A MÚSICA DO SUICÍDIO [MATT 6/2]

Ao que parece, quem quer nos tenha colocado aqui, tinha um grande motivo. Infelizmente a amnésia não era exclusividade minha, Drew se lembrava de como veio parar aqui tanto quanto eu, e quando tentávamos nos lembrar, uma dor forte dominava nossas mentes.

— Adoraria saber por onde andam Frank e Dante e por que só nós viemos parar nesse lugar que ninguém sabe se é um campo de concentração, um hospício sobrenatural ou uma base militar. — Drew fala.

Dividimos a mesma sela, com duas camas e nada mais. Passamos a noite em claro, após o incidente com o Tiradentes acho que vou demorar alguns dias para conseguir dormir tranquilamente outra vez.

Três batidas bruscamente desnecessárias na porta e ela foi aberta, um soldado fez menção para que saíssemos, e obedecemos, a decepção foi perceber que estávamos sendo levados junto a outros doentes para o pátio do sol, onde cada um era algemado num banquinho, me colocaram junto a Drew num banco à sombra, o que foi um tanto

irônico.

— Não era um banho de sol? — Drew pergunta ao soldado, que não o compreende e dá um soco de leve em seu rosto pela insolência.

Drew baixou a cabeça e, por mais humilhante que isso possa ser, eu baixei também.

Quando os soldados se afastaram, ficamos absortos em nossos pensamentos confusos. Já era ruim o bastante ter que lidar com o fato de estarmos nesse lugar, mas pior ainda era não lembrar de como viemos parar nesse inferno, e mesmo que eu não me lembrasse, meu senso paranoico deixava bem claro que tinha algo nisso.

— O que é aquilo? — Drew apontou para dois homens presos num banquinho ao norte.

Num monte de lixo na grama seca, havia pontas de cigarro, bolinhas de papel, carvão e uma fita K7. Aparentemente, não havia nada de anormal ali, mas quando olhei duas vezes para a fita senti um os pelos do meu corpo arrepiando, era um sinal.

— Temos que pegar... — Eu falo.

Drew assente e se estica todo para tentar puxá-la com o pé, mas está um pouco distante, tento fazer o mesmo, mas também fracasso na tentativa. E tenho uma ideia.

— É o seguinte, você vai me dar um soco e eu te dou outro, depois

encenamos uma briga, quando eles nos afastarem, faça de tudo para cair no chão e esconda a fita...

— Não, eu não vou te bater...

Soquei Drew com um pouco de pena, mas sem hesitar, isso o deixou irado e logo ele revidou, assim dois soldados perceberam o início da confusão e se aproximaram. Continuamos a nos debater um contra o outro, os soldados tiraram nossas algemas e nos seguraram, Drew não tinha forças para se soltar, então chutei o soldado e me joguei no pequeno monte de lixo, enquanto fingia me levantar, coloquei a fita por dentro do macacão ridículo e corri na direção de Drew, mas eles me contiveram antes.

Sob ameaça de ir parar na solitária, fiquei quieto e fui levado para um banho gelado totalmente constrangedor com dois soltados e aquela mesma mangueira com jatos fortes de antes.

Quando anoiteceu, me jogaram de volta ao quarto e em seguida trouxeram Drew.

— Espero que essa fita valha à pena. — Drew diz irritado acariciando o maxilar.

— Não espere que eu me desculpe, são ócios do ofício, agora veja só isso... Marijuana, não entendo por que uma mera fita K7 teria esse nome, também não me lembro de nenhuma cantora com esse nome. — Digo, sentindo uma leve pontada na cabeça que me obrigava a tentar entender isso.

Drew pigarreia de forma teatral. Olho para ele, que está com uma expressão presunçosa segurando um molho de chaves.

— Roubei de um dos guardas, só nos resta saber qual delas abre essa porta, e qual abre o arquivo desse lugar. — Ele diz preocupado.

— Vamos tentar.

Passamos quase meia hora até conseguir abrir a porta do quarto, havia cerca de vinte chaves no molho e não teríamos tanto tempo assim para procurar por algo, tivemos sorte pelo fato da noite ser o turno de menos movimentação dos soldados e médicos, inspetores ou seja lá o que for. Corremos na direção dos corredores menos movimentados até entrarmos na escada que dava para o subsolo, uma espécie de porão gigante com só Deus sabe o quê. A porta de acesso aos corredores de baixo estava trancada, então só demoramos mais um pouco até achar a chave certa, nesse exato momento ouvimos passos, então abrimos a porta, entramos e a trancamos de volta. O corredor possuía uma única luz que oscilava sem parar, havia algumas portas sem etiqueta, o que indicava algo terrível, algo na minha mente dizia que eram os piores “doentes” deste lugar, então andamos até virar para outra ala, com uma grande etiqueta na porta que dizia: Datei.

— Arquivo. — Drew traduziu.

Os passos pareciam ter sumido, mas entramos na ala dos arquivos e trancamos a porta, nos escondemos por precaução, atrás de um sofá antigo na sala cheia de estantes e fichários, uma luz foi acesa e alguém entrou mexeu em algumas fichas e ligeiramente saiu. Passamos mais cinco minutos até julgarmos estar em segurança.

Reacendemos a luz e procuramos pelo que pareceu ser uma eternidade, até que Drew, levado por sua sensibilidade, encontrou uma caixa com fotos de algumas pessoas com fichas e dados que indicavam ser de uma mesma família e mais alguns avulsos, debaixo de tudo havia um caderno, pegamos tudo e pusemos à mesa de escritório que havia ali para destrincharmos tudo, havia um toca-fitas sobre uma das estantes, parecia bem antigo, mas não deixei que Drew colocasse a fita.

Não entendia por que, mas sabia que não era seguro.

...

Seu nome era Dirk Sven, um alemão nato, magro raquítico de olhos azuis claríssimos, casado com Goreth, que estava grávida de seu primeiro filho. Dirk possuía o dom da música, compunha e cantava como ninguém, além de ser melhor pianista que muitos profissionais, seu azar estava em tentar seguir essa carreira.

Já havia mandado dezenas de demonstrações à gravadora local e fora rejeitado em todas as vezes, mesmo assim continuava tentando e tentado continuamente, possuía este desejo e não dormiria tranquilo até realizá-lo.

Era um dia de sábado no inverno devastador de Düsseldorf, o casal estava no banheiro se deliciando em um banho quente, Dirk acariciava as barriga de sua esposa com uma esponja macia lambuzada enquanto beijava seu pescoço, causando profundos arrepios e sua pele e o enrijecimento de seu membro, foi quando, por algum motivo, a água do chuveiro se tornou gelada, assustando Goreth, dando-lhe um susto enorme que quase a derrubou.

— Calma, não é nada.

— Dirk Sven, por favor... Me diga que você pagou a luz, que não gastou o pouco que conseguimos em alguma nova música idiota. — Ela falou com os olhos fechados tentando segurar seu ódio.

Não queria passar sua raiva para a criança.

— Não chame meu trabalho de idiota! Eu sou um artista incompreendido e...

Goreth se afastou dele para se enrolar numa toalha, sentia um frio imenso de repente, Dirk desligou o chuveiro, sentindo sua excitação regredir rapidamente. Não queria ter mais uma discussão, ainda mais quando estavam num momento tão bom de pura sintonia, isso podia inspirá-lo a compor uma nova música, mas ela tinha que estragar tudo com sua falta de compreensão.

— Quando você vai entender que nunca vai conseguir emplacar essas canções idiotas que ninguém gosta? Eu pensei que ter um filho te faria crescer, ser um homem de verdade e procurar um emprego decente, não ficar gastando dinheiro com músicas ridículas que não servem para nada. — A língua de Goreth era afiada como uma navalha.

— Porque você não desaparece? Já que minha música a incomoda tanto? Por que não pega suas coisas e some da minha frente. Você não me merece. Vou sair por aí e arranjar uma mulher de verdade, que não seja gelada na cama e que saiba valorizar o meu trabalho. Você ainda vai ver minha música dominar o país...

Goreth correu para o quarto e se vestiu às pressas, pegando uma pequena muda de roupas e saiu na direção da porta de sua casa, estava tão irritada que não possuía lágrimas nos olhos, era tudo um grande burburinho a atormentar sua mente.

— Onde você vai? — Dirk apareceu ainda nu na sala, para tentar conter a esposa, apesar de tudo, a amava e ela carregava em seu ventre uma criança, seu filho, não queria perdê-los, se arrependeu de tudo que disse na hora que a viu girar a maçaneta.

— Para o inferno. Lá deve ser melhor que viver assim. — Disse e, de fato, partiu sem sequer olhar para trás, em seus olhos verdes.

Naquele momento Dirk sentiu seu coração caindo e atingindo o chão, se quebrando em mil pedaços, que jamais poderiam ser colados. Ele tinha arruinado tudo.

O músico encheu a cara e na escuridão adormeceu, despido e completamente deprimido, acordou num domingo sombrio totalmente nublado e frio como Goreth, o que o levou ao piano, no exato momento uma chuva forte começou a cair, chegou à conclusão de que nada poderia piorar a situação, foi então que seus dedos começaram a compor uma melodia melancólica, esquisita, mas que parecia surgir sozinha, ela fazia jus à tudo que estava acontecendo em sua vida, ela expressava bem o seu fracasso, sua depressão, sua infelicidade.

Lembrou-se então de que faziam planos para os nomes dos filhos, se fosse menino se chamaria Dirk II, e se fosse menina Marijuana, uma alusão aos tempos vindouros em que o casal de namorados se encontravam para fumar.

— Marijuana. — Ele disse definindo o título da canção e a tocou outra vez, sentindo seu coração doer.

No dia seguinte mandara a demonstração para a mesma gravadora, que respondeu dois dias depois com seu primeiro “sim”, que traria consigo algumas consequências.

...

Foi quando Drew viu os nomes no caderno, havia uma ficha para cada um na caixa, eram vítimas de algo relacionado.

Alfons Dieter, 19 anos: um jovem e belo rapaz da alta sociedade de Berlim, estava deprimido e acabara de terminar o relacionamento com sua namorada, ele ligou para a rádio quando a música já era sucesso em todo o país e pediu que a tocassem. Alfons ouviu todos os versos de Marijuana em seu quarto, segurando seu revólver, derramando oceanos de lágrimas com a mão no peito como se pudesse conter a dor em seu peito, quando a música estava em seus últimos segundos, ele pensou nela, olhou a carta que escrevera minutos antes, fechou os olhos, pôs o cano da arma em sua boca e puxou o gatilho sem dó, sua massa cefálica espalhando-se pelos lençóis.

Eva Katharina, 24 anos: a bela garota da loja de conveniências que foi encontrada morta em seu apartamento enforcada com uma corda feita de lençóis, não se sabe como ela o fez, pois não havia nada ao redor de onde ela pudesse pular para a morte, tudo que havia era uma carta selada com sangue seco, que discorria sobre o quão deprimida ela se sentia ao ouvir a música.

Peter Ralf, 33 anos: Um secretário de finanças de Los Angeles, cometeu suicídio ao se jogar do vigésimo andar de um prédio no centro da cidade, em seu escritório encontraram também uma carta, mas dessa vez, nela havia um pedido peculiar, que tocassem Marijuana em seu velório.

Margarita Ambrosia, 40 anos: A mais curiosa de todas, a mulher casada que ganhara na loteria em Roma, estava explodindo de felicidade e a música tocara no momento exato em que descobrira ser a vencedora. No mesmo dia a encontraram morta, pulara de uma ponte e ninguém soube o motivo.

Entre outros.

...

Algumas décadas depois, de volta à Alemanha, a música havia sido proibida de ser executada em todo mundo, graças aos fortes índices de mortes que esta execução causava, Dirk estava em seu novo apartamento, nunca fora feliz, mesmo após todo o dinheiro que a canção lhe rendera, não sabia do paradeiro de Goreth e nunca conheceu a criança, que a essa altura já devia ser um adulto.

Foi quando uma carta com um remetente de mesmo sobrenome chamou-lhe a atenção.

"Querido Dirk,

Te escrevo para dizer que me sinto destruído por dentro, acordar todo dia é um imenso sacrifício ao saber que não a tenho mais comigo. Sua música é amaldiçoada e eu não sei como fez isso, mas gostaria que se sentisse culpado por tê-la composto, não sei como consegue dormir, ao saber de todo o mal que essa maldita canção causou. Mamãe nunca fora feliz, mas ela tinha a mim para mantê-la viva e distraída, ela esperou todos esses anos para cumprir o que você começou, ela escutou a maldita música e se envenenou, a encontrei morta em seu quarto com uma expressão calorosa e um sorriso de quem se entregou à escuridão. Não consigo mais falar sobre isso, carregarei o fardo do seu nome, mas espero que jamais me procure.

Marijuana Sven."

Dirk se sentiu escorrer para uma camada ainda mais profunda de depressão do que já se encontrava, perdera todos esses anos pensando nela e ela se matara ao ouvir a canção que foi inspirada nela, a criança era agora uma adulta amargurada com o mesmo nome da canção, a qual Dirk jamais conheceria.

Ele abriu então a janela de sua sala, pôs a carta em seu peito e deixou-se cair no abismo do arrependimento.

Quando abriu seus olhos, estava num ambiente claro, não entendia o que havia acontecido, mas conforme sua visão foi se adaptando ao lugar, ele percebeu que estava num hospital, não sentia sua perna esquerda, não sabia como sobrevivera, sentia muita dor em todos os lugares, sentia mais dor ainda por dentro, pensou que certamente estava sendo castigo por Deus, tentara entregar-lhe sua alma, mas havia escapado.

— Eu vou te encontrar, Goreth. Te honrarei... Marijuana. — Sussurrou.

Horas mais tarde, uma enfermeira o encontrou morto, rígido e pálido, as intravenosas e o aparelho de respiração artificial haviam sido retirados, ninguém sabe como, tampouco por quem.

...

— Drew, você está pensando o mesmo que eu? — Pergunto cortando o silêncio constrangedor entre nós.

— Em voltar para nosso quarto e chorar até amanhecer?

— Não. Acho que devemos guardar essa fita conosco. — Corrigi sua ideia.

Continua...

E N Andrade
Enviado por E N Andrade em 27/04/2015
Código do texto: T5222019
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