Licantropia

Do grego, lykánthropos ("lobo") + ánthropos ("homem").

O homem é o lobo do homem.

(Thomas Hobbes)

Aquelas trilhas nas regiões serranas eram mesmo fantásticas. Recordo-me ainda do verão de dois mil e doze, quando lá visitei e fizemos trilha em uma manhã de sábado. Ricardo nos acompanhava naquela ocasião. Com o passar do tempo, resolvi dedicar as horas livres em outros tipos de atividade e nunca mais participei de trilhas, assim como a maioria dos amigos que iam comigo a essas aventuras. Ricardo, contudo, gostava muito do esporte para abandoná-lo, e prosseguiu, ainda que, no mais das vezes, sozinho.

Foi durante uma de suas empreitadas solitárias em meados do ano passado que o insólito ocorreu. Ric, como o chamávamos, recém havia voltado de uma expedição pelas serras, que durara uma semana e meia e correspondia a algumas extensas trilhas dentro dos perais, quando veio até mim com a estória assustadora. Na época, confesso, não dei muita importância aos relatos dele, porque sabia que ainda sofria com colaterais da época em que trabalhou na divisão de narcóticos. Ele, por outro lado, sabendo de meu vasto interesse pelo ocultismo, não hesitou em me procurar assim que voltou.

Estava ansioso e, ao mesmo passo, apavorado, impressionado o suficiente para imprimir um tom auto-sugestivo aos fatos que me expôs.

“Lola, você simplesmente não vai acreditar...”

Mas meu querido amigo não disse que eu não acreditaria de forma a me conceder o benefício da dúvida ou até mesmo do ceticismo, e sim de maneira entusiasta, pensando certamente que eu ficaria maravilhada com o que tinha para mim.

Começou falando dos pormenores da viajem, da rota seguida na trilha, a qual me apresentou através de um pequeno mapa; depois, explicou os componentes da natureza em cada trecho, apontando para uma área de cavernas, onde fez acampamento e, segundo ele, vivenciou o extraordinário.

Seguindo ainda a narrativa de Ric, na primeira noite em que esteve acampado, ouviu muitos uivos de madrugada, o que lhe chamou a atenção, porque, ao que se sabe, na localidade em questão já inexistem lobos há muitas décadas. Quando o episódio veio a se repetir, na noite seguinte, resolveu, no ímpeto da curiosidade, explorar o sistema de cavernas; com um rifle de caça e uma lanterna, embretou-se por entre as pedras, mas desistiu por causa da neblina.

Na manhã seguinte retomou a exploração, já que fazia tempo bom; percebeu, por entre as tantas cavernas, uma de maior tamanho, mais afastada, onde era possível entrar completamente em pé. Não era comprida, contudo; media aproximadamente três metros quadrados. Viu algo de muito intrigante no interior úmido dela: nas pedregosas paredes, havia um par de algemas enferrujado e muitos arranhões.

Nesse ponto, Ricardo lamentava ter perdido, ainda no início da trilha, a máquina de fotografias, e por ter um celular tão obsoleto. "O Luiz sempre me disse pra comprar um celular decente. Bem feito pra mim...". No primeiro momento, não pensou sobre a estranhez da situação como um todo, e foi procurar pessoas que pudessem estar por perto para elucidá-la. Notou, então, nos arredores da caverna, algumas pegadas, ainda frescas nos sulcos do chão.

Como havia chovido na noite anterior, as marcas tornaram-se bem visíveis; eram dois pares diferentes: um de uma bota, número quarenta e um talvez, e outro de um animal. As de animal poderiam ser de um cachorro, não fosse o tamanho descomunal. Ricardo disse ter medido coisa de quarenta centímetros na trena. Observou que as pegadas tinham um padrão: as humanas iam para dentro e as animalescas saíam.

Buscando por outras pessoas, não encontrou ninguém; voltou até o acampamento para pegar a mochila, agasalhos e o saco de dormir, pois decidiu permanecer no local até que avistasse mais gente. Acabou pernoitando por ali e, como não aparecera uma viva alma, voltou para a barraca assim que acordou.

Mais outra noite chegou e com ela os tais uivos. Sem neblina e com ótima lua cheia, novamente saiu com a lanterna e o rifle, pronto para encontrar um lobo dessa vez. Espreitou por entre as cavernas até achar a origem dos ululos, que apontava para aquela caverna grande na qual encontrara as algemas rudimentares. Disse ter, no exato momento, sido tomado por um medo inexplicável, que o desencorajou totalmente de entrar lá, e o pôs correndo de volta para o acampamento.

Inconformado com a própria atitude, não conseguiu dormir; assim que o primeiro lampejo da claridade matinal surgiu, voltou até a caverna. Eis que, para sua surpresa, saía dela um homem. Descreveu-o como um senhor já de idade avançada, provavelmente na casa dos setenta; grisalho, de postura arquejada e muito alto, tinha os olhos bastante prejudicados pelos males senis; era uma figura, pelas características apontadas, não muito peculiar, a não ser pelo fato de estar lá.

Aproximou-se dele para conversar, mas o velho não foi muito receptivo. De tanto insistir, conseguiu arrancar-lhe algumas poucas palavras, ainda que não fizessem muito sentido. Ricardo perguntou o nome e o que fazia por ali, como chegara ali, se também ouvira os uivos na noite passada, etc.

Disse que se chamava José e que o demais não interessava ao moço, e ainda aconselhou que parasse de meter o bedelho no lugar, especialmente à noite, quando os uivos apareciam. "Quando a lua não for mais cheia, os uivos vão parar". Dizendo isso, foi embora a passos bem lentos, com apoio de uma bengala improvisada, recusando companhia.

Assim Ricardo encerrou o relato. Eu não percebi exatamente o que de tão curioso havia nele de imediato, o que meu amigo percebeu rapidamente e, sem demora, explicou sua teoria.

Para ele, tratava-se de um lobisomem; ligava o velho à caverna-masmorra e aos uivos, deixando claro que, para ele, o senhor José era mesmo um lobisomem. Fazendo essa constatação, brilhou os olhos a espera de minha opinião a respeito. Infelizmente, sinto tê-lo desapontado.

Dentro de algumas conjecturas que fiz, expliquei que o folclore em torno da figura do lobisomem era importado e um dos que menos me interessava; falei ainda da questão patológica da licantropia, que advém de um estado psíquico onde o indivíduo crê estar transformando-se num animal, geralmente num lobo, e pode apresentar inclusive sintomas físicos que corroborem com a doença, como o terror noturno, por exemplo.

Ricardo desaprumou-se; esperava, penso, ao menos, curiosidade da minha parte, fazendo inclusive um convite para que eu voltasse com ele no dia seguinte até as cavernas, ou que pelo menos lhe emprestasse a câmera fotográfica. Recusei o convite, mais porque as trilhas já não me atraíam, mas com a desculpa de um compromisso na universidade, que eu realmente tinha. A câmera estava na casa de Alice, e eu disse a ele que poderia pegá-la antes de ir. Desejei-lhe sorte, demos um abraço. Foi a última vez que o vi.

Já haviam se passado onze dias sem nenhuma notícia de Ricardo. Estive com Alice e perguntei se por acaso ele tinha passado para pegar a câmera, ao que ela respondeu dizendo que visitava a irmão no Uruguai naquele dia e no seguinte àquele, com o celular fora da área de cobertura; portanto, se ele tentou, provavelmente não saberemos nunca.

No décimo quinto dia as autoridades iniciaram as buscas, acionadas por nós, já que a família de Ric mora no Rio de Janeiro e pouco tinha notícias dele. Já no primeiro dia de buscas encontraram o acampamento abandonado; no terceiro, a mochila dele, perto do sistema de cavernas. E mais nada.

Quando Ricardo finalmente foi dado como desaparecido e as buscas cessaram pelo transcorrer dos dias e do frio, indicativos de que ele já estaria morto, seus pertences particulares foram entregues ao irmão, que veio assim que soube de tudo. Um tempo depois, Renan veio até mim.

Como é parecido com Ricardo! Lembro-me que naquela manhã, quando bateu à minha porta, pareceu-me estar vendo o próprio Ric um pouco mais jovem. Trazia consigo a mochila do irmão.

"Posso entrar?"

Ali, eu já pressentia que algo de sobrenatural era temido por Renan. Ele queria que eu visse algo. Abrindo a mochila, tirou um pequeno caderno de anotações de dentro de um bolso interno impermeável e estendeu a mim, trêmulo.

Sem questionar, folhei o caderno. Haviam algumas anotações comuns, telefones e endereços, descrições de paisagens por onde Ricardo já havia passado, pensamentos notívagos, etc. Mas, para minha surpresa e infinita tristeza, eis o que continha a última folha que fora escrita:

"Eu já descobri tudo o que se passa aqui. Demorou um pouco, mas esperei pela lua cheia e finalmente consegui. Não deu tempo de pegar uma máquina para registrar com fotos. Parece que esse tipo de coisa não é para ter provas concretas mesmo... Ontem eu esperei por horas escondido no matagal, perto da caverna grande. O tal José apareceu um pouco antes de escurecer. Me esgueirando de tudo quanto foi jeito, pude ver o que ele ia fazer dentro da caverna. Ele tirou as botinas, com todo o frio que faz aqui, e se algemou. Isso mesmo! O próprio velho se algemou, e ficou ali, até cochilou sentado na pedra fria. Fiquei encasquetado e não arredei o pé, mas também acabei dormindo sentado. Só acordei com a barulheira de correntes e os uivos terríveis. Santo Deus! Preso nas algemas já não estava mais seu José, mas um lobo gigante e ereto... Um lobisomem! E com as roupas do seu José! Que loucura. Eu senti o olhar de fogo daquela besta ensandecido pra cima de mim e saí correndo. Mas ainda é lua cheia. Hoje, ele não me escapa. Vou matar a fera. De hoje, não passa."

Renan e eu entreolhamo-nos. Que deveríamos fazer? Ir às autoridades com aquela anotação e dizer para procurarem um lobisomem assassino, que matou Ricardo? Não. Certamente não. Além (e talvez acima) da dor da perda, eu sentia a vergonha de não ter, ao menos, impedido Ric de ir sozinho. Não mencionei a Renan que eu já sabia dos rumores do lobisomem pelo próprio Ricardo, ele me culparia para sempre.

Não tenho coragem de ir até as cavernas. Na realidade, não tenho coragem para dizer a alguém que acredito, ou que tenho especulações sobre o caso. A família também não admitiria, já que nunca gostou muito de mim, e davam a Ric conselhos como "pare de andar com aquela bruxa".

Algumas vezes penso que não foi verdade, que não existe nenhum José, nem cavernas com algemas nas paredes, e que meu querido amigo morreu caindo de uma pirambeira ou algo assim. Pode parecer um pensamento terrível, eu compreendo... Mas tem o benefício da dúvida, ou até mesmo do ceticismo.

_____________________________________ Morituri

Femina Morituri
Enviado por Femina Morituri em 30/04/2015
Código do texto: T5226156
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