783-A MALDIÇÃO DE BALUNGO -

Orgulho de seu dono, a fazenda Vargem Grande era a melhor propriedade por aquelas região do Rio Remanso. Centenas de alqueires de terras distribuídas em pastos de capim gordura, com gado saudável, gordo e sempre aumentando; em plantações de café, arroz, feijão e milho, fumo e cana, para cujos cultivos eram usados mais de cem escravos; e uma grande área de mata nativa que Coronel Teotônio Quaresma mantinha intocada, e da qual se jactava como se fora ele mesmo o criador das árvores e dos bichos que nela viviam.

— Não existe mata mais conservada do que a minha. — Blasonava, embora constantes fossem as incursões que fazia, para caçadas acompanhado dos dois filhos.

Coronel Quaresma era famoso por ser exigente. Bom administrador, criou os filhos nas lides da fazenda e eles aprenderam a ser como o pai. Homens feitos, trabalhavam juntos para o desenvolvimento cada vez maior da fazenda.

Além dos filhos, o coronel tinha duas filhas, moças feitas, prendadas, criadas com rigor pela zelosa Dona Marica. Todos solteiros, parece que não tinham tempo para outras coisas senão os trabalhos da fazenda.

Periodicamente o Coronel viajava com os filhos para adquirir novos escravos, na capital aonde chegavam os navios negreiros com sua carga de humana de homens e mulheres aprisionados na África.

Na ocasião em que esta narrativa tem começo, levou também o feitor da senzala, o temido Miguel Fernão a fim de ajudar na escolha dos melhores negros, já que pretendia adquirir um lote de dez escravos para colocar no lugar de alguns que haviam morrido ou fugido.

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Balungo era o mandingueiro da tribo na África. Ali era respeitado até mesmo pelo chefe, que o consultava sempre que tinha decisões a tomar. Sabia prever o tempo, anunciava as chuvas mesmo quando o céu estava claro, e tinha poder sobre os bichos da floresta.

Nem as misérias, nem os padecimentos, nem a fome e as dores morais da longa viagem no sinistro navio abateram Balungo. Alto e forte, mantinha-se altaneiro e procurava animar os companheiros de infortúnio.

No leilão, os lances para sua arrematação foram elevados, mas o coronel cobriu a todos. Quando retornaram à fazenda, a sinistra comitiva teve um comentário do feitor Miguel Fernão:

— Essa é a melhor partida de escravos que já vi, Coronel. Principalmente aquele pretão ali. Aquele vale ouro.

O feitor falava com autoridade, conhecia um bom escravo só de olhar. E se sabia avaliar, mais competência tinha ainda em caçar negros que fugiam da senzala. Era conhecedor das tretas e mutretas dos fujões, e seus cachorros bem treinados não perdiam nenhuma pista.

O que ele não sabia, porém, era dos poderes misteriosos do novo escravo.

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Quando escapou, na oitava ou nona tentativa de fuga, Balungo já ia bem, com boa dianteira, mas deu azar: pisou num galho de paineira, e os espinhos entraram pelo calcanhar e sola dos pés. Balungo procurou ervas para os ferimentos, o que atrasou a fuga. Além do que a ferida ficou “braba”, deu em inchar o pé e a sensação de que o pé e a canela estavam pegando fogo. Andou enquanto pode, mas teve uma hora que não aguentou mais. Parou. Foi então localizado pelos cães de Miguel Fernão.

A volta de Balungo à fazenda Vargem Grande foi um tormento para o escravo sobre quem vezes sem conta o feitor havia derramado seu ódio. Caminhava arrastando-se e as pancadas se sucediam.

— Nego num sente dor, disgraçado. — O feitor seguia, escorraçando e chutando o preto. — Vamo chegar logo pra te dar as chibatadas que merece, na frente dos outro preto, que é pra eles vê cumo é que trato nego fujão.

Na senzala, a ferida não sarava, ao contrário, piorava cada vez mais. O coronel Quaresma, sabendo que a ferida aumentava e que o preto podia morrer, chamou o capataz e disse:

— Num deixa ele morrer, seu Fernão. Esse escravo vale muito.

— O jeito é cortá o pé. — disse o feitor.

— Faz o que for preciso. Se for prá ele num morrer, pode cortar. .

Amarrado de mãos, pernas e torso com fortes tiras de couro, Balungo foi submetido ao corte do pé sem qualquer tipo de cuidado. O dantesco da cena indescritível levou o escravo ao desmaio, não sem antes ouvirem-se gritos, berros e maldições.

E as maldições saíram da boca de um, homem que tinha fortes ligações com as forças do bem e do mal.

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A maldição desceu célere, cobrindo toda a Fazenda Vargem Grande com o manto de desgraças, desavenças, brigas e mortes.

A primeira vítima foi Dona Marica. Talvez porque tivesse ficado impressionada com os gritos do escravo naquela tarde em que o pé havia decepado, talvez porque tivesse visto o estado deplorável do negro, da varanda da casa-sede, quando foi levado para senzala, ninguém pode afirmar a causa certa da tristeza profunda que tomou conta da esbelta senhora.

O que todos notaram, pois foi evidente até ao Coronel, homem tosco e despido de sentimentos, todos viram como ela se abateu. Perdeu o ânimo, abaixou a cabeça, refugiou-se no quarto e pelos cantos das salas, não queria mais conversa e deu em emagrecer.

— Tá enfeitiçada. — Cochichavam as pretas na cozinha.

— Mardição do Balungo.

— Isconjuro.

Juca e Tonho, os filhos, deram em discutir por qualquer coisa. Já não combinavam nem no trabalho nem na presença do pai, da mãe e das irmãs. Depois se engalfinharam numa luta corporal bem na frente da fazenda, à vista de todos, não conversavam entre si e evitavam cruzar caminho.

Das Dores e Conceição as irmãs tão dóceis anteriormente, transformaram-se em pouco tempo em duas megeras, trocando palavras feias e xingamentos a todo momento.

O coronel tentou usar sua autoridade para consertar as coisas, mas foi pior. Os filhos não aceitaram mais as ordens do pai e até o desafiavam.

A fazenda entrou em retrocesso, pois também o coronel começou a desanimar, a energia se esvaindo. Deixava as decisões para o dia seguinte, para a próxima semana, e a falta de comando não tardou em manifestar-se em cercas arrombadas, gado doente e colheitas atrasadas.

Balungo, ao contrario, recuperou-se rapidamente com a ajuda de unguentos feitos com gordura de anta e ervas que só ele conhecia. Para ajudar no caminhar, ele mesmo escolheu um galho reto com forquilha, que lavrou e fez uma muleta.

O feitor, entretanto, não diminuía em ferocidade, Mas ela acabou de repente quando foi picado por uma coral, numa caçada. Não teve tempo nem de voltar para a sede da fazenda. Morreu no mato e por lá ficou.

Numa tarde as moças se engalfinharam com tesouras e do entrevero resultou um ferimento na coxa de Das Dores, que logo gangrenou. Antes de uma semana, a jovem morreu.

Durante o velório, Dona Marica desmaiou sobre o corpo da filha, foi levada para a cama de onde nunca mais se levantou.

Conceição, açoitada pelo sentimento de culpa, deu em andar pelos ermos da fazenda, sozinha. Numa dessas andanças, testemunhou, sem querer, uma briga entre os irmãos. Eles lutavam em um barranco sobranceiro ao rio, cujas águas revoltas passavam por entre as pedras, muitos metros abaixo.

Paralisada pela surpresa e pelo medo de ser descoberta, ela assistiu a luta de trágico desfecho: um empurrão violento e forte de Tonho jogou Juca pirambeira abaixo. O rapaz despencou com um grito que terminou com o som do baque sobre as pedras.

Conceição correu para a beirada do precipício. Agarrou-se ao ombro do irmão, e ambos viram as águas vermelhas arrastando Juca para longe, o corpo inerte e a cabeça aberta pelo ferimento mortal.

Os dois não trocaram palavras, mas ela sentiu, pelo olhar cheio de ódio de Tonho, que nada deveria relatar do que vira. Um pacto de morte estava estabelecido entre os dois.

O desleixo do coronel crescia. Não se importava nem mesmo com as próprias roupas e a aparência pessoal. Barba e cabelos cresciam desgrenhados.

Não manifestou estranheza pelo desaparecimento do filho. Talvez intuísse que tinha a ver com a desavença entre os dois filhos, mas não procurou saber do paradeiro de Juca.

Um novo feitor foi contratado: um homem forte e de aparência cruel apareceu pedindo trabalho e foi ajustado para tomar conta dos escravos. Sem experiência para o cargo e, quem sabe? sob a influência do poder de Balungo, abandonou o serviço antes de terminar o mês.

— Você, Tonho, fica encarregado de vigiar a senzala. — O coronel determinou ao filho, que não disse nem que sim, nem que não.

A senzala era o único local onde ainda havia algum sinal de vida organizada. Sem a presença do feitor, alguns escravos fugiram. Mas a maioria ficou, trabalhando, então sem o rigor da chibata, e vivendo do pouco que a fazenda ia produzindo. Era evidente que Balungo era o homem que mantinha os escravos unidos e trabalhando.

Foi um ano duro e ruim para toda a região, mas foi pior para a Vargem Grande. Após um estio prolongado, que matou muitas rezes de fome e de peste, veio um verão de pesadas chuvas. Temporais repentinos, verdadeiras trombas d’água, encheram o rio que transbordou, inundando as baixadas, onde as plantações não morreram.

Em seguida, uma onda de frio, com geadas até nas partes mais altas, onde vicejavam os cafezais. De um dia para o outro, ,madrugada gelada com geada fortíssima, as verdejantes colinas onde o café exibia suas folhas brilhantes transformou-se numa paisagem de folhas secas, marrons, deixando à vista os tenros grãos que, secos, em dias caíram ao chão.

Foi um desastre total para a propriedade. Mas a apatia dominava o coronel e o filho, enquanto a Dona Marica consumia-se no leito e a filha Conceição vagava pelos ermos, como uma louca mansa.

O poder de Malungo aumentava cada vez mais. De um lado, o coronel, a mulher e os filhos iam praticamente desaparecendo, fisicamente e moralmente. De outro lado, os escravos já nem se sentiam mais escravos. Reuniam-se à noite em torno de uma fogueira no pátio da senzala, de onde o tronco de açoites já havia desaparecido. Queimado o terrível madeiro que era o símbolo da servidão e do sofrimento, os negros agora se sentiam donos de suas vidas e também do local.

Tonho foi encontrado morto numa senda da mata, e trazido para a casa-sede numa rede. O capitão, de olhos esgazeados, sentado no alpendre da casa, não tugiu nem mugiu ante o corpo do filho, já mutilado pelo tempo em que permanecera ao léu. Os pretos, sob o mando de Malungo, cavaram uma cova ao lado da casa, onde enterraram o morto.

Zica era a única escrava que permanecia na casa, prestando serviço aos patrões. Foi ela quem deu notícia da morte da patroa. O coronel nada falou. Desceu as escadas e foi para o curral.

Ao entardecer daquele dia, enquanto os pretos cavavam a cova para enterrarem a sinhá ao lado da casa, onde já haviam enterrado Tonho, chegou Zelão, esbaforido, gritando:

— Gente, o coroné tá estripado La no pasto. Foi chifrado pelas vacas.

Só tiveram de aumentar o tamanho da cova para enterrarem o coronel e a mulher.

Conceição saiu um dia pela mata e sumiu. Ninguém foi procurá-la e jamais dela se teve notícia.

Os escravos ocuparam a casa-grande.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte 11de maio de 2013

Conto # 783 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 30/04/2015
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