O quarto 406 - DTRL22

Aconteceu à época de minha residência médica no Hospital Memorial C..., em Campinas. Aqueles foram bons tempos, nos quais alcancei muitas conquistas. A medicina proporcionou-me, como era esperado, satisfação plena de meus anseios profissionais. No entanto, grata foi a minha surpresa, ao perceber o quanto eu havia crescido também como pessoa, durante o aprendizado daquela bela profissão. É verdade que algumas lembranças estranhas, herança daqueles dias, continuam vivamente impressas em minha memória, e pensamentos obscuros ainda me atormentam quando tais recordações vêm à tona.

O Memorial C... era uma construção imponente, a entrada principal ficava recuada em relação à rua, cerca de quinze metros, ao longo de toda a sua fachada cinzenta. Toda essa lacuna, exceto a passagem central que conduzia à entrada e era ladeada por grades, era tomada por um jardim. Não muito alto, era composto por seis pavimentos, um dos quais era o térreo, contudo assentava-se sobre todo um quarteirão e sua planta, simples e quadrangular, aproveitava todos os espaços, sendo assim formidável a sua capacidade.

Eu já havia estagiado por muitas das especialidades que o Memorial atendia, e agora me deleitava em uma que já ocupava lugar de honra entre as minhas preferidas: A cirurgia. Assombrava-me a perícia que os médicos-cirurgiões demonstravam durante as operações, a precisão no corte, a incisão perfeita, os instrumentos afiadíssimos, a irrigação sanguínea do local afetado, e principalmente, o momento em que o paciente recobrava a consciência. É fato, logicamente, que nem todas terminavam de forma feliz, aliás, algumas já estavam fadadas ao fracasso desde o seu princípio.

Ainda me recordo de uma delas que me impressionou profundamente. Era um caso de aborto, porém como o estágio da gravidez já era avançado e o feto, após sua morte, não fora eliminado espontaneamente, deveria ser retirado. Os instrumentos usados na ocasião pareceram-me brutos demais, eram enormes, as tesouras, as pinças. Os médicos retiravam os restos da criança aos pedaços, não saíra inteiro, era uma cena dantesca. Pensei em mim no lugar daquela mulher, não pude suportar e saí da sala. Durante vários dias permaneci angustiada, não imaginava que o milagre da vida poderia ser tornar algo tão pavoroso. Aquilo me abalou por muito tempo.

O quarto 406 era uma das salas onde os pacientes eram acomodados antes de irem para o centro cirúrgico e depois de voltarem dele. Ali o paciente se restabelecia durante o pós-operatório. Eu me familiarizara com aquela sala e sempre que estava vazia aproveitava para fazer minhas anotações ali. Muitas vezes depois de uma das “sessões”, como eu costumava chamar os trabalhos cirúrgicos, eu subia até o quarto para registrar detalhes específicos que houvessem ocorrido, pois algumas cirurgias eram muito peculiares e complexas, principalmente as relacionadas aos nervos.

Depois de um tempo a frequentar aquele quarto, algo começou a me incomodar. Era comum, quando eu estava ali sentada, sozinha, sentir um corrente de ar, como se fosse um vento frio a circular pelo ambiente, quase imperceptível. Essa situação, dada a frequência em que ocorria, desagradava-me bastante, de maneira que todas as vezes que ia usar a sala, antes fechava todas as janelas. O que parecia de nada adiantar.

Certa tarde um dos funcionários da manutenção veio ao quarto, estando eu presente, era um senhor, magríssimo, já avançado na idade, ao perceber-me disse:

- Desculpe doutora, não sabia que o quarto estava em uso...

- Não se preocupe, já estou de saída.

- Vim ver o que acontece com o ar-condicionado, disseram que não está funcionando...

- Não costumo usá-lo, nem sabia que estava defeituoso. Aliás, nesta sala parece haver sempre um corrente de ar, sabe se existe alguma outra abertura que não seja as das janelas, senhor?

- Nunca ouvi falar, os quartos dessa ala são os mais bem vedados do hospital, também nunca senti vento nenhum aqui, doutora.

- Estranho, respondi, tenho certeza de que se dessem uma olhada melhor achariam alguma abertura escondida por onde o ar se infiltra.

- Pode deixar doutora, vou aproveitar e verificar todas as janelas.

- Obrigado e bom trabalho então!

- Até mais ver, doutora.

Algum tempo depois comentei sobre o quarto 406 com uma das enfermeiras mais velhas do hospital. Chamava-se Magda, era alta e corpulenta, e tinha o cabelo preto cortado bem curto. Seu rosto era redondo, macilento e dotado de um olhar perverso, muitas vezes observei que maltratava os pacientes idosos, movimentando-os bruscamente e também durante a medicação, principalmente nas aplicações intravenosas. Admirava-me que a administração do hospital ainda não a houvesse despedido, pois eram constantes as reclamações a seu respeito. Ao ouvir minhas impressões sobre o quarto 406 primeiro soltou um risinho misterioso, depois se aproximou de tal forma que senti seu hálito quente bafejar em meu rosto (era um cheiro horrível) e disse: “Vou lhe contar uma história, Laura, que ouvi a respeito daquele quarto, da qual tomei conhecimento através de uma das enfermeiras que presenciou o episódio ”. Fomos tomar um café e foi então que me contou o seguinte:

Há cerca de quatro anos atrás, trabalhava aqui conosco um médico, chamava-se Dr. Carlos e era um cirurgião geral ainda sem muita experiência. Muito orgulhoso de si mesmo, achava-se um profundo conhecedor dos mistérios da medicina, como é comportamento costumeiro dessa classe de açougueiros que ultimamente jorram em nosso país aos borbotões (assim dizendo encarou-me com um olhar severo, a megera). Dificilmente discutia sobre seus pacientes com os companheiros de trabalho e distribuía diagnósticos aos quatro ventos, muitos dos quais, se considerados por algum profissional de gabarito, sem dúvida seriam contestados.

Naquele tempo, em uma noite chuvosa, na qual o doutor Carlos estava de plantão, deu entrada no hospital uma paciente, que se encontrava em estado lastimável. Era uma moça nova, portadora de uma fratura exposta localizada na perna direita, das grandes. Duas enfermeiras entraram no quarto 406 empurrando a maca, a mulher urrava de dor, a coisa estava feia para ela. Carlos, após um exame rápido, dado o estrago na perna da mulher, concluiu que a paciente deveria ser preparada para a cirurgia imediatamente. As enfermeiras então imobilizaram o membro fraturado e, deixando a paciente aos seus cuidados, saíram da sala. O Doutor preparou uma seringa com uma dose de T..., um poderoso analgésico, que por vezes chegava a causar inconsciência. Aproximou-se da mulher com o medicamento em mãos ao que ela, gemendo de dor, disse:

- O que vai injetar em mim Doutor?

- Trata-se de um medicamento para aliviar sua dor, não se preocupe.

- Tudo bem doutor, mas o que é? Gostaria de saber...

- Fique calma, confie em mim, logo vai se sentir melhor.

E assim dizendo aplicou a medicação no braço da paciente, que estava imobilizada, imediatamente ela pareceu adormecer. O doutor, então, dirigiu-se ao centro cirúrgico para reservar uma das salas e dar início aos procedimentos pré-operatórios.

Ao voltar ao quarto, pouco depois, estranhou que a paciente ainda estivesse inconsciente e aproximou-se dela. Seu rosto estava muito pálido e as pupilas dilatadas, percebeu que algo ali estava errado. Tentou captar a respiração através de um espelho aplicado à boca, nada! Constatou também que não havia pulso. Um pensamento o fez estremecer. Agarrou o prontuário que estava preso à maca e leu as poucas linhas que este continha. Inútil dizer mais, ali estavam listados três medicamentos aos quais a paciente relatara já haver sofrido reações adversas em outras ocasiões. Todos os três tinham como componente base o mesmo do medicamento T... que o doutor lhe aplicara, a única diferença era que em T... sua proporção era muito maior. Imediatamente lançou mão do telefone e alertou às enfermeiras de que tinham um quadro de parada cardiorrespiratória.

Em instantes o quarto estava povoado de jalecos brancos movimentando-se em profusão em torno da maca. Tentaram reanimá-la de todas as formas, ligaram-na a um sistema de respiração artificial e passaram a aplicar-lhe massagem cardíaca por alguns minutos, até perceberem que, não obtendo resposta, o entorno de seus olhos já começava a se arroxear. O doutor então mandou que preparassem o desfibrilador. Pediu espaço. Aplicou a primeira descarga. Nada. Aguardou a tensão estabilizar-se. Separou bem as placas. Nova descarga, sem resposta. O monitor cardíaco há muito era apenas uma linha contínua, durante as duas descargas ondulou em um espectro sem padrão ou frequência, para, em seguida, voltar a emitir o seu bip imperturbável, constante, agourento. Uma terceira descarga, nenhuma chance, desligaram todos os equipamentos, exceto o monitor, os ruídos cessaram, o grupo se desfez, todos saíram, permaneceram apenas três naquela lúgubre sala, o doutor, a paciente e a morte.

- E então? Perguntei eu, ao perceber que Magda parecia ter encerrado sua narrativa.

- Acabou. Respondeu gravemente.

- E o doutor Carlos ficou impune? Não descobriram o que aconteceu? Ajuntei indignada.

- Na verdade, Laura, de certa forma, ele foi sim punido, mas de uma maneira que foge ao convencional. Na época, nenhuma pena lhe foi imputada, afirmaram que a parada cardiorrespiratória foi causada pela perda de sangue em excesso, e o falecimento fora inevitável. Assim, o diagnóstico oficial favoreceu o doutor, que escapou ileso, ou quase, por assim dizer, pois pouco tempo depois foi internado em um manicômio, onde permanece até hoje, e de onde acredito, nunca mais sairá.

- Por que diz isso? O que aconteceu? Perguntei.

- Porque, minha cara, a história tem um adendo sinistro, o qual o próprio doutor deixou escapar pouco tempo antes de enlouquecer, ele certamente já não deveria estar em seu perfeito juízo quando contou isso, mas ouça e julgue por si mesma:

Quando todos saíram do quarto 406, o doutor sentou-se numa das cadeiras e permaneceu absorto em seus pensamentos. Talvez estivesse a considerar o peso do fardo que seu erro jogara-lhe aos ombros, ou talvez, cego de espírito pela sua soberba, não considerasse, quem sabe? Fato é que estando desta forma, um ruído chamou sua atenção. Olhou para a maca e viu que um dos braços da paciente havia resvalado e pendia suspenso ao lado do corpo. Inconscientemente se levantou para arrumar o cadáver. Quando estava prestes a tocar o braço da morta, esta foi mais rápida e o agarrou com força assustadora e ergueu lentamente o quadril, encarando o doutor. Seu rosto, dissera ele, era o próprio retrato da morte, em lugar dos olhos orbitavam dois espaços negros. Da sua boca saíram estas palavras:

- Vai pagar pelo que me fez, maldito! Cedo ou tarde! Assim jura minha alma!

E então soltou o doutor, que tombou para trás, e caiu inconsciente. Foi despertado horas depois, quando chegaram os funcionários responsáveis pela remoção da falecida. Um fato curioso, embora absurdo, em minha opinião, e que é conhecido apenas de amigos íntimos do doutor (amigos estes que, na minha opinião, além de íntimos, possuíam a imaginação deveras fértil), diz respeito a uma marca que ele portava. Em seu braço esquerdo, dizem, como se tivesse sido gravada a fogo, viam-se cinco dedos longos e finos em forma de uma mão. Eu, embora seja contemporânea dele, nunca vi esse marca e, obviamente, não creio que ele realmente a tenha. E agora, querida, você tem a história completa. E virou-me as costas, deixando-me com mil perguntas a fazer.

Confesso que não sou supersticiosa, nem tampouco me quedo a crer nesta visão convencional a respeito dos fantasmas, a qual sugere que essas criaturas possam vagar sobre a terra, impulsionadas por quaisquer que sejam seus insólitos propósitos. No entanto, esse meu sentimento não impediu que crescesse cada vez mais em mim uma aversão ao quarto 406, passei a usá-lo com menos frequência e, preferencialmente, enquanto a luz do dia ainda se filtrava pelas suas janelas. É que a noite já não me permitia um estado de concentração favorável para minhas anotações, sempre que ali permanecia após o crepúsculo, minha caligrafia tornava-se deplorável. Adquiri também um costume, provavelmente influenciada pelo que soube aconteceu naquela sala, de, após apagar a luz, antes de sair, virar-me e contemplar o seu interior. Estranhamente, a escuridão nunca era completa, parecia que habitava ali uma penumbra constante, uma aura sinistra. Com o tempo, percebi que este não era um hábito saudável e o abandonei.

Certo dia, estava eu a usar a sala e, compenetrada em meus afazeres, quando dei por mim, percebi que já anoitecera. A temperatura caíra bruscamente e eu não trazia blusa comigo, censurei-me por isso. Guardei meu caderno, livros e demais pertences e estava prestes a levantar, quando ouvi barulho de algo caindo no banheiro do quarto. Levantei e para lá me dirigi, ao abrir a porta uma lufada de ar frio atravessou-me os ossos em cheio, estremeci. Alguns itens higiênicos que estavam sobre a pia haviam caído e isso causara o barulho. Abaixe-me e passei a recolhê-los. Foi quando senti um sopro leve e gelado em minha nuca, todos os meus pequeninos pelos ali se eriçaram e o banheiro pareceu transformar-se, subitamente, num frigorífico.

Eu podia observar as baforadas de minha respiração suspensas no ar diante de mim. Virei-me. Deus! Não deveria tê-lo feito! Antes tivesse perdido o dom da visão! A aparição diante mim era espectral! O esboço de uma estrutura humana feminina, completamente translúcida! Era magríssima e em toda a sua extensão corria uma espécie de emaranhado de veias e artérias azuladas. Minha visão então repousou sobre o seu braço direito, o qual ela estendia em minha direção a ponto de quase me tocar. Ali aquela profusão de vasos sanguíneos era ainda mais intensa, centenas deles, se possível fosse contá-los. Foi então que vi algo que fez minha respiração estancar. Ali em seu braço, pendurada, balançando, suspensa apenas pela agulha, a horrenda forma de uma seringa ainda úmida de sangue! Com um grito abandonei aquele quarto e corri como nunca pelos corredores daquele maldito hospital, parando apenas quando me vi, já na rua, sem fôlego.

Durante todo o restante de minha residência, que felizmente já se aproximava do fim, não mais entrei naquele quarto. Passado o terror do acontecido, ficou em mim um sentimento profundo de tristeza e amargor. Por vezes a melancolia tomava conta dos meus pensamentos e eu ficava, prostrada, a imaginar o martírio daquelas almas para além da morte, que prosseguiam acorrentadas a este mundo, sem descanso, atormentadas por não aceitarem o cruel e imerecido destino que tiveram em vida. Por fim, meus dias no Memorial C... findaram, e parti finalmente, pronta para exercer meu ofício.

***

Alguns anos depois, eu já clinicava em meu consultório particular, quando uma amiga minha de Campinas, a visitar-me, trouxe-me uma triste notícia. O Hospital memorial C... fora desativado, o lugar agora tornara-se um prédio de escritórios. Não mudara muito externamente, segundo me disse, mas por dentro as salas foram completamente destruídas para dar lugar àquele conhecido inferno de baias e divisórias que delimitam áreas minúsculas, onde imperam uma mesa e um computador. Um sentimento de nostalgia depositou-se sobre mim, pois aquele fora, sem sombra de dúvidas, um excelente hospital.

Curiosamente, àquela mesma época, tive notícias do falecimento do doutor Carlos, em sua cela, no mesmo hospital psiquiátrico de outrora, onde continuava internado. Uns disseram que morrera asfixiado, outros que fora vítima de uma parada cardíaca. Eu de minha parte, prefiro não especular qual tenha sido a causa da sua morte. Quando o encontraram, da sua boca escorria um filete de sangue que encharcava a camisa de força, e alguns de seus dentes, talvez devido à medicação que tomava, ou por tê-los submetido a algum esforço excessivo, estavam amolecidos. Dadas às circunstâncias do óbito, a perícia foi ao local, investigar, nada encontraram de notável, exceto uma seringa vazia, encontrada sob o cadáver do malfadado doutor.

Tema: Fantasmas