Em um pote

Minha avó ficou cega. Acho que ela tinha 85 anos e nessa idade não tem muita coisa que você não viu ainda.

Eu tive de recebe-lá na minha casa e minha namorada não gostou muito.

Eu era de uma família de filhos únicos. Minha avó cega só teve minha mãe e a criou sozinha. Meu pai cresceu em um orfanato e eu não tive irmão. Se eu tenho família, essa senhora cega está nela. E talvez só ela esteja.

Ela tinha catarata e eu não visitava ela. Fora a obrigação de manter contato eu não gostava muito de ver ela falando da minha mãe. Eu ia na casa dela só quando ficava sabendo que ela tinha piorado da doença velhice.

Minha namorada não gostou. Eu tambem não. Mas minha avó, que havia ficado cega devido a catarata, após ter visto 87 anos de coisas que uma pessoa velha já viu, veio morar conosco.

Tive que arrumar o meu quarto de bagunça pra ela. Ela dormia mal e era sonâmbula, o que justifica eu ter trancar a porta.

Lana, minha namorada, disse que não tem como cuidar de uma senhora. Eu acredito.

Na primeira noite eu dormi bem. Lana, porém, quis buscar água e quando chegou na cozinha minha avó estava em pé, em frente ao fogão. Muda, quieta e mais cega ainda com os olhos fechados. Lana quase infartou de susto e gritou. Eu acordei e fui correndo até a cozinha e vi minha avó em pé em frente ao fogão jorrando gás. Fechei a botija e tirei as duas dali.

No dia seguinte minha avó não lembrava de nada, mas Lana sim. Minha avó cega tomou café da manhã e me lembrou que eu tinha que leva-lá ao banco para sacar sua aposentadoria. Não quis tentar descobrir como ela abriu a porta trancada por fora, e eu agora acho que deveria ter feito isso.

Lana não quis ir junto e então fomos ao banco. Na volta, um pedestre desatento entrou na frente do carro. Eu consegui frear mesmo estando mais desatento que ele. O que pôs meu pé no freio foi o grito que minha avó deu.

Cheguei em casa pronto para discutir isso, mas Lana estava no portão chorando.

Chorando assustada, ela disse que no quarto da minha avó tinha um cachorro morto em baixo da cama.

Entrei pra olhar. As duas permaneceram no portão, uma delas chorando assutada, outra delas cega e muda.

Entrei no quarto e tirei o cachorro de lá. Um pitbull enorme. Ele estava todo mordido, como se tivesse morrido após uma briga violenta com outros cães.

Lana não achou que minha avó tinha feito aquilo. Ela não tinha visto as mordidas e, assim como eu, não achou que uma senhora de 73 anos que mal se mantém ereta, poderia machucar um pitbull. Eu não fazia idéia de onde era aquele cachorro. E no portão, onde eu havia deixado uma chorando e uma cega, eu ouvi um grito de quem não se fazia de muda mais.

Lana apertava o braço da minha avó e a jogou no gramado ao lado do portão. O grito chamou a atenção dos vizinhos que vieram correndo defende-lá. Vieram defender a cega. Eu cheguei e vi ameaças de chamado de polícia e denúncias. Lana não era violenta. Nos dois últimos meses, tem andado meio sensível e comendo muito, mas ela não tem andado violenta com idosos. Nunca esteve.

Minha avó disse que eu deveria me afastar dessa menina que mente pra mim. Lana disse que a cega olhou nos olhos dela e riu. Eu acalmei os vizinhos e entramos em casa. Eu esqueci de perguntar sobre o grito no trânsito e, nem reparo que o mesmo pedestre estava do outro lado da rua observando aquela gritaria com uma coleira vazia na mão.

Eu ponho minha avó para dormir e pergunto se ela lembra como abriu a porta ontem.

Eu só visitava ela quando sabia que não estava bem e eu não fazia idéia de nada além da sua lista de doenças de velha.

Ela disse que não lembra. Ela tem demência e as vezes não se faz clara. Eu iria por ela no asilo após vender a casa dela. Até lá ela teria que ficar aqui.

Eu sai para trabalhar no dia seguinte. Eu precisava manter a casa que agora abrigava uma garota assustada e uma cega demente.

A tarde, quando cheguei, minha avó estava na cozinha sentada à mesa, enquanto gritos de desespero e dor vinham do banheiro.

Cheguei na porta e foi como um coice no estômago. Minha namorada Lana, estava gritando com um feto na mão. Aquela coisa tinha menos de 10 cm de altura e era predominante vermelho. Não tinha olhos. Eu não sabia que Lana estava grávida e nem que minha avó iria ficar cega. Eu não sabia que Lana iria abortar uma criança que eu não sabia que existia e eu não sabia que minha avó materna viria morar comigo. Eu não sabia que estava correlacionado.

Lana havia pedido que o meu quarto de bagunça fosse limpo para visitas. Quando disse isso, ela não quis dizer minha avó que estava prestes a ficar cega.

Lana segurava aquele feto murcho enquanto gritava alto. Eu não conseguia ouvir. Lana perdeu meu filho surpresa. Minha avó na cozinha, tão indiferente quanto cega, e minha namorada no banheiro todo ensanguentado gritando com um pequeno projeto de filho. Eu demorei alguns vários segundos até processar tudo. Lana apontou ele pra mim e começou a pedir desculpas. Desculpas por não ter me falado, desculpas por ter escondido, desculpas por ter perdido meu filho surpresa.

Minha avó dormiu ininterruptamente aquela noite. Ao contrário do casal que acabara de perder o filho. Lana chorou a noite toda no canto da cama. Me pedia desculpas sempre que via que eu estava acordado. O médico disse que ela deveria ficar em repouso em casa e que isso é mais comum do que parece. Na verdade não era. O médico disse que ela poderá ter filhos de novo. Na verdade ela não poderia.

Acordei sem ter dormido, e fui direto no quarto da minha avó. Até agora minha avó cega e demente tinha presenciado minha namorada perder meu filho. Eu levantei súbito demais depois de ter dormido um pouco no silêncio que Lana fez após uma noite de desculpas embaladas em choro.

Minha avó estava na cozinha segurando meu filho morto. Ela colocou ele dentro de um vidro com formol e estava olhando pras costas dele. No quarto havia uma ex namorada, na cozinha minha avó e no vidro o que seria meu futuro filho.

Ela me pediu desculpa e me olhou nos olhos, como nenhum cego faz. Ela virou o vidro pra mim e aquela criaturinha ficou de frente pra mim, e se mecheu. Eu deveria ter tido esperança ou afeto mas na verdade tive repulsa. Talvez se eu tivesse sabido que eu tinha filho enquanto ele estava vivo eu teria uma empatia. Eu conheci ele já morto, por isso eu tive repulsa.

Minha avó levantou e deixou o vidro na mesa, com uma criaturinha que nunca mais se mecheu. Minha avó, tão cega quanto nunca, saiu porta fora e eu nunca mais soube dela.

No quarto frio e silencioso, Lana me fez entender que ela não se desculpou. Eu não tinha mais uma avó cega, eu não tinha mais uma namorada mas eu tinha um filho dentro de um pote de vidro.

Infelizmente não poderei por Lana em um pote.

Fother Mucker
Enviado por Fother Mucker em 02/07/2015
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