Tricofagia - DTRL 22

-Eu te amo, querida -disse o marido.

-Eu te amo mais! - exclamou Sara, feliz em ouvir aquilo; sentiu a saudade apertar seu coração como uma garra.- Você promete que volta na segunda, mesmo? Já era pra você ter voltado há quase duas semanas...

-Querida, entenda, estou aqui a negócios. E sinto muita falta sua. Falei com o chefe hoje mesmo que na segunda quero estar dormindo na minha casa, com a minha esposa e com o meu gato, não em um hotel quatro estrelas na China. Falei com ele tão sério que ele apenas me olhou com aqueles olhos esbugalhados por algum tempo e depois concordou, meio bravo.

-Aqueles olhos dele me dão medo – comentou Sara, com uma risadinha.

-A mim também. O Senhor Baiacu. Estão chamando ele assim na empresa agora. Se ele escutar, acho que vai haver um massacre. -Ela ouviu com deleite o marido rir (pelo menos ele estava bem) e pensava em algo espirituoso para encerrar a ligação quando uma voz irritada ao fundo chamou pelo marido. Falando no diabo...

-Querida, vou desligar. Acho que você ouviu quem me chamou, né? Bom, te ligo mais tarde. Boa sorte hoje, minha advogada!

-Obrigada, amor. Estarei esperando.

E desligou.

Sara permaneceu por um minuto com o celular na mão, sonhadora, olhando para a cama desarrumada cheia de vestidos, blusas, calças e acessórios. Pares e mais pares de sapatos caros se espalhavam pelo chão, e por um momento aquela bagunça toda não pareceu fazer sentido. Porque ele estava voltando. Mesmo. Depois de quatro longos meses, ele finalmente viria para casa e somente isso parecia importar. Imaginou-se abrindo a porta para o marido e se perdendo no abraço apertado dele, a sensação de segurança que ele a fazia sentir, como se nem a Morte em pessoa pudesse fazê-la mal. E ela sentia falta da “pegada” dele, ah, como sentia...

O devaneio não durou muito, no entanto. Da cozinha, ouviu o relógio indicar hora cheia -10:00-, e a realidade entrou pela porta do quarto varrendo a saudade para longe. (Mas não muito longe.)

Ela estava atrasada.

Pegou o tubinho preto Channel que estava considerando quando o marido ligou e um cinto dourado para dar um charme. Ela queria impressionar o cliente hoje, mas teria de ser mais discreta mesmo. Não havia tempo. A maquiagem seria simples, coisa rápida. O importante era estar em 45 minutos no escritório.

Sara saiu do banheiro 15 minutos depois, vestida, maquiada (na medida do possível) e com o cabelo preso em um coque elegante. Era um recorde pessoal, sabia, mas deixaria para discutir isto no salão mais à noite. Sua barriga roncava e ela precisava pegar um shake natural na geladeira antes de sair, não podia esquecer.

Passou pela biblioteca, pegou alguns papéis, colocou-os na pasta executiva e encontrou King descendo a escada em direção à cozinha.

-Ô, meu amor, você está aí? - disse Sara, se abaixando rapidamente e acariciando o topo da cabeça do gato. Ele miou preguiçosamente e a seguiu com o rabo erguido até a cozinha.

****

A rotina de Sara no escritório de advocacia era desgastante. Ela havia ascendido a chefe do setor de Tributário fazia menos de um mês, e isto já estava começando a cobrar seu preço. Fora aluna brilhante de uma faculdade pública de renome e, ao se formar, com honrarias, não foi difícil encontrar uma vaga ali. Ela sabia que entrar em um escritório gigante como aquele seria quase como vender a alma, mas pelo menos cobriria de longe suas despesas mensais. E àquela altura, recém-formada e cheia de sonhos, não havia do que reclamar.

Mas a vida de advogada não era fácil, com seus infindáveis prazos e responsabilidades, e se tivesse mais juízo nunca deveria ter aceitado aquela promoção. É claro que agora ela tinha uma sala só sua, ampla, arejada e afastada da bagunça que eram as baias dos estagiários e advogados júnior. Em contrapartida, os problemas pareceram se multiplicar por mil, dois mil, e se ela se descuidasse por um dia que fosse, as olheiras e a aparência abatida tomariam conta de seu rosto como ervas daninhas. E seu cabelo, então... decididamente não estava como antes.

Chegou no trabalho em cima da hora. Estava atrasada, na verdade, mas de um modo aceitável. Deu um bom dia rápido ao homem da portaria, pegou o elevador e mal abriu a pesada porta de vidro do escritório quando ouviu seu nome sendo cochichado pelas duas secretárias da recepção. Elas pareciam não tê-la visto entrando.

Diziam algo sobre a péssima aparência do seu cabelo durante a semana.

-É sério que já estão fofocando sobre mim antes mesmo do almoço? -ralhou ela, subitamente furiosa. A aparência é um nervo exposto em qualquer mulher.

-Não, doutora, o que é isso? -disse uma das secretárias, a morena, como que ofendida. Sara sempre a achara dissimulada e preferia conversar com a loira quando necessário.- Falávamos da outra Sara, a do RH. A senhora viu como está mal tratado o cabelo dela? Essa gente que não cuida do cabelo durante as férias na praia...

-Tá, tá -disse Sara, nada convencida, mas afastando o assunto inconveniente para o que de fato importava.- Agora me digam: o senhor Lavine já chegou?

- Já. Está esperando na sala de reuniões. Levei café para ele há uns cinco minutos.

-Sem mais fofocas, por favor! -finalizou Sara e disparou pelo corredor luxuoso até a porta de carvalho da sala de reuniões principal. Respirou profundamente, esticou um sorriso (esperava) atraente e entrou. Era hora de abocanhar mais um cliente. Hora de brilhar.

****

Sara não conseguiu tirar o comentário das secretárias da cabeça durante o dia todo. Ela tinha espelho, naturalmente, e sabia como o estresse estava afetando sua aparência geral -mas estava tão ruim assim para já ser assunto de fofoca? Durante o almoço permaneceu quieta, mexendo nos cabelos, percebendo como realmente estavam ralos. Pensou com horror que o marido já estava para chegar, e precisaria estar linda quando isso acontecesse.

Pegou o celular, decidida. Ligou para o salão.

Naquele dia, ela não faria o trivial.

Estava na hora de apelar para o bom e velho megahair.

****

Nem o trânsito pesado durante a saída do trabalho tirou o bom humor que Sara viera construindo naquela tarde. Cliente novo e reluzente para escritório, o marido prestes a voltar, o aplique que a aguardava no salão. Ela precisava admitir que apesar de desgastante, sua vida estava longe de ser ruim. Às vezes tinha que dar uma aparada nas arestas, comer uns chocolates a mais para se manter firme, lidar com a saudade de algumas pessoas. Mas a vida de quem não era dessa forma?

Chegou às 21:00 quase em ponto no salão. Márcia, sua cabeleireira e confidente, já a esperava, bebericando café enquanto assistia a novela das oito.

-Minha filha, que demora é essa!? -exclamou ela, tomando o último gole. Era um negra robusta, com um cabelo afro vasto e pintado de loiro. Seus modos eram enérgicos e teatrais (Sara achava “teatral” uma definição excelente para a amiga).

-Querida, o dia de uma advogada socialite é cheio, tá?

Elas riram e se abraçaram.

-Senta aí, Sassá. Quer dizer que hoje vai fazer megahair, huh. Estava na hora mesmo. Separei uns apliques divinos pra você: cabelo humano, da melhor qualidade. Importado.

Sara sempre achara estranha a idéia de ter cabelo que não fosse o seu próprio na cabeça. Mas era por uma boa causa.

-Muito me engano ou isso quer dizer que o maridão está voltando? -perguntou Márcia, com um sorrisinho no canto dos lábios.

-Acertou. Eu nem acredito. Quatro meses, Má, quatro... meses...

-Você deve estar subindo pelas paredes, menina. Se fosse eu, já tinha pulado a cerca!

-Márcia! -exclamou Sara, achando graça. A amiga já havia contado cada coisa que aprontara, que trair estava bem abaixo em sua lista de fatos chocantes.

-Acho bom começarmos logo. O meu ursão vai chegar meia-noite, faminto, e eu não preparei nada para ele, coitado. -E então pareceu se lembrar de algo:- Ah, Sassá, chegaram os produtos novos hoje! Dessa vez é tudo natural. Mudei de fornecedor porque você lembra como o antigo estava sempre atrasando. Vieram algumas amostras, separei duas para você, quer?

-Claro.

Sara pegou as amostras e colocou-as na bolsa. Sentou-se na cadeira giratória e bateu papo furado por duas horas, até que tudo tivesse terminado.

****

A casa estava fria e escura quando Sara chegou. Fazia uns 12 graus na cidade e não havia nenhuma estrela no céu naquela noite; ouvira no rádio no caminho de volta que seria uma madrugada gelada. Seu cabelo pinicava um pouco, e ela lembrou vagamente de prestar atenção em uma possível reação alérgica aos novos produtos da amiga.

Acendeu a luz da sala de estar, mas parou de repente à soleira da porta.

Foi quando uma sensação estranha se apossou de seu peito, como uma sombra repentina. Os pelos de sua nuca e braços se eriçaram. Sara não lembrava de ter sentido algo assim antes, e não gostava daquilo. Tinha certeza de que as revistas esotéricas que Márcia deixava para as clientes passarem o tempo no salão chamariam aquilo de mau agouro.

Olhou em volta, assustada, mas nada havia de errado com a sala. Cada móvel e objeto de decoração estava em seu devido lugar (até mesmo o par de sapatos que ela andara procurando e que agora avistava, solitário, debaixo da escada). Tudo estava do jeito que deveria estar, mas havia algo no ar que ela não conseguia captar. Sara costumava pensar que sua intuição era preguiçosa e displicente: poderia tê-la salvo em tantas ocasiões, como quando caiu em um buraco durante uma trilha na floresta, ou quando bateu o carro durante uma tempestade de neve, ou até mesmo quando deveria ter recusado o cargo de chefe do departamento de Tributário; mas fazia questão de vê-la quebrar a cara repetidas vezes. Naquele momento, no entanto, ela decidira acordar de seu longo sono e pulava inquieta na cabeça de Sara, querendo chamar sua atenção para algo que seus cinco sentidos não podiam detectar.

Tentou ser racional. Afinal, sua intuição além de lerda poderia ser mentirosa, porque não? "Vamos, garota, entre!", pensou. "É apenas a sua imaginação depois de um dia cansativo. A casa tem alarme, não tem bandido aí dentro. Apenas entre, tome um banho demorado de banheira e chame uma pizza vegetariana pelo telefone. O estresse está acabando com os seus miolos."

Trancou a porta e sentiu-se bem novamente. Quase riu aliviada. Pegou o controle do aquecedor central no console da lareira e regulou a temperatura ambiente para algo mais aconchegante. Apenas por precaução, claro, checou cômodo por cômodo antes de finalmente tirar a roupa e começar a preparar o banho. Não encontrou King em lugar nenhum. Deve ter escapulido para namorar no telhado, aquele bichano. Preocupar-se-ia com isso mais tarde.

Duas horas depois, limpa e alimentada, Sara deitou-se na espaçosa cama de casal. Durante o banho mandara uma mensagem de texto para o marido e agora esperava a resposta. A sensação negra que a assaltara há pouco havia acentuado a falta que sentia de seu ombro forte, protetor. Pensou entristecida em como certamente contaria rindo sobre o seu dia se ele estivesse ali, e como ficara com cara de boba olhando para a sala vazia com olhos arregalados. O marido a chamaria de Senhora Baiacu, os dois ririam até doer a barriga, rolariam na cama e transariam até não terem mais forças.

Não havia nada de novo na televisão. Filmes reciclados, talk shows mornos e documentários sobre a natureza. Não que Sara estivesse muito disposta a dar-lhes atenção de qualquer forma. Apenas não desmaiara de cansada ainda porque esperava o contato diário do marido, do outro lado do mundo. O cabelo continuava a pinicar, também, o que ajudava a espantar um pouco o sono.

Pouco tempo depois, Sara havia adormecido.

****

Despertou com um som melódico ao lado da cama. No primeiro momento, se assusta. O quarto estava escuro agora, banhado apenas pelo luar que penetrava entrecortado pela persiana. Esfregando os olhos, leva alguns segundos até se dar conta de que o celular tocava.

Com as mãos ainda frouxas, mas ligeiramente mais desperta, pega o aparelho. Era o número do marido.

-Querido? -diz, rouca mas aliviada.

Silêncio.

-Querido, você está aí? -perguntou, sentando-se na cama.

Um som de respiração.

-Querido, sei que está aí, o que está acontecendo? Por que demorou tanto?

Por um minuto que pareceu uma eternidade, Sara apenas ouviu aquela respiração suave, cadenciada, inquietante. Pensou irritada que o marido deveria estar pregando alguma peça nela, e faria questão de se mostrar ofendida por ele tê-la acordado de madrugada para isso. Aguardou pela risada que encerraria aquela palhaçada toda em silêncio.

-Seu cabelo... -disse ele, por fim. Era definitivamente a voz do marido, mas estava tão... desanimada... sem vida...

-Querido, você está bem? - Sara levantou depressa da cama, o coração aos saltos. - Onde você está? Aconteceu alguma coisa? Me diz, porra!

-Seu...cabelo... -repetiu ele, a voz arrastada e moribunda.

-O que tem meu cabelo? -gritou Sara, nervosa. -Você está bêbado?

Novamente, aquela respiração.

-Querido, se isso for uma brincadeira sua e dos seus amigos, eu juro que você vai dormir no sofá pelas próximas quatro décadas! Agora me diz...

Agora não havia mais nada.

Ele havia desligado.

Sara tentou retornar imediatamente a ligação, mas a chamada não completava. Teria tentado até o amanhecer caso não tivesse sentido primeiro um forte puxão no cabelo, e depois, a escuridão.

****

Era um lugar quente, aquele. Mais abafado do que qualquer outro em que Sara já tivesse estado. O que seria aquilo?

Um contêiner.

Um contêiner? É, parecia de fato um, grande o suficiente para caber um ônibus. E estava tão escuro, também. Mal conseguia divisar a mesinha com duas cadeiras que estava a um canto daquele compartimento, ao lado da... aquilo era uma porta?

Sim, era! Precisava passar por ela, sentia.

Abriu-a com rapidez mas logo se arrependeu.

Um sensação nauseabunda, porém familiar, veio de encontro a ela, acompanhada de um cheiro incrível de dejetos, de podridão. E aquela visão terrível! Não podia ser real.

Havia um corredor à sua frente, estreito, iluminado por uma fraca lâmpada halógena. Dos dois lados, celas de metal cinzentas se erguiam até o fim do contêiner, e dentro de cada uma, empilhadas umas sobre as outras como sacos de lixo, mulheres nuas, todas orientais e de todas as idades, suadas, sujas de vômito, urina e fezes. Cada uma com o cabelo mais comprido do que a outra, empapados de tanta sujeira.

Sara avançou pelo corredor, em pânico. O cheiro era insuportável, e a cena, de filme de terror. Notou que as mulheres não haviam percebido sua entrada (lembrou-se das secretárias no escritório, da morena, aquela imunda!), ou talvez apenas a ignorassem. Como fantasmas. De qualquer forma, sentiu-se agradecida por isso: não suportaria ter de encará-las, elas ali, expostas daquele jeito, degradadas, malcheirosas, e ela ali, livre, limpa, íntegra. Era tão injusto. Precisava tirá-las dali.

Ninguém parecia dar-lhe bola (miravam o infinito com olhos bovinos, à espera do abate) exceto uma garota, na verdade. Estava em uma das celas ao fundo e aparentava ter não mais do que quinze anos. Seus olhos negros a fixavam com curiosidade apática. Cabelos longuíssimos da mesma cor dos de Sara caiam por seus ombros, mas era notável as falhas em seu couro cabeludo, como se estivessem sendo arrancados aos poucos.

-Querida, o que é isso? Por que vocês estão aqui? -perguntou, dando um passo adiante.

Sentiu-se idiota. Claro que a garota não conseguiria entendê-la.

Deu mais um passo à frente.

Então vozes irromperam do lado fora. Vozes masculinas, em outro idioma, sabia ela, mas conseguia entendê-las. Riam de uma piada.

Como em resposta a elas, a menina puxou, com um movimento rápido e preciso, um longo tufo de cabelo e colocou-o na boca, o olhar vago ainda fixo em Sara. Mastigou com vontade, começando pela raiz. E depois repetiu o processo, e repetiu. Espantosamente, havia certa beleza no ato, um propósito. Era um protesto, uma vingança, ou as duas coisas. A garota não se importava com o que pensassem sobre isso, afinal. O cabelo era dela, de mais ninguém, e não enfeitaria a cabeça de nenhuma outra pessoa que não fosse a dela.

A porta foi aberta com um baque metálico.

Um homem oriental de meia-idade irrompeu no recinto ainda rindo da piada que ouvira, alheio à desgraça que se contorcia à sua volta. Não notou Sara. Sacou uma chave do bolso da calça, abriu uma das celas e agarrou uma mulher muito magra e de seios firmes e pequenos pelos cabelos. Arrastou-a até a saída sem cuidado, fazendo-a deslizar pelo chão de metal, incapaz de reagir.

-Rápido, caralho! -bradou outra voz masculina do lado de fora, esta autoritária.- Ainda temos que procurar a fugitiva! Ela não pode ter ido muito longe!

"É o Juiz?", pensou Sara, confusa. Parecia sim com a voz do Juiz, aquele desalmado que fora o tormento do seu primeiro caso importante no escritório, e em mais três depois. Que homem desprezível! Era a personificação do mal.

-Parece que a localizaram, vamos! Mata logo essa vadia, depois cuidamos do cabelo.

A porta tornou a ser fechada.

****

Sara abriu os olhos, sentindo as lágrimas escorrerem quentes por seu rosto.

Com um misto de alívio e confusão, percebeu que estava deitada no tapete ao lado da cama, os braços e pernas dispostos em ângulos estranhos como se ela fosse uma boneca articulada. Lembrou-se nitidamente do sonho que acabara de ter. Ou melhor, um pesadelo. Isso! Apenas um pesadelo, daqueles bem vívidos, dos quais queremos apenas esquecer quando acordamos.

Piscou. Piscou novamente. E notou duas coisas. A primeira era que, pela claridade que entrava no quarto, já devia ser de tarde. (Meu Deus, dormira por quanto tempo?). A segunda, que a cabeça agora coçava feito louco. Ah, como coçava. Sentia-se suja, imunda, como aquelas mulheres. Precisava de um banho.

Com um esforço que lhe pareceu sobre-humano, ergueu-se apoiada na cama. Era como se cada articulação houvesse enferrujado durante o sono. Pegou o celular e olhou a hora, 15:33. Não haviam mensagens ou ligações não atendidas. No fundo da mente, lembrou-se de que precisava achar King e colocar whiskas para ele; talvez checar se a caixa de areia estava ok...

Os olhos da garota.

Lembrou-se daqueles olhos negros com um arrepio na espinha, não aterrorizados, tampouco impassíveis: apenas resignados. Uma resignação fria, que certamente tomara o lugar do medo e do ódio cortante. Era o horror quando não podia mais ser expresso em forma de gritos, socos ou chutes, porque não havia ninguém para ouvir. Apenas a Morte.

Uma lembrança.

De repente, Sara se recordava do que lhe parecera tão familiar no pesadelo. As mulheres em celas, nuas, os cabelos, o calor. O homem oriental que pescara a moça de seios pequenos da gaiola como uma lagosta no aquário de um restaurante chique. Era óbvio. Latente. Que nojo! Já ouvira falar daquilo antes em uma matéria obscura na internet. O título era algo como "Mulheres escalpeladas e assassinadas em país do leste asiático". Haviam imagens fortes no corpo da matéria, não conseguira ver todas porque seu estômago embrulhara. Passou aquele dia chocada e entristecida, perguntando-se porque os seres humanos eram capazes de tamanha crueldade.

A sensação de mau presságio se apossou dela novamente, e ela quase envergou para frente. Um aperto na alma, um negrume.

Seu lado racional e prático (jurídico), resolveu interceder como antes. "Menina, você não está bem", ele disse. "Vá tomar um banho pra tirar essa imundície do corpo e depois procure um pronto-socorro. Deve estar com a pressão baixíssima! Ou é o estresse mesmo...Peça férias na segunda."

Parecia um plano. Banho e hospital. Talvez o cabelo ralo tivesse sido um aviso do próprio corpo de que ela precisava dar uma freada na rotina e cuidar mais da saúde. Shakes naturais de nada adiantavam quando o estresse do dia a dia a estava matando silenciosamente.

Cambaleando, dirigiu-se ao banheiro. A cabeça coçava de forma enlouquecedora agora.

Notou com um sobressalto que seus shampoos e sabonetes não estavam mais no lugar de sempre, ao lado da banheira, em uma prateleira ampla e cheia de portinholas. Não havia nenhum, mesmo. Todos haviam desaparecido.

"Mas que mer..."

Ah! As amostras da Márcia, claro, elas ainda estavam na bolsa. Beijaria os pés da amiga quando a encontrasse, na próxima sexta. Coxeou de volta até o criado-mudo e vasculhou a bolsa Prada até achar os dois frascos pequenos. Um era shampoo natural para cabelos quebradiços, o outro, um condicionador revitalizante, também natural. Grande coisa. Mesmo se fosse o shampoo de dar banho no gato ela usaria.

Coça, coça.

Foi apenas quando ligou o chuveiro e começou a espalhar o produto pela cabelo (a coceira cessou quase imediatamente), que percebeu como ele estava enorme. Não apenas mais volumoso devido aos apliques, mas longo mesmo, chegava quase na altura das panturrilhas. Longo como o das moças enclausuradas naquele país esquecido. E ela quase podia senti-lo crescendo...

Enquanto a água caía por sobre seu corpo, a solidão a engolfou fria e poderosa como uma corrente marítima. Era assim que aquela garota de olhos negros se sentia naquele lugar, e era assim que Sara se sentia sem o marido, sem sua metade. Segunda feira parecia estar a anos luz de distância. Uma vida. Precisava implorar para o marido voltar antes, agora mesmo, ela não estava bem, precisava de um abraço, de companhia, precisava esquecer o quanto o mundo podia ser hediondo e vazio.

Saiu desesperada do banheiro, nua e molhada, os cabelos agora se arrastavam pelo chão atrás de si, deixando um rastro molhado pelo piso. Fingiu não notar, para preservar o que restava de sanidade. Precisava apenas falar com o marido.

Tentou uma vez, nada. Novamente. De novo. Ocupado, ocupado, ocupado. Mas onde é que ele estava quando ela mais necessitava? Jogou para longe o aparelho e ele se espatifou na parede. A bateria voou para algum lugar embaixo da esteira ergométrica, mas Sara não prestou atenção.

Porque ouvira alguma coisa.

Uma voz.

No andar de baixo.

Será que suas preces haviam sido atendidas e o marido de fato retornara mais cedo?

Corria em direção à porta trancada do quarto quando notou que a voz não vinha de dentro da casa, mas do jardim que a circundava. E não falava em português. Falava exatamente como a do homem do seu pesadelo.

-Cerquem a casa e peguem aquela vadia! -dizia, furiosa. -Quero arrancar os cabelos dela com as minhas próprias mãos!

Na reação mais adversa que Sara poderia ter, uma calma profunda preencheu seu coração. Ela parou onde estava e riu. Riu com vontade, como quando o marido fazia cócegas nela depois de uma transa. Pois estava claro como o dia: ela ainda estava presa naquele maldito pesadelo. Em uma realidade distorcida que se dissiparia assim que acordasse e não seria mais do que uma vaga lembrança antes mesmo de terminar o café da manhã.

E o sonho era seu, não era? Claro que era. Estava tudo acontecendo dentro da sua cabeça. Pensando desta forma, agora, ela até podia adivinhar o que viria a seguir.

Sorriu. Olhou para o telefone. Ele tocou.

-Oi, querido, como você está? -disse Sara.

-Oi – disse o marido, com a mesma voz morta de quem narra bula de remédio.- Escute, é importante: você trancou as portas e as janelas?

-Claro. Estou bem segura aqui dentro, te esperando. Tudo trancado, grades por todo canto, lembra? Não se preocupe.

-Ele vai te pegar. -Uma pausa. Aquela respiração novamente.

-Quem vai me pegar?

-O Juiz.

-Entendo -disse Sara. Não havia mais medo ou sensação de angústia. A sombra negra passara, para sempre. Havia resignação.- Que ele venha.

-Querida, preste atenção, você precisa comer. Comer tudo. Você pode fazer isto por você, por nós? Ele não pode vencer. Eu sei que você consegue.

- Eu vou fazer, fique tranquilo. Preciso ir. Nos falamos quando eu acordar, ou nos vemos na segunda. Te amo.

Haviam mais vozes agora, e pareciam de alguma forma ter encontrado um caminho para dentro da casa.

Mas ela sabia o que fazer.

Sentou-se de perna cruzada no tapete ao lado da cama, arrancou um tufo de cabelo bem grande, mastigou e engoliu. Não houve dor e não tinha gosto ruim. Sentiu prazer. Sara compreendeu que aquilo era a salvação para ela da mesma forma que era para a garota dos olhos negros -a panacéia. Repetiria até que não houvesse mais nada.

Lutar. Não se entregar diante da força opressora. O lado negro do ser humano não iria vencer desta vez.

Não se dependesse de Sara.

****

O marido chegou pela manhã no domingo.

Estava cansado por causa do jet lag, mas feliz. Trazia consigo um buquê de rosas brancas que comprara perto do aeroporto, e muitos presentes na bagagem para os amigos e familiares. E para a amada.

Ah, ela teria uma grande surpresa, como teria. Não conseguia parar de imaginar sua reação quando o visse chegando com tanta antecedência. Sequer lembraria do fato de ele não ter ligado no dia anterior.

Entrou na ponta dos pés em casa, colocou as malas perto da lareira e subiu as escadas com as flores. Estava tudo tão calmo. Ela devia estar dormindo. Abriu um sorriso e irrompeu pela porta do quarto:

-Surpresa!

A polícia chegou meia hora depois, seguida pelos bombeiros.

A cena era desoladora. O marido inconsolável ao lado do corpo da esposa morta; o gato da família se aninhando perto da mão gelada da dona.

Mas esta não parecia triste: pelo contrário, sorria. Que sorte. Morrera feliz, ao menos.

-Chefe, olha o que eu encontrei -disse um dos peritos, saindo do banheiro. Segurava dois frascos vazios.

-Ah, não. Cacete, de novo?

-Pois é, chefe. E estes aqui parecem ser do lote antigo. Alucinógeno pesado. Faz elefante achar que dança tango.

O oficial suspira.

-Bom, recolhe tudo. Vamos anexar ao processo contra aquela maldita empresa. Mas anda logo porque está quase na hora do meu almoço.

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Tema: Fantasma.

Nota do autor: Olá, amigos. Estou muito feliz de poder dividir, pela primeira vez, um conto com vocês. Primeiramente, peço desculpas pelo texto longo. Quando tive a idéia, sabia que ela precisaria de um pouco mais de espaço para florescer. Mas trabalhei o texto de forma a condensá-lo o máximo possível, e mesmo assim cortei tanta coisa que daria para escrever pelo menos mais dois contos neste mesmo "universo". (Tive uma idéia intrigante sobre a tal empresa de produtos de beleza.) Portanto, peço perdão se detalhes ficaram faltando ou a história ficou um tanto quanto confusa. Tratei do tema "fantasma" de forma indireta, porque acho que ficou claro que foi tudo alucinação de Sara -ou não? Fiz o que pude, e quero dar uma retrabalhada no conto depois do concurso porque amei escrevê-lo. E espero que o recebam com tanto carinho quanto o fiz.

Felipe.

Ps1: me avisem por gentileza sobre erros grotescos de gramática, revisei mas sempre passam alguns.

Ps2: apesar de amar este site e ler muito por aqui, eu não posto com frequência. Por isso não sei como classificar o conteúdo de um texto. Acho que não teve nada de mais na história, por isso marquei como "seguro". Fiz mal?

Felipe Lundgreen
Enviado por Felipe Lundgreen em 19/05/2015
Reeditado em 15/08/2015
Código do texto: T5246807
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