Reversus est de Abysso

NOTA DA AUTORA: o texto não tem pretensões. Poderia ser incluso em outras categorias de conto, como insólitos ou fantásticos, mas como assim não o considero por motivos pessoais, postei nesta categoria, ainda que destoe do que por ela é comum passar.

______________________________________________________Femina

Não teme a morte quem conhece a escuridão.

Augusto Branco

Retesava-me a musculatura do corpo lasso; ardiam-me as pálpebras ao descolarem-se, tal como ardiam-me os lábios morfeicos ansiando por água. Mas que água haveria eu de beber, se só veneno é que escorria daquelas rochas úmidas e árvores seivosas?

Foi assim, moribundo, intentando heroicamente contra o chão lodoso, que acordei a primeira vez.

Meus esforços foram em vão; era muito o meu cansaço. O máximo que consegui foi sentar, desajeitado. Aos poucos, a consciência e as lembranças avivavam-se em mim.

Ah! Antes não as tivesse!

Foi com as antigas práticas alquímicas e magísticas que aprendi demasiado para a pouca idade. As forças que delas advém são como o fogo: de imensa utilidade aos que lhe sabem usar, e de extremo perigo aos imprudentes e imperitos.

Naquela noite, fui desgraçado.

Feito uma criança dos montes Henan, que rodopia a espada nos ares, passando-a de uma mão à outra, com naturalidade e inocente ignorância acerca do perigo da afiadíssima lâmina, meti-me em mais uma das tantas viagens astrais que fazia durante o sono.

Quando entrei no estado de vigília, lentamente deixei o campo físico até ter completamente adormecida a carne e semi-liberta a alma. Fui das Cordilheiras ao Atacama e de um polo a outro do planeta; das cachoeiras de ouro até os regelados mares das dimensões supra-espaciais. Às maravilhas terrenas e extraterrenas... Tudo me era licito ver.

Já chegava ao fim minha jornada, no limiar dos além-mundos, de onde deveria regressar, quando singular forma feminina resplandeceu na imensidão sideral, ao alcance de meus olhos. Brilhava num carmim intenso e vertiginoso, e de seu corpo astral desprendiam-se nuances de fogo. Porém, quando me aproximei, a bela dama vermelha irritou-se com minha presença e precipitou-se pela cerca energética dos além-mundos.

Estupefato e maravilhado estava eu. O brilho daquela viajante atraía-me feito inseto, e embora fosse de meu inteiro conhecimento que humano algum deve atravessar aquela rede negra e vaporosa, uma força condenável compeliu-me para lá, e logo estava do outro lado, em terreno que me era totalmente desconhecido.

O lugar, inóspito e repugnante, exalava um ranço que me fazia arderem as narinas; a pouca iluminação e os lamaçais compostos de vegetação retorcida davam ao ambiente impressões de um sinistro pântano abissal. Os ares eram pesadíssimos e a locomoção muito difícil para mim; já não me era possível voar velozmente através do éter, nem mesmo caminhar confortavelmente, porque o magnetismo gravitacional era o dobro do terreno.

Tendo constatado todas essas impertinências, razoável seria que eu atravessasse novamente a rede, aproveitando a fraqueza da mesma por conta de minha passagem. Contudo, meu deslumbre e arrogância diziam o oposto e, ainda que não me interessasse mais a viajante, senti ganancioso a vontade de explorar aquelas paragens, nem que fosse apenas para poder dizer aos demais chelas que eu as conhecia.

Abominável decisão!

A pesarosos passos, adentrei corajoso o abominável local. Quanto mais para dentro ia, menos luz e mais silêncio. O silêncio, aliás, era tamanho a ponto de ser comparável ao vácuo. Depois de andar algumas léguas, descansei escorado em uma das repugnantes árvores. Convencido de que seria desacertado continuar viajando naquelas desconfortáveis ondas vibracionais, já havia decidido voltar, quando uma voz rouca quebrou a quietude.

- Não bebais destas rochas ou destas árvores, ainda que sintais sede. Delas escorrem venenos capazes de matar vosso corpo astral e causar severos danos à vossa alma.

- Quem é que me fala?

- Eu sou a Voz dos Umbrais.

- Poderíeis, gentil vocálico, acusar-me a saída mais próxima? Pois sinto estar perdido.

Não obtive resposta, mesmo perguntando mais algumas vezes. Nesse momento, elevei o pensamento aos Mestres dos Meios rogando por auxílio, mas podia sentir um imenso bloqueio telepático. Sem perder a calma, procurei por minhas pegadas na lama e as segui no caminho inverso. Contudo, não caminhei nada além de meia légua ou um tanto mais...

Ventos buliçosos e aterradores sopraram de todas as direções, atordoando-me de tal maneira que perdi os sentidos por alguns instantes, o suficiente para que o horror fosse instaurado em mim.

Quando finalmente cessou aquele furacão pavoroso, percebi que estava em outras condições. O lugar, em verdade, era o mesmo, de igual escuridão, peso, ranço e umidade peçonhenta. Eu estava em total debilidade e demorei um tempo para entender com clareza o que se passava ao meu redor e comigo.

Retesava-me a musculatura do corpo lasso; ardiam-me as pálpebras ao descolarem-se, tal como ardiam-me os lábios morfeicos ansiando por água. Mas que água haveria eu de beber, se só veneno é que escorria daquelas rochas úmidas e árvores seivosas?

Foi assim, moribundo, intentando heroicamente contra o chão lodoso, que acordei a primeira vez.

Em meus tornozelos e punhos, amarras energéticas prendiam-me contra a parede; à minha frente, uma dezena ou meia dúzia de entes encapuzados, trajando vermelho. Lembrei-me vivamente das palavras de meu Mestre, quando disse que os bons místicos superiores não vestem capuz, tampouco vermelho, à exceção de um, porque é de sua função. Apesar de toda a rusticidade, pude compreender que eu estava em um templo. Demonstrando humildade, falei:

- Ó sábios! Perdoai-me qualquer delito! Libertai-me este mortal corpo, para que então possa regressar ao Planeta das águas salgadas e jamais retornar!

- Tu, mortal humano de pensamento aleijado, ousastes ultrapassar os portais do além-mundo. De certo que nos julga inferiores, quando tu o és. De todo o teu limitado misticismo, crê a escuridão ser má, quando desconhece nossos propósitos, porque nos desconhece. Tu és um maldito!

Quem falava era um ente terrível. Não existe, sequer na imaginação mais fértil dos afeiçoados a histórias fantásticas e sombrias, algo possível de descrevê-lo, quando se fez visível através do capuz. Só me é alcançável dizer que era extremamente alto, cerca de três metros, centímetros a mais que os outros encapuzados. Compreendendo que se tratava de um Mestre, supliquei outra vez.

- Ó, Mestre! Nada sabe este mortal! De desarrumado raciocínio foi que atravessei. Piedade, Mestre! Piedade!

Adentrou o horroroso tempo um chela, trajando negro e trazendo consigo um recipiente prateado, transbordando uma pasta alaranjada que conforme o movimento do "balde" ficava vermelha; na outra mão trazia uma barra de aço mediana, com um símbolo na extremidade. Embora todo o meu conhecimento, eu não identifiquei o símbolo. Então, proferi contra eles diversos poderosíssimos esconjuros, mas eles riram de mim, e então calei-me.

- Não penses que me desconcerta. Conheço teus Mestres e conheço tua falsa humildade. És vergonha para teus Mestres.

Enquanto a criatura falava, os outros, de cabeça baixa, faziam o mais absoluto silêncio.

- Quem daqui regressa, volta ao próprio mundo com a incumbência de servir aos meus propósitos. Quando lá morre, é para cá que vem ter comigo e prestar contas de seus serviços.

Vendo então a possibilidade de ser liberto, não me contive.

- Que necessitais que eu faça? Dizei, e eu farei.

- Quando tiveres em teu mundo, saberás.

Dizendo isso, mergulhou a barra de aço naquela pasta, untando o símbolo inelegível com ela; em seguida, ordenou que me abrissem o manto e empurrou-me o aço contra o peito. Que dor cruel! Queimou-me até os ossos! Aqueles instantes pareceram infinitos, e eu urrava de dor.

- Agora és apto para ir. Vai.

Antes que eu pudesse correr - mesmo que fosse quase impossível, estava disposto a tentar - um rombo cósmico abriu-se debaixo de mim e eu caí naquele turbilhão do hiperespaço. Eu já tinha ouvido rumores sobre entes muito poderosos capazes de dobrar o tempo no hiperespaço, mas tudo não passava de especulação, até ali.

Enquanto eu caía, tenebroso babel enchia-me os ouvidos, enquanto páginas flutuantes passavam diante de meus olhos com escritas desconhecidas.

Espavorido e aliviado. Foi assim que acordei a segunda vez, já em minha cama, como quem acorda de intenso pesadelo. Refletia sobre tudo aquilo. Ainda me doía o peito.

Contudo, já não era mais o mesmo. Sabia todas as línguas e conhecia todos os escritos daqui e de outros tantos mundos. Conhecia segredos que, acredito, sequer o mais instruído mestre entre a raça humana conheça. Agora, ao retornar do abismo, não sinto impaciência. Apenas espero. Embora sinta que meu sangue ferve, eu espero. Nada mais eu temo. A escuridão veio comigo e selou o meu destino.

Naquela noite, fui desgraçado.

------------------------------------------------------------------- FIM

Femina Morituri
Enviado por Femina Morituri em 08/06/2015
Reeditado em 08/06/2015
Código do texto: T5270558
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.