[7° Desafio Contadores de Histórias] - 17° Conto - "Beijos Encantados"

“Vivemos num mundo dentro de outro mundo, e repleto de mundos.”

Sempre fui muito pequeno, mas era bem mais veloz; setenta e oito batidas por segundo. Isso é apenas uma média, pois meu recorde é de duzentas e uma batidas... Ah, duzentas e uma! Puxa, puxa! Poucos conseguem isso. Tenho saudades desse tempo. E olha que já possuía pés pequenos naquela época. É, eu ainda tropeço em minhas próprias pernas.

Sempre fui muito “pra frente”, sedutor, descompromissado, só as usava, todas elas. Quantos beijos já roubei... Tantas formosuras encontrei durante passeios e viagens. Nunca havia sido de uma só, e aqueles beijos eram uma necessidade. Eu as via e as beijava. Simples assim. Sempre assim.

Ainda paro a admirá-las. Sempre gostei de cheirá-las embora meu olfato seja péssimo. Até gosto da poltrona de madeira que tenho em minha casa, ela balança como um galho soprado pelo vento, só que não precisa de vento. Até hoje acho isso engraçado. Tenho o hábito de posicioná-la em direção ao jardim que plantei em volta de minha morada. Amo jardins. Sento-me, e às vezes abro os braços, fecho os olhos e deixo a brisa tocar-me a pele, e a cadeira vai e vem, e vem e vai... Balançando como se eu pudesse voltar no tempo. Há certa nostalgia nisso. Das coisas que sinto falta, a maior delas são minhas antigas vestes, raramente as trocava.

A primeira vez que a vi, ela estava á janela. Assim que me viu através do vidro, com aquele olhar doce feito néctar, percebi o sorriso lançado de encontro a mim, justo quando empaquei a fitá-la, ao lado de seu jardim, um bocadinho longe da ruazinha de terra, a aproximados cinco passos de homem. Ela cuidava das rosas com tanto zelo.

Que cor era aquela para uma flor? Tão rara... Eu me achava um especialista em flores, e tão logo deduzi que aquela só poderia ser a que havia procurado por toda minha vida, a bela; “Amor-Perfeito”. Ela aparentava ter quinze anos, sim, era só um pouquinho mais velha que eu, mas na prática eu é que era mais velho que ela. Como quis beijá-la, experimentar o sabor de sua boca, e nunca mais ficar longe daqueles lábios, e que suas pétalas me abraçassem e cobrissem meu pequeno corpo num toque gentil.

Passei a ir na casa dela todos os dias, e com o tempo era como se fosse um encontro marcado. Quando chegava, já me esperava à janela. A cada dia sentia-me mais apaixonado. Como ela poderia ser tão linda? Petúnias, orquídeas, damas da noite... E havia ela... A mais linda de todas as flores.

Os dias foram passando e nos aproximávamos cada vez mais, até que em certo dia, quando cheguei a sua casa, ouvi a voz mais delicada, se pudesse compará-la a algum som, de verdade só poderia dizer que tinha um tom de sonho, e cantava aquela que seria nossa canção...

Um beijo numa flor

Meu jardim vem povoar

Beija eu, ó meu amor

E juntos vamos voar

Ela molhava as plantas com suavidade, provocando pequenos jatos que eram esguichados pelo bico da mangueira, reproduzindo gotículas que enfrentavam uma brisa deliciosa, dançantes, dividindo-se e também se multiplicando, e caindo por sobre as folhagens esverdeadas até que ao fim deslizavam e se perdiam no pó da terra.

Eu poderia admirá-la por horas. O esmalte vermelho, os dedos, os detalhes e os negros cabelos esvoaçados, quase ao tom de sua pele... Ah, e aqueles olhos de amêndoa... Queria tanto tocá-la. Como queria, e na contramão de meus instintos também havia um pouco de medo. Era tudo tão novo para mim. Então ela lançou aquele sorriso matreiro, o mesmo que havia me conquistado em nosso primeiro encontro. Posicionou uma das mãos em forma de concha por debaixo da ponta da mangueira, deixou que a água preenchesse aquele espaço côncavo e antes que percebesse suas reais intenções ela lançou o conteúdo contra mim. Tentei desviar a tempo, mas não consegui e o líquido frio atingiu meu pequeno e frágil corpo.

Pensei em fugir, mas ela sorria de forma tão graciosa que apenas ziguezagueei e voltei para onde estava. Quando parei ela franziu a testa, os olhos se estreitaram transmitindo-me a imagem de interrogação dum rosto jovem, e minha flor de repente pôs-se a caminhar ao meu encontro. Congelei. Afinal, frio e molhado já estava. Ergueu a mão em minha direção, ainda a três passos de mim, e começou a cantar novamente:

Um beijo numa flor...

Um passo! Eu não sabia o que fazer. Aquele vestido, os cabelos, a ponta dos dedos se aproximando... Os pés descalços tocando o chão molhado...

...Meu jardim vem povoar...

... Como ela podia ser assim tão serena? Eu me via dentro daqueles olhos, estava em movimento e ao mesmo tempo permanecia no mesmo lugar, como se dançasse para ela... Como se nós dois estivéssemos num palco, bem no centro dele, e estivesse sendo convidado para uma valsa... Lá... Lá laiá... Lá laiá... Lá laiá

...Beija eu ó meu amor...

... Estava em transe. Ah, como a queria, e como ainda quero. E só estava a um passo de mim, tão graciosa e encantadora. Como sinto falta dela.

...E juntos vamos voar...

E absolutamente hipnotizado fechei os olhos. Cores múltiplas se espalharam em minha mente reproduzindo o misto de sensações clandestinas, que furtivas me invadiam. Aquele mesmo vento repentinamente se tornou mais quente, e aconchegante. Ainda assim um friozinho me açoitava as oito costelas. Senti o toque dela, a ponta dos dedos deslizando por minha cabeça, acariciando-me, se esfregando em minhas costas... Tomei coragem... Num impulso precoce corrompido por meus batimentos cardíacos, movimentei-me tão ligeiro quanto pude, e de olhos já abertos a beijei.

Recordo que o beijo não foi o mais doce que já havia dado, entretanto aquela adrenalina, o frisson, o êxtase, o sentimento... Foi algo indescritível. Tão veloz como a beijei, fugi. Olhei ainda para trás, quando já estava distante e vislumbrei de relance ela sorrir, enquanto levava a mão aos lábios molhados. Fitando-a, contemplei ainda um daqueles olhares de fisgar o peito.

Perambulei o restante daquele dia. De noitinha procurei um abrigo e avistei minha árvore predileta. Naquela primavera havia algo de especial. Eu sentia, e sonhava com isso. Ainda pensava nela, na minha amada. “Ela estará me esperando amanhã? Quando a beijarei de novo? Pelo senhor das asas!”. Olhando para o alto, admirava as estrelas e percebi que uma cortava a noite, silenciosa e brilhante. Adormeci. Lembro que sonhei com minha donzela a madrugada inteirinha. Sonhos doces; flores, pétalas, a nossa canção... Ela me perseguia pelo jardim, usava um vestido de cetim, cor-de-rosa, e uma rosa branca pendia atrás da orelha esquerda. Eu abusava de minha velocidade, me esquivava, nos divertíamos, riamos, até que ela se jogou ao chão, rolou sobre a grama rasa a fim de posicionar-se e parou olhando para o céu. Aproximei-me dela, o sol sobre minhas costas, e naquele momento percebi o fechar dos olhos e em sua boca um biquinho formando-se ansioso, me convidando a beijá-la novamente... Avancei e quando estava a ponto de tocá-la acordei caído ao solo.

Estava tão assustado, quase não ficava no chão, sempre tive dificuldades em andar devido a meus pés minúsculos. Levantei-me, ainda zonzo. Havia um gosto amargo na boca, talvez fosse da mosca que comi no dia anterior, mas... “Mas eu adoro o gosto peculiar de moscas?“ Não sabia ao certo o que havia comigo. Olhei para a árvore, e o galho que mais amava não estava lá. No lugar onde deveria estar, havia apenas as marcas de algo que teria se quebrado e um pouco de seiva ainda escorria pelo tronco, na velocidade de uma lesma. “O que aconteceu?” Eu estava com tanto frio, tanto. Sempre demorava a acordar, ainda demoro. Sentia saudades da minha rosa, precisava vê-la. Motivado, abri minhas asas e preparei-me para o voo, mas... “mas!? Minhas asas sumiram e... Como eu estou grande?" Nem tão grande assim, porém...

Recordo-me do choque ao olhar para meu corpo e perceber que não havia penas. Levei as “mãos?” até o rosto e percebi que não tinha mais um bico e que minha língua era tão pequena, muito pequena, e eu tinha orelhas grandes... Eu não era mais um beija-flor... “Pelo senhor das asas!” Olhei para o chão e o galho estava lá, quebrado ao meu lado. Era tão pequeno. Eu só podia estar sonhando, ou pior; tendo um pesadelo. Mas não! Estava nu, próximo a floresta, e era um “duende?”. Como? Mas?... Não sabia ainda, contudo logo descobriria.

Como ave eu tinha três anos, o que equivalia a um quarto de vida de um beija-flor. Quando virei duende fiquei tendo justamente a mesma proporção em relação a estimativa de vida humana. Sendo assim passei a ter dezoito anos de idade. A estrutura óssea e anatomia no geral é bastante similar entre homens, duendes e gnomos, foi o que descobri com o tempo. Quando passamos a ser seres mágicos muita coisa nos é revelada, simplesmente chega uma enxurrada de informações do nada. O que mais me desconcertou foi descobrir que as flores que eu tanto beijava, na verdade eram fadas. Claro que eu também fiquei envaidecido, pois não é qualquer um que beija tantos seres de luz, até descobrir que... Que idiota! Nem todos são enganados por uma bruxa.

O que mais doeu foi saber que ela me usou, que só queria tirar o néctar das fadas. Cada animal, humano ou planta tem uma essência, algo mágico dentro de si. E é isso que as bruxas procuram, e é por esse fato que não vemos mais aquelas narigudas e verruguentas dando as caras por aí.

Contam as estórias que bruxas transformam príncipes em sapos, e é verdade, elas fazem isso para transferir suas verrugas para os homens. Elas fazem isso beijando eles, principalmente na lua delas, sim, quando estão em período fértil. Não é com uma varinha mágica, não, as varinhas nem são mágicas, algum dia foram grilos, que são utilizados para manter a voz jovem, ao invés daquele ranger assustador que espantaria a todos. A mesma voz que me seduziu com aquele canto. Entre numa casa cheia de varinhas, dessas que as pessoas usam para artesanato, bater em cavalos, aguidavis, baquetas e já fique alerta. Elas têm fábricas de diversos tipos de varinhas e os grilos são sua principal fonte de renda. Já com os beija flores, há duas coisas que as bruxas querem. Uma delas é o elixir da beleza, e a única criatura capaz de extrair ele das fadas é o beija flor, portanto com um simples beijinho elas captam tudo o que querem e também roubam nossa habilidade de voo para depois transferi-la para suas vassouras. É assim que conseguem voar, parar no ar, ir para frente e para trás. E são velozes, muito velozes, ao ponto de não conseguirmos distingui-las voando, na verdade parecem até estrelas caindo do céu.

Sempre haverá novos duendes, gnomos, fadas, bruxas... Há coisas boas e ruins em tudo. A criação vem da destruição. Hoje vivo escondido nas árvores, sempre escolhemos as de maiores diâmetros, como cipreste de montezuma, o baobá africano, eucalipto cinza, jatobá e tantas outras. Somos responsáveis pelas florestas e cuidamos delas evitando que crianças se percam, tratamos de animais machucados, mas o que não conseguimos mesmo curar é a ferida que as bruxas deixam em nosso coração; o amor.

Quer saber se a procurei depois disso?

Claro que sim, várias vezes. O problema é que nunca mais a vi, como se aquela casa nunca houvesse existido. Elas simplesmente desaparecem. Não sei explicar como ou porquê, mas sinto um oco dentro de mim, e minha rosa foi quem me deixou desse jeito.

Rosas de fato têm seus espinhos, e o pior é que você jamais deixa de amá-las por isso.

Fim!

Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 10/07/2015
Reeditado em 16/07/2015
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