Noite fria de Julho

Noite de julho. Muito frio lá fora. Uma leve chuva me poupa de ter que regar o jardim na manhã seguinte. Sento no sofá da sala e ligo a televisão. Um apresentador gordo entrevista um artista qualquer, nada demais. Mudo de canal e um filme clichê de terror está passando, quase no final. Por fim, resolvo acompanhar as últimas cenas.

” Corra, Janie, corra!” – O mocinho grita freneticamente para a “donzela” do filme. A virgem, claro, sempre a virgem sem graça…

Olho entediado para a tela da TV, quando ouço um barulho vindo da cozinha. Da janela da cozinha, mais precisamente. Estranho, não tem mais ninguém em casa; estão todos viajando. Olho para a tela da TV novamente e dessa vez o casal principal do filme está encurralado. De vários lados, criaturas esquivas, de silhueta humanoide, porém com joelhos e cotovelos encurvados demais, dentes afiados e olhos vermelhos como sangue, se aproximam dos dois. Acompanho a cena, esquecendo do barulho da cozinha. As criaturas se aproximam, o casal não tem para onde fugir. Estará tudo perdido em breve, muitos pensariam. Mas acostumado com filmes clichês de terror, eu sei que eles se salvarão no último minuto. Não estou errado, afinal, quando as criaturas começam a ser bombardeadas por projéteis aleatórios de uma metralhadora. O amigo nerd do casal, que todos pensaram ter morrido e não morreu, veio para salvá-los. Todos saem felizes, as criaturas estão mortas, mas eu sei que o filme não vai terminar assim, afinal, não deve ser o nerd o herói, pois o herói sempre é o mocinho descolado. Não deu outra, uma criatura surge do nada e ataca o nerd, arrancando-lhe a cabeça com um só golpe. O casal grita, tenta correr, mas outra criatura surge – e essa é ainda maior, quase o dobro das primeiras, o chefe. Novamente, estarão perdidos? Claro que não, eu sei, o mocinho vai resolver, relaxa “donzela”.

Outro barulho vindo da janela da cozinha – pareceu um arranhado no vidro. Olho de surpresa em direção ao cômodo e não sinto vontade alguma de ir olhar. A “donzela” do filme grita. Olho para a tela da TV e o mocinho está atravessando uma das criaturas, a menor, com uma lança de ferro retirada de um portão qualquer. A outra criatura ataca-o e ele é arranhado bem no peito. A “donzela” grita novamente.

Dessa vez o arranhado no vidro é mais prolongado e o som áspero gela a minha espinha. Não consigo me mexer, não quero ir lá ver o que está acontecendo. Se for algo ruim, certamente seria uma péssima ideia sair para olhar pessoalmente. Já sei, a casa tem câmeras, incluindo uma externa da porta da frente. Não vai pegar a cozinha pelo lado de fora, mas me sentirei melhor só de ver. Por fim, levanto do sofá e caminho até um monitor localizado no canto da sala, sobre uma mesa. Lá posso ver a tela dividida em seis partes iguais, cada uma focando uma região da casa: sala, cozinha, hall dos quartos, garagem, varanda da frente, fundos da casa.

Nada demais nas telas. A chuva lá fora ficou mais forte. As lâmpadas da varanda e dos fundos estão acesas e tudo que as câmeras mostram são sombras diversas. Fico olhando as sombras, mas nada que apresente qualquer perigo. Galhos das árvores, churrasqueira, cadeiras, mesa do churrasco, espera, o que é aquilo? Uma sombra diferente se move. Sim, se move de forma estranha entre as demais, na câmera dos fundos. Parece se afastar cada vez mais da luminosidade. A sombra foi se locomovendo até a lateral da casa, uma mancha disforme se arrastando em direção às janelas dos quartos. Até que por fim, a sombra some do campo de visão da câmera.

Segundos que pareceram uma eternidade se passam, quando ouço outro barulho. Dessa vez vindo de um dos quartos. Uma batida na janela, tenho certeza. A janela é de vidro temperado – assim como na cozinha – e o barulho também é de algo arranhando-a. Fico parado, minha atenção toda focada para a região dos quartos. Nenhum outro barulho. Silêncio lá fora, exceto pelo o som da chuva.

A campainha da casa toca. Tenho um sobressalto e meu coração pareceu querer sair pela a garganta. Levo alguns segundos para me situar novamente, até que a campainha toca novamente, dessa vez com uma sonorização mais prolongada. Alguém espera impaciente na porta. Começo a andar até lá e ao passar em frente à TV, vejo que os créditos do filme estão subindo. Provavelmente o mocinho encontrou uma forma de vencer a criatura maior e terminou beijando a “donzela”.

– Boa noite, Doug. Desculpe incomodá-lo assim, nessa chuva e à essa hora – Diz o senhor baixinho de cabelos grisalhos e olheiras profundas, no caso, meu vizinho Adevaldo. Estava ensopado, apesar de usar uma capa de chuva e muito ofegante; havia corrido até aqui, certamente.

– Senhor Adevaldo? O senhor está bem? Entre, não fique aí fora.

O velho entrou rapidamente e fechei a porta. Ficamos parados em pé, até que ele começou a falar.

– É que.. pode parecer estranho o que eu vou falar, mas eu não viria aqui nessa chuva e me molhar todo a toa.

“Fala logo, cara.” Pensei, mas mantive uma expressão indiferente.

O velho continuou:

– Eu ouvi alguns barulhos estranhos na minha casa – falou de vez, acertando em cheio minha espinha com mais um calafrio.

– Que tipo de barulho? – Perguntei, após olhar o velho nos olhos por alguns instantes.

– Algumas batidas nas janelas, arranhados, eu sei lá. Foi pavoroso. Uma hora batiam na janela da cozinha, outra hora na janela dos quartos e quando bateram na janela da sala, eu entrei em pânico – o velho começou a ficar nervoso, enquanto falava. Estou sem telefone em casa, não tem mais ninguém, então só consegui colocar a capa de chuva e sair correndo até aqui. Será que você pode ligar para a polícia, por favor?

Levei alguns segundos para processar a pergunta, mas consenti com um baixo “claro, vou pegar o telefone” e me dirigi até o centro da sala, onde estava o aparelho. Disquei o número da polícia e uma atendente com voz de velha disse do outro lado: “Polícia Militar, em que posso lhe ajudar?”. Expliquei que alguém estava tentando invadir ou vandalizar a minha casa e do meu vizinho e que ele estava apavorado e ensopado na minha sala. A atendente falou de forma robótica, quase que como uma resposta automática: “Estarei enviando uma viatura até o local, senhor. Peço que não saia da casa”.

“Maldito gerundismo” – Pensei, agradeci e desliguei o telefone.

– Eles estão à caminho, senhor Adevaldo. Pode ficar tranquilo.

Achei melhor não apavorá-lo com o fato de que a mesma situação ocorreu nas janelas da minha casa. Ele pareceu um pouco mais aliviado e sentou-se em uma cadeira de madeira que estava próxima, ensopando-a toda. Tentei ignorar o descontentamento com a ocasião, mas ele deve ter percebido meu olhar.

– Oh, perdão Doug. Me arrume um pano que eu seco.

– Não se preocupe com isso, senhor Adevaldo. Vamos apenas aguardar a polícia. Se importa em assistir televisão?

– Doug, você acredita em vampiros? – Ele ignorou por completo minha pergunta e sua questão fez meu calafrio gelar pela a terceira vez.

– Como assim? Por que este assunto agora?

– Ah, nada demais – ele pareceu ficar sem graça por ter perguntado -. É que eu estava lendo um livro do Stephen King. “A hora do vampiro”. Conhece?

– Não, nunca ouvi falar deste. O senhor gosta deste tipo de literatura? – Fiquei curioso com o fato daquele senhor gostar de ler livros de terror.

– É bobagem, hehe. Eu estou nervoso e por acaso lembrei de uma coisa interessante naquele livro – ele ficou esperando que eu perguntasse do que se tratava, mas como não perguntei, ele continuou assim mesmo. – Eh… lá eles falavam que um vampiro não pode entrar em sua casa, a não ser que seja convidado. Então alguns ficavam nas janelas, tentando mentalmente convencer os moradores à convidá-los.

– Hum… legal.

O meu “legal” pareceu ter desanimado-o a continuar com a história, então ficou olhando para a porta distraído.

Passou-se cerca de uma hora e a polícia não apareceu. O senhor Adevaldo estava muito impaciente, quando finalmente resolveu ir embora.

– Acho que se havia alguém tentando me assustar, já deve ter ido embora. Vou pra casa assim mesmo.

– Tem certeza? – Perguntei.

– Sim, sim. Obrigado por ter me recebido, Doug. Novamente peço desculpas pelo o transtorno.

Nos dirigimos à porta e ele saiu sob a chuva, que ainda estava forte, mandando um “boa noite” rápido.

Fiquei pensando no quanto essa situação foi estranha e perdi a vontade de assistir televisão. Levando em conta que já passava da meia noite, achei melhor ir dormir logo.

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A manhã veio fria, mas a chuva já havia cessado. Levantei quase nove horas, pronto para limpar a casa logo e ficar livre o restante do dia. Fiz toda a higiene e fui dar uma volta no jardim para ver estava tudo ok. Meu pai ficaria doido se visse que seu precioso espaço de flores e plantas estava danificado.

Andei pela a área do orquidário e fui em direção às samambaias. Em seguida, caminhei até a área da frente da casa, onde havia outras plantas que eu não sei o nome. Olhava minuciosamente para ver se alguma estava danificada pela a chuva, até que vi um amontoado estranho sob as plantas. Alguns fios brancos apareciam e tentei não acreditar que fossem fios de cabelo. “Bobagem”, pensei.

Caminhei até lá e removi a vegetação. O quarto calafrio que senti em menos de vinte e quatro horas fez com que minhas pernas bambeassem. Me segurei no muro para não cair e quase vomitei. Comecei a sentir vertigem e precisei me apoiar mais ainda para não desmaiar de vez. No chão, à minha frente, estava a cabeça do sr. Adevaldo. Cortada de seu corpo pela a base do pescoço. Muito sangue rodeava-a e meus olhos não conseguiram desfocar de uma única coisa naquela cena grotesca: dois pequenos e profundos furos ladeados em seu pescoço.

Luiz P Medeiros
Enviado por Luiz P Medeiros em 25/06/2015
Código do texto: T5289523
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