor largo, bonito, decorado com arte clássica da melhor qualidade, até entrar em uma sala de tamanho médio, onde o ambiente mudava drasticamente.

Pelas paredes, penduricalhos de todos os tipos. Ramos secos, ervas em atilhos, garrafas com líquidos e pós, saquinhos de pano. Nas prateleiras, uma infinidade de potes de barro e metal. Havia ainda uma estante de livros, todos de capa parda e sem inscrições.

Atrás de uma mesa de madeira, velha e já quase arruinada pela ação do tempo, estava o negro; sentado em cadeira de mesma qualidade, vestia espécie de bata marrom com calças brancas e ostentava muitos colares e pulseiras. Sobre a mesa, não havia nada, sequer uma toalha. Debaixo dela, porém, uma faca encravada.

- Então, seu Aureliano. Já percebo que o seu mal é o amor.

- Pois é, pai... Perdão, como devo de lhe chamar?

- Não, não. Nada de pai. Não sou pai-de-santo. Apenas faço meus trabalhos. Diga logo o que precisa, com certeza não é saber da minha identidade.

- Na verdade, isso me deixa um pouco curioso...

- Sigo a arte espiritual de meus antepassados, que viveram no reino de Daomé. É o que lhe basta saber. Então, diga logo.

Tinha um sotaque muito esquisito, embora falasse com certo requinte.

- É Joana... Me abandonou!

- Sei. Quer a moça de volta. E em que condições? Iguais eram antes dela lhe deixar?

- Brigávamos muito. Gostaria que ela voltasse pra mim, mais doce. E que também admitisse que foi um erro. O senhor sabe, tenho um nome a zelar. Não é conveniente que leve tocos assim.

- Nome completo de batismo e data de nascimento dela. Vou precisar de algo pessoal da mulher e seu. Algo orgânico.

- Orgânico?

- Sim. Fios de cabelo, pedaço de unha, de pele, um pouco de sangue...

- Imaginei. Trouxe aqui uma escova de cabelos que era dela. O nome é Joana de Ávila Trentes, nascida em quatorze de julho de mil novecentos e cinquenta e seis.

Dito isso, arrancou da própria cabeça um chumaço de cabelos.

- Certo. É preciso que o senhor compreenda algumas coisas a respeito deste trabalho que vou fazer. Uma coisa é restaurar um relacionamento e deixá-lo ao sabor do destino. Outra, bem diferente, é amarrar uma pessoa a outra, tirando-lhe até a própria vontade. É pra sempre, e irreversível.

- Ótimo! Maravilhoso!

- O senhor me compreendeu? Pra sempre e irreversível.

- É tudo o que eu quero.

- E caro.

- Dê seu preço!

Escreveu uma soma com muitos zeros na própria ficha, que a secretária lhe deixara junto com uma caneta. Aureliano engoliu seco.

- É muito dinheiro...

- É, é sim. Mas é isso que custa. Pode pagar na entrada da lua nova, que é quando ela vai bater à sua porta. Mas esteja ciente de que se não pagar, eu vou romper o feitiço de tal maneira que o senhor há de se arrepender amargamente.

Não era brincadeira. Ficou acertado o preço e Aureliano foi embora. Nove dias depois, exatamente no primeiro dia da lua nova, pegou um carro de praça, como já havia feito antes, para a casa do feiticeiro, muito satisfeito, a fim de fazer o pagamento.

A bem da verdade, Aureliano nunca acreditou muito em feitiçaria e afins, e só recorreu a ela porque estava desatinado, no âmago dos sofrimentos. Tendo a sua amada Joana de volta, entendia ter valido cada cruzado pago pelo feito.

Aconteceu que a moça apareceu na manhã daquele dia, justo como o bruxo disse que riria fazer, às portas do esperançoso ex-amante. Chorando e evidentemente arrependida, pediu mil perdões, e que ele a aceitasse de volta. Daí toda a satisfação de Aureliano.

Durante as semanas seguintes, pelo período que estiveram novamente juntos, o casal teve uma convivência pacífica; o estranho é que era pacífica demais. As discussões de antes desapareceram, e Joana mostrava uma submissão que nunca na vida teve. Mas nada disso desapontava Aureliano, ainda pelo contrário.

Momentos de abalo só chegaram com a doença que acometeu a jovem mulher. Contraiu tuberculose durante o inverno, e como não apresentava melhoras, foi morar com uma tia na casa de campo, por recomendações médicas. Os remédios não faziam efeito e em poucas semanas a moça veio a falecer.

Foi o fim do mundo para o viúvo. Depressivo e atirado na bebida, não tinha mais ânimo algum de viver.

Mas o tempo passa, e com ele as dores e os prazeres. Precisou seguir em frente e, embora sentisse o grilhão que era a saudade da amada Joana, decidiu não esquecê-la, e sim fazer dela uma bonita lembrança. Aos poucos, a vida social e profissional voltava à normalidade.

Foi quando conheceu Érica, também viúva, um ano mais nova do que ele. Tinham assuntos em comum e algumas vezes até foram juntos ao cemitério honrar a memória de seus cônjuges.

Certa noite daquele inverno rigoroso, já deitado para dormir, Aureliano flagrou-se pensando em Érica. Tinha intenções além da amizade com ela e estava considerando a possibilidade de investir nisso. De repente, sua atenção foi desviada por um movimento nas cortinas.

As janelas todas estavam fechadas, e as brancas cortinas acetinadas dançavam como que pelo vento, projetando nas paredes do quarto, à meia luz, silhuetas quase que espectrais.

Receou por um instante até levantar da cama e ir procurar pela possível corrente de ar. Revisou as janelas e não havia sequer um sopro de vento entrando no quarto. Ali, entre a janela e as cortinas, foi tomado por um gelo na espinha que lhe fez voltar a cabeça imediatamente.

Lá estava ela, próxima da porta. Trajando o vestido azul de rendas com o qual fora enterrada; pálida, com o penteado desfeito, descalça; ainda assim, linda. Pairava a alguns centímetros do chão e as rendas soltas de seu vestido moviam-se como as cortinas.

- Joana!

Estupefato pela visão, descrente do próprio julgamento da realidade, caiu de joelhos.

- Joana! Como será possível?

A bela fantasmagórica não respondia. Aureliano aproximou-se, furtiva e apavoradamente, até estar em distância suficiente para perceber que a jovem, apesar de nada ter mudado na aparência, era indubitavelmente outra. Não que fosse outra pessoa... Aliás, nem pessoa era mais! Naquele momento, o homem não compreendia nada.

Num misto de pavor, ansiedade, felicidade e dúvida, fixava os olhos na mulher e não reconhecia a expressão daquele rosto. Vazia, completamente desprovida de qualquer emoção, além de linda era aterradoramente intimidadora.

- Joana, minha Joana...

A aparição levou as mãos alvas ao peito e, dando um puxão sem esforço, arrancou um pedaço de tecido da própria roupa, deixando o peito nu a mostrar algo terrível.

Grossa, metálica, comprida o suficiente para ferir-lhe e apenas com uns dois dedos à mostra, estava encravada uma agulha, na posição do coração. Não havia sangue. Cobrindo o peito com as mãos juntas, tomada de ódio, sumiu feito vapor, e as cortinas cessaram o balançar.

Aureliano desesperou-se. Naquela noite, previsivelmente, não dormiu. Morando sozinho, não teve muito o que fazer além de rezar e vigiar, ainda com aquele turbilhão de emoções avariadas. Na manhã seguinte, procurou Érica para relatar o acontecido; ela foi atenciosa, dizendo que essas coisas as vezes podem ocorrer com jovens viúvos, e que ele deveria procurar ajuda médica, conselho que não seguiu.

Resolveu crer, por conveniente, que nada acontecera naquela noite fria. Buscava coragem para dormir naquele quarto; coragem e alguns soníferos que arranjou com um amigo. Porém, piores noites sucederiam àquela. Aureliano passou a ser incomodado por pesadelos com a falecida mulher. Geralmente, os sonhos repetiam a cena que vivenciou, ou imagens da moça flutuando, tentando falar com ele.

Embora incomodado, suportava, e sequer lembrava mais do "contrato" que fizera na casa de Alabá. Até que um pesadelo fora da rotina lhe aterrou.

No sonho, Joana estava nua, com a agulha cravada em si; demonstrava intenso ódio e retraída tristeza, chorando um pouco. Pegava Aureliano pela mão e lhe mostrava um lugar, ermo, sombrio, trevoso e repugnante. Lá existia imenso silêncio e solidão.

Aquilo foi a gota d'água. Convencido de que os fatos eram todos realmente de natureza sobrenatural, voltou à casa de Alabá. Dessa vez, com menos dinheiro, teve de aguardar na fila de espera por dois dias, tempo que para ele se arrastou pesarosamente.

Quando chegou o dia da consulta e passou por aquele mesmo corredor bonito até entrar na sala sinistra, foi surpreendido com as palavras do feiticeiro antes mesmo de proferir uma frase sequer.

- O que eu lhe disse?

Aureliano suspirou fundo de cansaço e abatimento; há noites que não dormia, mesmo com os tranquilizantes.

- Hein, rapaz? O que eu lhe disse?

- Acho que estou sendo perseguido pelo espírito de minha falecida esposa! Apareceu pra mim, e depois em sonhos. O último sonho foi terrível! O lugar... A situação dela... O senhor precisa me ajudar.

- Parece que não me entendeu. Eu disse que era pra sempre e irreversível. Pra sempre, meu caro, inclui o mundo depois deste. E irreversível não precisa explicar.

- Mas tem de haver alguma solução! Simplesmente desfaça!

- Não é assim que funciona. Não é um jogo, uma brincadeira animista. Trato com forças poderosíssimas e vingativas. Agora, imagine minha posição. Imagine que alguém enfrenta diversos percalços para poder falar com uma pessoa muito influente, perversa e rica; que peça um grande favor a essa pessoa, ao qual ela atende, com certo desprezo e não muito feliz. Imagine se quem pediu voltasse lá um tempo depois solicitando para seu "benfeitor" que desconsiderasse tudo. Seria como pedir um favor ao chefe da máfia e fazer pouco dele depois. Bom, eu sou esse alguém que fala com a tal pessoa. Sinto muito, não há nada que eu possa fazer.

- Mas então, ao menos me elucide o que está acontecendo, não entendi muito bem a sua explicação...

- Joana está num limbo infernal. É pra onde as almas com assuntos mal resolvidos com os vivos vão. De lá, ela pode andar entre um mundo e outro de vez enquando, e também conhecer os seus pensamentos. É muito difícil que eu esteja enganado quando digo que você deve ter se interessado por alguma mulher.

- Érica...

- Veja bem. Você e Joana estão ligados por forças que não compreenderá, mas que farão cumprir o que foi escolhido. Tem um ciclo a perfazer e não há como fugir dele.

- É perigoso?

- Bastante. Especialmente pra você que, se deixar determinadas forças zangadas, atrairá pra si e pra todos os que lhe cercam inúmeras desgraças, pragas, esconjuros astrais.

- Então, o que devo fazer?

- Cumprir o acordo.

- Como?

O feiticeiro não respondeu, apenas fixou o olhar no consulente de forma que ele entendeu o horror que lhe aguardava. Não agradeceu e foi embora.

Anoiteceu. Aureliano estava no quarto, submerso num nevoeiro denso de sua própria mente e num copo de uísque sem gelo. Pensava em Joana e naquele local terrível onde ela estava; pensava em como ele fora o causador de tal desgraça e em quantas outras poderia trazer a pessoas inocentes, como Érica. A culpa lhe corroía. Lembrava das palavras do bruxo. "Pra sempre e irreversível". "Cumprir o acordo".

Olhou com amargura para o vidro de sonífero, ainda quase cheio de comprimidos, e depois para o copo de uísque, já pela metade. Vascilante, meio em dúvida, apertou os olhos e tomou o máximo que pôde de ambos num gole só. Vertiginou e caiu.

- Aureliano... Aureliano... Aureliano!

Despertou. Era Joana lhe batendo no rosto. Observou em volta. Era um lugar, ermo, sombrio, trevoso e repugnante. Lá existia imenso silêncio e solidão. Joana, agora vestida em trapos pretos e sujos, mudara completamente. Adquirira feições abissais; olhos com fundas olheiras, a boca retorcida e os lábios trincados, as maçãs do rosto secas e descoradas. Os cabelos grisalhos e as mãos aleijadas.

- Olha pra mim, Aureliano. Olha pra o que você fez comigo. Olha!

Levantando do chão lamacento, segurou a mão da tão amada Joana e deixou escapar uma lágrima de puro sofrimento. Com um sorriso forçado e as pernas trêmulas, apertou as mãos dela contra o peito.

- Tudo bem, querida. Vai ficar tudo bem agora. Eu estou aqui com você. Pra sempre.

E abraçaram-se.

FIM

Femina Morituri
Enviado por Femina Morituri em 17/04/2015
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