Novembro Infinito - DTRL22

Tema: Fantasmas

O céu de São Paulo parece igual naquele mês. Talvez um pouco mais cinza e triste, mas ainda sim, quase igual. Daniel ainda usa o mesmo terno escuro e a mesma gravata torta. O mesmo cabelo desgrenhado e os mesmos olhos fundos de quem anda bebendo demais. Apagados e enegrecidos como as três lentes verticais do semáforo onde a Avenida Paulista faz uma interseção. Chove desde cedo e quase todo o centro de são Paulo está escuro, coberto pela mortalha fria e úmida de uma chuva de verão que chegou mais cedo naquele ano.

Daniel consulta o relógio. Os ponteiros estão congelados. Marcam vinte horas e seis minutos do dia 16 de novembro de 1992.

Um táxi branco passa por ele, atirando água para todos os lados e molhando um grupo de adolescentes impermeáveis sob capas de chuva amarelas. Daniel salta para o lado, mas ainda sim a água sobe pela sarjeta e umedece a barra da calça e o couro dos sapatos.

Então ele se lembra.

Ele pode se lembrar. A lembrança vem com o gosto amargo de um café preto transbordando na boca da xícara. Perdera a pequena fortuna quando o governo sequestrou suas aplicações financeiras. Deus, todo o trabalho de uma vida jogado numa vala escura em algumas horas... E então, o que ele fez?

E então ele entra no banheiro do hotel e tranca a porta. Duas voltas na fechadura, como sempre. Bebe um último gole do uísque. Se deita na banheira - que para ele se parece com uma tumba vazia de sete pés - algema-se ao cano da torneira e... E deixa a água engoli-lo, subindo pelo peito, mordiscando o pescoço...

No táxi branco, Manoel está tão absorto nos próprios pensamentos que não nota que acaba de molhar um punhado de pessoas na calçada. Os nós dos dedos estão brancos e uma gota de suor frio desce através da testa, se abrindo em um V sobre a ponte do nariz. Ele quer um cigarro. Mas parou de fumar. Mesmo assim, procura pela carteira no porta luvas. Não a encontra e solta um palavrão.

Lembra-se de estar dirigindo o velho táxi a cento e oitenta e quatro quilômetros por hora em uma pista de sessenta. Pisando no acelerador até o pedal encostar no piso. E as luzes amarelas como dois olhos monstruosos na linha do horizonte, no sentido contrário da estrada. E o caminhão, enorme, tão grande que a sensação é de que o mundo inteiro se encolhe a sua volta. A boleia diabólica fica mais próxima, o rosnado dentado de seu radiador, a aparência sangrenta do para-brisa...

Os pelos do braço ficam eriçados e até mesmo o ar parece mais frio e amargo. Lágrimas peroladas brotam nos olhos e escorregam lentamente pela superfície das bochechas. Na sarjeta, uma mulher jovem está sentada com a cabeça apoiada sobre os joelhos.

A mulher levanta os olhos a tempo de ver o táxi passando e desaparecendo com um ronco discreto no próximo cruzamento. Ela está chorando. Não de tristeza, mas de pavor e culpa. Seu nome é Cláudia e ela tem vinte anos. Ou tinha vinte anos naquele novembro de 2004, quando o padrasto deslizou as mãos calejadas sob a bainha do seu vestido amarelo.

O coração dispara e o couro cabeludo parece encolhido demais para cobrir a própria cabeça. Se lembra da onda de adrenalina avançado pelo estômago e fazendo os dentes rangerem. O cheiro de álcool e o aroma de óleo diesel, invadindo suas narinas e causando uma ardência incômoda nos pelos do nariz. E ela se recorda de não desejar aquilo, embora alguma parte dela insistisse que quisesse... E se lembra de abrir os olhos e ver a mãe parada no umbral com a arma engatilhada, apontada para ela. Os olhos dela estão inchados de tanto chorar.

E se lembra do som do disparo. E o limbo escuro que veio depois. E a claridade do dia nascendo, como quando se acorda de um longo, longo sono.

Aquele pensamento envia outra pontada de dor através da sua cabeça e outra onda de náusea pelo estômago. Um homem usando paletó e gravata passa por ela. Ele está com as mãos no bolso e de cabeça baixa. Os dois se encaram por três segundos e a impressão de Cláudia é que ela conhece o homem de algum lugar. Eles quebram a conexão visual e o estranho desaparece no ar frio.

A força elétrica ameaça voltar. Mas é apenas um alarme falso. As luzes da cidade acendem e apagam novamente. Uma garoa fina e gélida é trazida pelo vento e junto com ela um fio dourado de compreensão.

Cláudia sabe que no dia seguinte ela estará sentada naquela mesma sarjeta fria. Sabe que verá o táxi branco desaparecer no cruzamento e sabe que o homem de terno passará por ela; e sabe também que os dois se olharão como se fossem velhos conhecidos.

É novembro.

Para outras pessoas, logo será dezembro e enfim o ano novo, com suas figuras natalinas enlatadas e fogos de artifício explodindo no céu noturno sobre a praia. Mas para ela, aquele mês é eterno.

Isaac Räja
Enviado por Isaac Räja em 14/05/2015
Reeditado em 14/05/2015
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