A Casa Okabe - DTRL 22

Ouviu o som estrondoso do rufar dos tambores de guerra. Era seu coração anunciando o fim, as mãos escorregaram por sobre a pele macia de sua garganta. O metal era liso e frio, envolveu seu pescoço com a leveza de uma carícia, e lhe apertou a garganta com a força de um impacto. Chuva de sangue morno com sabor de ferro... Na sala, festejavam a vitória, todas as estátuas de olhos abertos.

Fim...

Deitado na grama ressecada fitava o céu azul, estava azul demais, nenhuma nuvem, nenhum sopro de brisa, nenhum sinal de vida, era muito estranho. Ele vinha observando todos os movimentos na casa nos últimos meses, só que não havia movimento algum, estava abandonada há muito tempo. As grades comidas de ferrugem, as correspondências acumuladas na caixa de correio e o jardim coberto de ervas daninhas. Abandonada, mas não vazia... Uma fresta aberta na cortina escura permitia que ele visse uma estátua dourada... Reluzente... E o homem farejou ouro.

Casa grande, vitrais nas janelas e torres altas, lembrava uma igreja velha.

E era bem grande mesmo, dessas de rico, pensou ele, esperou ali deitado até anoitecer, não queria ser pego pela polícia mais uma vez, sempre foi muito bom em roubo a casas vazias, mas nos últimos, tinha errado o cálculo.

Com a noite não vieram insetos como grilos e mosquitos, só um silêncio absoluto se deitando sobre si. Munido de lanterna e um pé de cabra seguiu rumo à porta de trás da casa. Estranho – não havia porta de trás. Embora fosse realmente uma mansão, as janelas arredondadas não podiam ser abertas, e só a porta da frente dava acesso aos aposentos. E estava aberta... Apenas um giro no trinco, um estalo e a peça de madeira maciça esculpida, que guardava a entrada da casa se abriu em um longo rangido que rompeu o silêncio soturno daquela noite.

Sentiu um arrepio gelado percorrer seu corpo, sua mente. No fundo de sua alma sentia que algo estava errado, mesmo assim, por uma força desconhecida ele continuou, não devia estar tão longe da estátua.

O escuro era total. Ligou a pequena lanterna à pilha e deu início a exploração do local. Por dentro, o abandono era quase imperceptível, tudo que ele viu do lado de fora não refletia na limpeza e organização encontrada nos aposentos. Era uma sala grande, as paredes adornadas com quadros religiosos, portas e janelas esculpidas com motivos góticos, móveis muito antigos, escuro, soturno, grandes candelabros sustentados por correntes. Todas as velas apagadas. Caminhou por um extenso corredor cercado por portas fechadas, até outra sala impecavelmente arrumada.

O homem não podia entender, nunca viu um movimento naquele lugar, não havia água encanada, energia elétrica, nem um tipo de correspondência entrava ou saia do local, era impossível... A não ser... Que alguém tivesse chegado antes dele. Um ruído quebrou sua linha de raciocínio.

Clic...

A lanterna se apagou e a escuridão retornou por completo.

Toc... toc... toc... toc...

Um som seco, contínuo, como madeira se chocando contra o piso aproximava-se.

Rec... rec... rec... rec...

Algo estava sendo arrastado.

O coração do homem acelerou, suas mãos suavam. E lhe custava prender a respiração ofegante. O ruído era cada vez mais próximo, mais alto, mais nítido e seu coração cada vez mais acelerado. Recostou-se na parede, mesmo assim, estava tão próximo de seu medo que sentiu o sopro do vento em sua face. O ruído cessou.

Por alguns segundos o homem permaneceu imóvel. Aguardando. Esperando por uma luz acender, por um toque, por uma condenação. Apertou a lanterna com as duas mãos, e se preparou para a guerra. Mas nada veio... Nada o atingiu.

Os segundos se tornaram horas, pensou em correr, pensou em perguntar, mas, apenas acendeu a lanterna. Uma pequena estátua esculpida em madeira jazia no centro da sala, há apenas um metro dele. Era uma imagem sacra, uma santa que o observava com seus olhos de madeira morta, imóvel... Ele não sabia que santa era, a imagem de menos de meio metro feita toda de madeira, mãos postas em oração e um véu cobrindo a cabeça. Nunca fora religioso e não soube explicar o acontecido, apenas decidiu voltar, mirou a luz fraca para o longo corredor e seguiu.

À medida que o feixe de luz alcançava o extenso caminho, percebeu algo... Uma das portas estava entreaberta, e pela fenda uma claridade tremeluzia dentro do quarto. Com a adrenalina vazando por seu corpo trêmulo, desligou a lanterna e...

Quando ele fixou os olhos na majestosa estátua de ouro, esqueceu o rumo que havia escolhido, sobre o altar bem adornado com centenas de pequenas imagens de madeira, a estátua parecia ter ainda mais valor. Era cristo. Rosto bem característico, olhar terno e as mãos estendidas ao céu, atrás uma grande cruz de madeira e ao lado um jarro com água e duas velas acesas. Sim, velas acesas. Porém o homem hipnotizado pelo brilho do ouro, que refletia em seus olhos, não deu importância ao fato. Aproximou-se devagar, a subida era feita em dezenas degraus minúsculos e a tocou... Tocou a imagem, fria, inerte.

Uma brisa gelada o atingiu, vinda do desconhecido, e as velas se apagaram. O escuro só não era total, pois o sol da manhã já alcançava os vitrais da janela, formando sombras coloridas nas paredes. Ouviu ruídos que se aproximavam quebrando o transe causado pelo brilho do ouro. Escondeu-se atrás das cortinas que cobriam as paredes do altar e esperou pelo flagrante. O mesmo som que o assombrou anteriormente. Como passos... Lentas e nítidas batidas de algo sólido contra o piso bruto.

Pela fresta da cortina contemplou a cena mais grotesca que poderia imaginar, e o paralisou da cabeça aos pés... A imagem da santa de madeira caminhava em direção ao altar. Movia-se como em um sonho, como uma boneca viva, mexia as pernas e os braços e piscava os olhos secos, sem vida.

A estátua carregava, em suas pequenas mãos, uma caixa de fósforos, aproximou-se do altar, subiu os degraus até as velas e acendeu. A luz tênue e oscilante o revelou os segredos da casa abandonada.

Todas as estátuas de santos dispostas em seus pequenos altares estavam viradas em sua direção, como uma acusação... A sentença final. O homem sentiu seu corpo congelar até os ossos, com a mente conturbada ainda tentou puxar uma oração para Deus que acode os céticos nos momentos difíceis, porém não precisava clamar por Jesus. Ele já estava a caminho.

E uma pequena mão dourada puxou uma das bordas da cortina... Revelando o rosto estático de Cristo, numa expressão que o homem não soube definir, mas não era de um redentor.

Tema: Fantasma

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 29/05/2015
Reeditado em 02/06/2015
Código do texto: T5259700
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