Os quatro gatos - DTRL23

 

Existem pessoas que simplesmente não tem crença alguma. Eu sou uma delas. Nunca acreditei em céu ou inferno. Nem Deus, nem Diabo. Pra mim, nada existia. Creio que depois do que passei, Deus não exista mesmo, mas o Diabo esse com certeza existe. Talvez não com esse nome, mas igualmente ruim. Uma força maligna que se alimenta das mentes mais fracas. E sempre é desta forma. Você só acredita tarde demais. E pra mim já é muito tarde. Mas antes de terminar com meu sofrimento eu resolvi vir até minha máquina de escrever e deixar meu relato. Contar a minha história. No fim, minha maior obra de arte, é minha morte. Minha história.

Tudo começou há algumas semanas atrás. Eu um escritor de alguns livros mal vendidos e pouco conhecidos, resolvi me mudar com minha esposa Clarice para uma cidadezinha chamada Estes Park, no Colorado. Lá havia o tal Hotel Stanley, muito famoso por ser mal-assombrado, que serviu de inspiração para grandes livros de horror. E para mim também seria. Mas o destino é uma criança brincalhona sendo eu o grande jogo da vez. Nem precisei sequer chegar perto do hotel. Assim que nos mudamos eu vi ela. A casa da senhora Brooking. Uma velha senhora que morava sozinha. Mas não completamente sozinha. Ela tinha quatro gatos.

Ainda não tínhamos arrumado as coisas quando vimos a polícia na casa da velha. As luzes das viaturas me chamaram a atenção. Me aproximei para ver o que havia acontecido. A senhora estava morta. Faleceu sentada em sua poltrona na sala de estar. O que não havia entendido era por que a morte de uma senhora de 78 anos chamava tanto a atenção? Por que tantas viaturas? Vi um homem com uma câmera tentando se aproximar do local, mas sendo barrado por um policial. Me aproximei e fiz as mesmas perguntas a ele. A sua resposta me chocou e ao mesmo tempo foi a luz no fim do túnel.

-Você não soube? Os policias encontraram no porão da velha dois corpos, aparentemente ela matou os dois ex-maridos dela. Sem falar que a velha estava dilacerada. Dá pra acreditar?

Dava. Dava sim, e pra mim aquilo era a inspiração que faltava. Chega de histórias de terror sobre hotéis do mal. A viúva negra. A velha assassina. Essa sim seria uma boa história.

Outra coisa chamou-me a atenção naquele instante. Seus gatos. Quem iria cuidar dos bichanos agora que velha havia partido dessa pra melhor? Apiedei-me dos animaizinhos e resolvi leva-los para casa. Seriam boas companhias a Clarice até a vinda do bebe.

Infelizmente esse foi meu erro. Assim que eles se mudaram lá pra casa, coisas estranhas começaram a acontecer. Nenhum deles tinha alguma coleira quando eu os peguei. Mas cada um deles era um degrau para a completa insanidade.

UM GATO CHAMADO SUSSURRO.

Assim que cheguei comecei a escrever. Aquela nova história representava muito. O fato de ser baseado em um fato real alavancaria as vendas. E assim foi por uns dois dias. Eu em frente a máquina de escrever.

Em uma noite estava trancado na sala escrevendo. Já tinha dois capítulos do meu livro pronto. Passava das três quando olhei no relógio e vi um barulho vindo da sala. Alguém estava falando algo. Era bem baixinho, mas concentrando-me um pouco mais pude ouvir:

“Mate, mate, mate”

Levantei-me e ao chegar na sala encontrei somente o bichano. Miando. Minha concentração no livro era tanta que já estava ouvindo coisas. Olhei para o pescoço do felino e lá estava. A coleira. Pensei no início que Clarice tinha dado nomes a eles. Achei mais estranho ainda o nome que ela havia escolhido: Sussurro. Não quis acorda-la para perguntar, fiz algum carinho no animal e depois voltei a escrever.

UM GATO CHAMADO SONAMBULO.

Acordei dois dias depois animado para mais um dia. Já tinha um terceiro capitulo pronto e mais alguns vindo por aí. Ao tomar o café com minha esposa, ela demonstrou certa preocupação comigo.

- Amor você precisa descansar um pouco mais. Sair de dentro de casa e dar umas voltas.

- Tá tudo bem Clarice, eu estou bem. Finalmente tenho uma grande história nas mãos. É a minha grande chance. A chance de ser um novo Stephen King. Você entende?

- Entendo é claro. Só que.... Eu não queria te contar isso assim, mas eu tenho a impressão que esse livro tá te afetando. Você...

-Eu o que? Pode dizer amor.

- É que você anda caminhando pela casa à noite. Enquanto dorme.

Ainda, antes de levantar para dar sua caminhada matinal ela disse-me:

- Aliás, achei estranho o nome que deu a eles. Mas você quem sabe, afinal de contas foi você que os trouxe.

Deu-me um beijo e desejou-me bom trabalho.

Aquilo havia me pego de surpresa. Não fosse o fato de eu não ter dado o nome aos gatos eu era sonambulo. Talvez os gatos já tivessem coleira, eu só não havia percebido. E eu poderia mesmo estar sendo afetado pela história. Senti algo cruzar entre minhas pernas. Olhei para baixo, e lá estava ele. Outro gato. Sonambulo. Estranhei, mas ainda assim, minha descrença me fez entender que era só uma coincidência. Não era. Nunca foi.

UM GATO CHAMADO SOLITÁRIO.

Havia dormido mal naquela noite, um sonho esquisito. Eu estava num cemitério ao meu redor estavam muitos gatos. Centenas deles. No chão haviam centenas de corpos de pessoas. Notei a velha entre eles. Havia em minha frente apenas um tumulo. Aproximei-me e lá estava. Meu nome. Era meu tumulo. Então todos os gatos começaram a atacar um cadáver do chão. Assim que cheguei mais perto a vi. Minha esposa. Com a barriga aberta e os gatos se alimentavam do meu filho. Acordei. Era de manhã. Nem lembrava mais que dia era. Não importava. A única coisa com que me importava era o livro. A maldita história da senhora Brooking. A velha maluca. Eu ia ser o novo Stephen King. Minha obsessão era tamanha que nem havia reparado que eu estava sozinho. Um dia levantei-me chamando Clarice, mas ela não respondeu. Procurei por toda a casa e nada dela. Cheguei a pensar em telefonar para a polícia. Mas quando peguei o telefone em mãos ele apareceu. Solitário. Esfregou-se em minhas pernas então andou até próximo a máquina de escrever. Simplesmente larguei o telefone e voltei a escrever. Não me importei. Era mais forte que eu. Os três gatos me rodeavam e miavam. O miado ficava cada vez mais alto. Comecei a entrar em desespero e perdi o controle. Já não era mais eu ali. Eu já não me pertencia. Suava frio e minha respiração ofegava. Peguei uma pá, ainda suja de terra e comecei a correr atrás dos malditos gatos. Sussurro, sonambulo e solitário. Eu iria matar a todos. E aquele outro também. Onde estava o maldito. Como era mesmo o nome dele?

UM GATO CHAMADO MORTE.

Corri, seguindo um miado irritante que vinha do jardim. Ali estavam todos eles, e aquele outro, estava cavando. Cavando o jardim. Foi só aí que lembrei-me o nome do maldito. Morte. Esse era o nome dele. E morte cavava muito bem. Tão bem, que desenterrou parte de um corpo. Me aproximei e pude ver o rosto de Clarice. Olhei para a pá e tive a certeza. Eu tinha feito aquilo. Corri para dentro de casa. Em cima da pia da cozinha havia muito sangue. Dentro da pia, boiando em meio a muito sangue estava meu filho. O que era pra ser meu filho. Vomitei ali mesmo no chão. Meus olhos já não enxergavam nada. Meus ouvidos só ouviam o miado. O maldito miado. Entrei desesperado no quarto onde escrevia. O espanto. Haviam centenas de folhas amassadas no chão. Centenas. O lixo estava transbordando e em cima da máquina de escrever havia somente uma folha. Juntei algumas do chão e pude ver que todas tinham a mesma coisa escrita.

Mate. Mate. Mate...

Olhei para a porta e vi entrando sussurro. Um a um, os outros também vieram e se sentaram ao meu redor.

Espero que agora fique tão claro pra você quanto ficou para mim. Aqueles malditos. Eu já não sei se eles eram reais. Nada mais me parece real. Sendo eles reais ou não ainda estão aqui. Cercam-me. Rodeiam-me. E esperam.Olham-me. Querem que eu termine logo o maldito livro. Querem meu fim. Eles já se alimentaram da minha alma, agora vão se alimentar do meu corpo. Maldito seja Stephen King.

Tema: Animais possuídos.