A TATUAGEM DO DIABO

**Nota do autor: reedição.

Guerra do Vietnã

Década de 70

Eles eram de um batalhão de elite do exército americano, amigos era um termo exagerado para descrevê-los, mas digamos que haviam chegado naquele inferno juntos, passado dificuldades juntos, bebido e fumado baseado junto, matado junto e havia grandes chances de morrerem juntos. Definitivamente, isto acaba levando a uma ligação relativamente forte. É isso: podemos dizer que eram bastante ligados um ao outro.

Estavam num puteiro de um vilarejo qualquer aproveitando suas poucas horas de folga, as quatro garrafas de whisky vazias sobre a mesa eram testemunhas do estado de embriaguez em que se encontravam. Quando se conheceram há três anos eram oito, um voltou para casa porque perdeu as duas pernas numa mina, ao longo dos anos a morte tinha recrutado cinco e agora só restavam Bob e Jeb naquela mesa, a companhia dos amigos substituída por duas prostitutas vietnamitas com sífilis ou na melhor das hipóteses um pouco convidativo corrimento vaginal. Uma vitrola escondida em algum canto entoava “Yesterday dos Beatles” e o ar era tão enfumaçado por cigarros vagabundos e maconha que os olhos chegavam a lacrimejar em inútil protesto.

Com uma puta sentada sobre sua coxa e uma bituca no canto dos lábios Bob praguejou:

- Já não bastasse esta merda toda, ainda temos que ficar aturando estes merdinhas ingleses de cabelo esquisito cantando estas músicas nojentas. Estes chinas não sabem a diferença entre um americano e um inglês, se eles não botarem “Blue Suede Shoes do Elvis” eu juro que vou até lá e dou um tiro no rabo dum...

- Cala a boca Bob, no estado que você esta mal consegue distinguir rock de tango, música é música... – falou Jeb enquanto dava mais uma tragada em seu baseado.

Mas Bob já nem ouvia mais, já havia levantado e estava pegando o apavorado garçom pelo cangote quando ouviu os primeiros acordes da música que queria.

- Agora sim – disse ele enquanto aplicava um pontapé na bunda do vietcongue e retornava para a mesa.

- Fica frio Bob, já temos lutas mais do que suficientes no front, e você ainda fica arrumando confusão até nas poucas horas de folga que temos?

- Por isso que eu não fumo esta porra que você anda sempre na boca – falou Bob em meio a um sonoro arroto – você fica todo “zen” com esta merda, qualquer hora ainda vão comer teu rabo no acampamento... Além do mais, tenho um companheiro aqui que me ajuda a acabar rapidinho com qualquer confusão... – completou ele enquanto retirava o carregador e dava um tapinha camarada no seu fuzil M-16, era uma mania antiga e irresponsável que ele tinha de deixar a arma descarregada com o pente servindo de suporte para seu copo de whisky.

A fama de esquentado de Bob já havia virado lenda no batalhão, ele era muito respeitado pelos outros não só pelo seu pavio curto, mas porque também era disparado o mais destemido. Diziam que quando ele “saía da casinha”, só mesmo Jeb para acalmá-lo. Era o único que ele respeitava e ninguém entendia bem o porquê. Jeb era o oposto de Bob, não que ele fosse algum covarde – longe disso – mas era um cara calmo e inteligente, com certeza eram estas duas virtudes que o tinham mantido vivo até o momento. Bob, ao contrário, era o primeiro a se atirar na linha de frente. Invariavelmente, quando tinham que se embrenhar em alguma “toca” que haviam descoberto: lá ia Bob buraco à dentro. Havia alguma coisa nisso que de certa forma incomodava os demais, não tinha lógica, um cara com estas atitudes numa guerra de milícia dentro da selva já devia estar morto há muito tempo, mas ao contrário, Bob nunca havia levado um tiro sequer...

- Não agüento mais esta conversa, vou dar uma mijada – disse Jeb levantando-se enquanto caminhava com passos trôpegos em direção a uma porta lateral que dava acesso a latrina imunda no ambiente ao lado.

Quando retornava para o salão, ainda com as mãos ocupadas, a cena que Jeb viu foi uma verdadeira sentença de morte, só teve tempo de atirar-se no chão antes da saraivada de balas começarem.

Três jovens haviam entrado atirando com potentes fuzis AK-47, bem na linha de tiro encontrava-se Bob sentado, com sua M-16 ainda descarregada sobre a mesa e com o carregador sob o copo.

Foi tudo muito rápido, mas na mente de Jeb era como se ele estivesse em transe vendo tudo em câmera lenta. Rajadas de bala explodiam por todos os lados, corpos de soldados eram despedaçados e algumas partes viscosas respingaram sobre seu corpo. A cabeça da mulher sentada ao lado de Bob simplesmente explodiu ao ser atingida em cheio por um disparo. Apesar de estar no epicentro do ataque, Bob parecia estar tediosamente sentado em uma poltrona olhando algum jogo chato de futebol. Com movimentos lentos, levantou-se e pegou o cartucho como quem pega o controle remoto para trocar de canal, acoplou o pente e deu três tiros secos. Da mesma forma como havia iniciado, tudo acabou rapidamente. Os três vietcongues foram abatidos com tiros certeiros e antes de sentar novamente, Bob olhou para Jeb com um sorriso matreiro enquanto uma nova música de Elvis começava a entoar.

Enquanto os pedaços de corpos eram carregados para fora e as mulheres lavavam o piso, resolveram voltar para a mesa e pedir mais uma bebida – pode parecer meio estranho para você, mas há de convir que na situação deles, folga era uma coisa rara e corpos espalhados era rotina para eles, surpresa seria se uma loira gostosa entrasse pela porta e pedisse uma cerveja.

Apesar de acostumado com as inúmeras vezes que vira Bob sair ileso de investidas esmagadoras, desta vez Jeb estava realmente incrédulo e encorajado pela bebida resolveu ir a fundo com o amigo:

- Bob, como você se safou desta?

- Buena sorte – respondeu ele num castelhano sofrível.

- Caralho! Estou falando sério, não me venha com esta história de sorte. Isto não é normal – gritou Jeb segurando o amigo pelo braço.

Após olhar Jeb com um olhar sério, Bob falou simplesmente:

- Fiz um acordo com o diabo.

- Quê? Você fez um pacto com o capeta? – questionou Jeb com um indisfarçável nervosismo na voz.

- Acordo... pacto... acerto... brincadeira... chame do que você quiser, mas foi o que fiz e só sei que funciona. Não quero morrer no meio desta merda toda!

Bob permaneceu em silêncio, seu semblante era sombrio e introspectivo, não sabia o que pensar, mas conhecia o amigo o suficiente para saber que ele estava falando sério. Como se falasse consigo mesmo, Bob começou a contar sua história:

“Quando cheguei aqui eu estava em pânico, eu nunca havia pegado em uma arma antes. Na primeira batalha não consegui disparar um único tiro, só me encolhi e chorei o tempo inteiro no meio daquele caos. Voltei para o acampamento com a certeza que não voltaria para casa. Entrei em desespero, rezei todos os dias, implorei a Deus para me proteger e me levar para casa. Acho que Deus estava ocupado demais, pois eu sabia que mesmo os que não admitiam passavam horas rezando. A cada dia meus companheiros morriam como moscas e muitos deles rezavam bem mais do que eu. Alguns deles tiveram mortes extremamente lentas e sofridas. Onde estava Deus?

Eu sabia que era uma questão de tempo para chegar a minha hora, vida ou morte se resumia em sorte ou azar. Definitivamente, Deus não esta presente nestas selvas, ou simplesmente não se importa.

Já fazia alguns meses que eu não rezava mais. Comecei a ter pesadelos em que o diabo me oferecia ajuda, logo depois eu parecia estar dentro da minha cabeça, eu ouvia sua voz o tempo todo. Fez-me uma proposta e eu pensei: Por que não? Afinal, com tanta gente que eu já havia matado naquelas alturas, eu já estava mais perto do inferno do que do céu. Resolvi aceitar a oferta”.

- Bob, e o que você acertou? Vendeu sua alma?

- Não, ele se contentou em me deixar com o corpo fechado, desde que eu matasse o maior número de pessoas que fosse capaz. Sabe como é... ele disse que é bom para os negócios.

- E o que ele lhe prometeu?

- Eu pedi que ele protegesse meu rabo e não me deixasse morrer nesta selva maldita. Ele garantiu que cumpriria a promessa e até hoje tem mantido a palavra, como você bem pôde ver. Fiquei tão agradecido que cheguei a fazer uma tatuagem com a cara dele na minha bunda como homenagem....

Bob levantou-se e arriou as calças o suficiente para que Jeb pudesse ver aquela imagem macabra tatuada em sua nádega direita. Era um rosto realmente bizarro, com chifres e tudo... um sorriso malévolo com presas escancaradas completava a face sinistra.

- Deus me livre e guarde – disse Jeb fazendo o sinal da cruz – com estas coisas não se brinca Bob, esta coisa mete medo só de olhar.

Em meio a um sorriso Bob sentenciou enquanto levantava a calça:

- Pois fique com Deus protegendo sua alma que eu fico com o diabo protegendo meu rabo. No final das contas a gente vê quem se da melhor...

Os dias passaram lentos como se fossem meses, com Bob se aventurando como louco e Jeb se virando como podia... Mas exatamente dois anos, três meses e dois dias depois da distante conversa no bar, ambos estavam vivos e de dentro do helicóptero se despediam das selvas do Vietnã.

Três semanas depois...

Base Aérea Luke – Arizona – EUA

Sentados no imenso avião de carga que havia acabado de aterrissar, Bob e Jeb não viam a hora de abraçar os familiares que aguardavam ansiosos pelo seu retorno. Enquanto esperavam a autorização para desembarque, Bob brincava atirando uma granada de uma mão para outra.

- Você é completamente maluco Bob, deixe esta merda onde encontrou ou vai acabar preso.

- Relaxe Jeb, até parece que não passamos os últimos anos com no mínimo umas cinco destas na cintura. Sem chance! Vou levar este souvenir do Tio Sam de recordação, é o mínimo que me devem pelos anos de serviços prestados. Além do mais, não esqueça que o diabo protege meu rabo.

Jeb já ia protestar quando ouviu a autorização para descer. A ansiedade falou mais alto e assim que pisou em solo se atirou numa corrida desenfreada em direção a família. Jeb vinha logo atrás com passos lentos e semblante imponente com um cigarro nos lábios.

Jeb havia acabado de abraçar a mãe quando ouviu o estrondo ensurdecedor, o instinto o fez imediatamente atirar-se ao chão sem mesmo entender o que estava acontecendo.

Segundos depois se virou na direção de Bob, mas tudo que viu foram pedaços do corpo do amigo espalhados pela pista. A granada havia sido competente, pois Bob havia sido reduzido a uma massa disforme e ao chegar mais próximo Jeb constatou horrorizado que a única parte do corpo ilesa era um estranho pedaço das nádegas que ostentava a face do diabo sorrindo.

Enquanto beijava seu crucifixo, Jeb não conseguiu evitar o pensamento de que no final das contas o diabo havia cumprido a promessa feita a Bob: não deixá-lo morrer no Vietnã e proteger o seu precioso rabo.

Maddox
Enviado por Maddox em 11/07/2015
Código do texto: T5307959
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