A Gruta -DTRL 23 #Luto#

O caminho até a gruta era longo e sinuoso. Nada mais do que uma estrada irregular e improvisada feita há algumas décadas pelos habitantes locais, seguia aparentemente sem fim vindo do coração da ilha até perto da costa, onde então se ramificava em uma miríade de atalhos. Alguns davam em ilhas paradisíacas de areia branquíssima, outros em lagunas de água salgada cercadas por vegetação. Outros ainda (podia-se contar nos dedos quais), desembocavam em um pequeno conjunto de grutas naturais de beleza ímpar, conectadas ao oceano através de câmaras submarinas tão impressionantes quanto perigosas.

Era para uma delas que o homem se dirigia.

O clima tropical das Bahamas estava particularmente ameno naquela manhã. A época das chuvas havia passado, e a vegetação de todo o arquipélago exibia o auge de seu esplendor. Já faziam algumas horas que ele seguia por aquela estrada, e em nenhum momento deixou de ser ladeado por um exército incontável de árvores (em sua maioria, pinheiros caribenhos) e arbustos viçosos e cheios de flores e frutinhas. Se seguisse um pouco mais além de seu destino, pelo que vira nos mapas, chegaria aos manguezais, mas este seria um roteiro para outro dia. Naquela manhã ensolarada de Agosto, no coração da floresta, estava decidido a atender a um chamado de emergência.

Com cuidado, tirou uma das mãos do volante do jipe 4x4 camuflado e tateou o piso atrás do banco do passageiro. O automóvel deu uma chacoalhada violenta ao passar por um desnível no terreno, e, por um momento, não encontrou a carta. Tateou um pouco mais fundo e finalmente sentiu o papel grosso -uma cópia, naturalmente. O carro estava uma baderna. Recebera a visita bem cedo naquela manhã, e com a urgência do chamado só tivera tempo de terminar o café e abastecer o carro.

Alternando o olhar entre a estrada e a carta, releu-a pela quinta vez. Estava extasiado com tudo sobre ela. Em todos esses anos servindo a Marinha, nunca chegou de fato a acreditar que chegaria o dia em que finalmente sua lealdade seria colocada à prova.

Quando terminou de ler a última palavra, olhou para frente e abriu um sorriso. Estava quase chegando. Uma placa ao lado direito da estrada indicava que a gruta se encontrava a 200 metros. Soltou um longo suspiro.

Estava pronto.

***

Meu nome é Daniel Villegas, filho do cantor Micael Villegas. Se você estiver lendo esta mensagem, peço que a encaminhe urgentemente para as autoridades competentes. É IMPORTANTE que o faça. Prossiga e você entenderá.

Tudo o que relato aqui aconteceu de verdade. Palavra por palavra, vírgula a vírgula. Leia sem preconceito e faça o que tiver de ser feito para levar esta carta a público. O mundo corre perigo iminente, e você pode ter certeza de que a ameaça é a mais improvável possível. Minha intenção é partilhar os momentos de horror que vivi e ainda vivo. E evitar que o mundo eventualmente encontre sua ruína.

Tudo começou há duas semanas, quando meu pai teve uma brilhante idéia. Não o julgo: ela parecia mesmo muito boa quando ele a contou, à beira da piscina de nossa mansão em Miami. Ele sempre foi fascinado pelos mistérios do mundo; minhas lembranças mais antigas são as de nossas excursões a locais assombrados, como a Mansão Woodchester, na Inglaterra, e os campos abandonados da Costa dos Esqueletos na Namíbia, ou à atrações mais convencionais (mas não menos místicas) como Stonehenge e as grandes Pirâmides. Passei grande parte da minha vida em aeroportos ou balsas, entre uma aventura e outra, voltando para casa apenas quando se iniciavam as turnês de promoção do seu disco atual.

Nos últimos meses, ele andava vidrado com as histórias nebulosas do Triângulo das Bermudas. É engraçado como já tínhamos explorado meio mundo em busca de curiosidades e segredos, mas ignorado o quintal da nossa própria casa. Como sempre fazia quando tinha uma idéia nova e inusitada de roteiro turístico, meu pai se fechou em seu escritório e iniciou uma extensa pesquisa. Durante o almoço ou o jantar, contava empolgado sobre alguma nova lenda que desencavara na internet, e, principalmente, como andavam os preparativos para sobrevoarmos a mesma rota original do infame Voo 19. (Concebido para ser apenas um treinamento de formação de cadetes, cinco aviões Avenger partiram da Base Aero Naval de Fort Lauderdale (Flórida) em uma tarde de 1945 para simular ataques de torpedos em alto mar -mas de forma inexplicável perderam contato com a torre e nunca mais foram vistos. O mais improvável aconteceu quando os dois aviões de resgate enviados para a busca das aeronaves -que certamente haviam caído no mar devido à falta de combustível- também desapareceram, após cruzarem a última posição conhecida do esquadrão. Esta história, somada a vários outros relatos e teorias das mais fantásticas, ajudou a solidificar a aura impenetrável de mistério que paira sobre aquele pedaço do Oceano Atlântico.)

De modo que quatro dias depois, lá estávamos nós prontos para levantar voo no reluzente Cessna que ele comprara para a viagem. Era um monomotor bem moderno e confortável, e me lembro de estar torcendo para que ele fizesse jus ao brevê e não nos metesse em alguma enrascada potencialmente mortal (pensando agora, enquanto escrevo esta mensagem, isso me soa tão inocente -como se uma queda no mar fosse o pior que pudesse nos acontecer...). O dia estava claro e a visibilidade excelente. O vento soprava a nosso favor, vindo de ré para vante, o que nos faria de quebra economizar um pouco de combustível.

-Está ansioso, Daniel? -perguntou meu pai, quando atingimos uma boa altitude.

-Para ser sincero, sim -respondi. Eu estava muito nervoso, na verdade. Sobrevoar aquela região, mesmo em um dia com condições perfeitas como aquele, era sempre motivo de tensão. Afinal, anualmente cerca de 30 aeronaves leves desapareciam no Triângulo das Bermudas, e eu não tinha intenção de que nos tornássemos parte da estatística.

-Fica tranquilo, filho. O dia está lindo, aproveita. Olha que beleza!

Abaixo de nós várias ilhas e ilhotas cobertas de vegetação silvestre passavam em sucessão, todas parecidíssimas. Este era um dos problemas de se voar por ali: por ser uma área sem muitas referências visuais, perder-se era fácil caso não se estivesse prestando muita atenção.

-Pai, fica atento -eu disse. Olhava pela janela as dezenas de ilhas e a imensa vastidão do oceano, mas não estava aproveitando. Eu sentia algo no fundo da mente, uma certa angústia. Era como se eu desconfiasse que algo não daria certo naquele dia. Tentei afastar o pensamento.

Seguimos em silêncio por bastante tempo; apenas o som homogêneo e relaxante do motor preenchia a cabine. A paisagem, apesar de deslumbrante, começou a me entediar depois da primeira hora (meu pai, pelo contrário, não parava de soltar exclamações e comentários animados). É, a famosa região parecia mais excitante nas lendas mesmo. De todas as aventuras, aquela estava sendo a menos interessante.

Em determinado ponto, quando eu estava quase pegando no sono, ele me chama:

-Daniel, filho, você consegue ver aquilo logo ali na frente?

-Onde? -perguntei, me endireitando no assento e contendo um bocejo.

-Ali, a oeste, perto da linha do horizonte. Será que é o que estou pensando?

O sol refletia na água e me fez demorar um pouco para avistá-lo.

-Mas que porra é essa? -eu disse, quando finalmente vi.

A vários quilômetros de nossa posição, o oceano estava diferente. A água, até então serena, parecia anormalmente agitada naquele ponto, como se um gigantesco ralo de pia a sugasse para baixo. Aquilo só poderia ser...

-É um redemoinho, e dos grandes -meu pai disse. -Caramba, não sabia da ocorrência deles na região. Vamos dar uma espiada de cima dessa maravilha!

E foi a partir deste momento que a aventura cedeu lugar à nossa maior desventura.

Os eventos seguintes parecem fragmentados para mim agora, quando tento relembrá-los. Recordo primeiramente de termos alterado levemente a rota a bombordo, para passarmos bem ao lado do vórtice. A próxima cena é do meu pai guinchando empolgado e observando, com encanto quase infantil, aquele fenômeno de dezenas de quilômetros se desenrolando abaixo de nós, uma poderosa e inexorável prova da força incontrolável da natureza.

Então, sons.

Os equipamentos começaram a apitar, enlouquecidos. Meu pai gritava, mas não mais de empolgação. No segundo seguinte, estávamos perdendo altitude, caindo, caindo, caindo, mergulhando de barriga em direção à parede de água salgada muitos metros abaixo.

-Daniel, se segure! -ele gritava a todo fôlego.- Estou tentando nos afastar do vórtice, mas não consigo controlar...

A última imagem que tenho do avião é a de eu pegando a minha mochila de lona impermeável e a abraçando como se ela pudesse me salvar da morte quase certa.

E então, a escuridão.

Quando despertei, ao que pareceu segundos (ou uma vida) depois, minha cabeça rodava como pião. Uma náusea fortíssima fustigava minhas entranhas, como se elas quisessem saltar pela boca; meus braços e pernas estavam dormentes e gelados. Eu tinha a vaga noção de estar deitado em um quarto amplo e de paredes brancas e rústicas, envolvido por uma luz azul piscina quase etérea.

Mais ou menos um minuto depois, meu cérebro parou de rodopiar, e o primeiro pensamento que me veio foi: “Pronto, morri. Estou no céu?”. Tentei me erguer para sentar, mas estava muito fraco.

-Se eu fosse você, não tentaria isso -disse uma voz masculina ao meu lado.

Virei lentamente a cabeça para a direita e vi um velho barbudo e magricelo, na faixa dos 70, me encarando com um olhar curioso.

-Você precisa descansar, meu jovem. Deve ter sido uma viagem e tanto.

-Quem é você? -eu perguntei, minha voz aguda como a de uma soprano.

-Jeremy, prazer. E você seria?

-Daniel. Daniel Villegas.

-Villegas. Parece o sobrenome daquele cantor famoso que minha esposa gosta.

-É meu pai! -exclamei, lembrando dele. -Você o viu, Jeremy?

O velho me olhou de um jeito engraçado.

-Não. Mas o que é que vocês estão fazendo aqui?

-Não sei. Estávamos em uma aeronave seguindo a rota do voo 19, quando vimos um redemoinho no oceano. Parece que caímos na água, sei lá. -Dei uma pequena pausa para respirar.- Afinal, onde nós estamos?

-Estamos no inferno -ele disse.

-No inferno? -eu repeti, intrigado.

-Sim. Ainda não encontrei uma definição melhor para este lugar.

E então passou os 15 minutos seguintes me contando a história de como viera parar ali, depois que seu navio pesqueiro afundou repentinamente na volta de uma madrugada intensa de trabalho, e do que viu desde que chegou.

Admito que no começo achei graça do que ouvia. Eram acontecimentos tão surreais que somente um lunático poderia acreditar. Quando chegou ao fim de seu relato, entretanto, permaneci um bom tempo em silêncio, fitando seus olhos negros que pareciam tão verdadeiros quanto lúcidos.

-Então, somos prisioneiros em uma cela no fundo do oceano, reféns de alienígenas -resumi, por fim.- Bem, acho que meu pai, onde quer que ele esteja, deve estar orgulhoso. Superou a vez que ficamos presos no alçapão de um castelo na Transilvânia...

-Você parece ter aceitado tudo muito bem -admirou-se Jeremy, virando para pegar algo atrás de si. Havia um amontoado de coisas ali, coberto por panos.

-Acho que ao longo da vida fui treinado pelo meu pai a aceitar que coisas estranhas acontecem. Ou talvez eu só esteja feliz por estar vivo.

-Pois acho que faz muito bem em pensar assim. Esta cela aqui já abrigou 15 homens desde que cheguei. Como eu disse, a maioria foi pega dia após dia pelos alienígenas, e nunca mais voltou. Outros, de mente mais frágil, enlouqueceram e se mataram. Você me parece um rapaz bastante forte, só precisa de combustível. Tome! -O velho revelou um embrulho de papel nas mãos.- Já tem dois dias que eles não trazem comida, mas eu guardei um pouco para caso a garota sentisse fome. Não sei se vai apreciar muito o gosto, mas você se acostuma.

-Garota? -indaguei, confuso. Aceitei o embrulho e o abri. Ele continha algo que parecia vômito solidificado, e fedia como tal, mas eu estava com tanta fome que prendi a respiração e engoli. Tinha gosto de peixe rançoso.

-Sim. Estamos em três nesta cela. Eu já ia lhe contar sobre ela, só precisava confiar em você primeiro. Aya está logo ali atrás, dormindo. A pobrezinha apenas dorme depois que retornou.

-Retornou de onde?

-Não tenho idéia -admitiu. -Só sei que ela voltou diferente. Antes ela era uma menina assustada, mas bonita e saudável. Quando cheguei aqui na cela, a vi sozinha em um dos cantos, chorando. Chamava muito pelos pais e dizia que os “monstros” haviam aparecido há alguns dias e levado eles à força. Sabe, Daniel, eu tenho uma filha, adulta já, e Aya me lembra tanto ela quando pequena. Chamei-a então para perto de mim e a abracei. Pouco tempo depois ela adormeceu em meu colo, e prometi que a protegeria com a minha vida se fosse necessário.

Ele baixou os olhos e seu rosto adquiriu um aspecto sombrio.

-Mas eles vieram dois dias depois e eu não tive chance. São muito fortes, mais do que você pode imaginar. Pegaram-na enquanto ela se debatia e gritava e me prenderam contra a parede para que eu não atrapalhasse. Foi a primeira vez que achei que enlouqueceria. Graças a Deus, algumas horas depois eles a trouxeram de volta, só que...

Para minha surpresa, ele desatou a chorar descontroladamente -e posso afirmar que é uma cena de cortar o coração quando um velho de 70 anos chora como um garoto de 7. Juntei todas as minhas forças e fiquei de pé. Aquela ração era horrível, mas era comida, e eu estava mais forte agora. Senti um pouco de tontura; Jeremy segurou meu braço quando cambaleei.

-Desculpe, só queria te dar um abraço.

-Venha, quero lhe mostrar Aya -ele disse, limpando as lágrimas. Parecia um pouco envergonhado.

Andamos devagar até a outra extremidade da cela. Eu calculava que o local deveria ter não mais do que 20 metros quadrados. A luz azulada penetrava através de pequenas aberturas rente ao teto em três das paredes, e preenchia cada canto dando a estranha impressão de que caminhávamos embaixo d´água (o que, tecnicamente, era verdade). A quarta parede era vazada, formada pelo que pareciam estalactites esbranquiçadas que iam de cima a baixo, tão juntas que era quase impossível ver entre os vãos.

-Daniel -disse Jeremy, sério, quando estávamos a meio caminho.- Quando você ver a minha menininha, peço que tente se conter. Ela sabe que não é mais a mesma, e está sofrendo.

-Claro. -Depois de tudo, duvidava que algo mais poderia me surpreender.

Aya não passava de um embrulho volumoso de flanela em um dos cantos. Estava virada para a parede e dormia profundamente. O som de sua respiração, apesar de baixo, era inquietante: líquido, como o de alguém se afogando. Um cheiro forte emanava de seu corpo.

Jeremy se agachou com cuidado a seu lado e deu um leve toque no pequeno ombro.

-Princesa, tente acordar um pouco. Temos um amigo novo, que gostaria de vê-la.

O embrulho se agitou e ela virou-se lentamente para nós. O cabelo loiro, empapado de sujeira, cobria totalmente sua face, e Jeremy, com cuidado paternal, afastou as mexas, revelando-a. Quase levei a mão à boca por instinto, mas me contive. Foi difícil. “Que porcaria é essa?”, pensei, e na mesma hora me senti culpado ao lembrar que me referia à uma garotinha. Com a diferença, claro, de que agora ela parecia a versão infantil de algum monstro de filme B dos anos 80.

Para começar, a cabeça da pobre garota estava inchada como um balão. A pele, esticada de forma anormal, parecia capaz de se desgrudar do crânio com um simples toque -como folha de papel de seda-, e possuía um tom esverdeado doentio, repulsivo, algo que me remeteu à algas em decomposição. A boca, agora não mais do que um orifício descarnado, expelia um fluxo constante de uma baba transparente e mal cheirosa, e logo acima, onde deveria existir o nariz, duas linhas finas e quase imperceptíveis sugavam com dificuldade o ar, produzindo aquele som aquoso e desesperado. Por fim, um par de olhos grandes, redondos e leitosos me observavam, sonolentos e amedrontados, partindo meu coração. Os cabelos sujos emoldurando a face deformada era a única pista de que ela pertencera a um ser vagamente humano.

-Olá! -eu disse, tentando parecer feliz em vê-la.

A garota apenas continuou a me observar com aqueles olhos de peixe, sem expressão.

-Ela não é de falar muito -comentou Jeremy, baixinho.- Bom, você precisa descansar, princesa. Já sabe, qualquer coisa estou logo ali ao lado, ok?

Um meneio leve com a cabeça indicou que ela sabia que o velho zelava por ela. Havia um universo de gratidão naquele pequeno gesto.

-Vamos. Deixe-a descansar mais um pouco.

E voltamos ao nosso canto, do outro lado da cela. Sentei com alívio no lugar de antes, apoiando as costas na parede rústica e irregular. Jeremy me seguiu, sentando-se ao meu lado.

-Por Deus, o que é que fizeram com aquela garota? -eu perguntei.

-Sei tanto quanto você, meu jovem. Mas tenho uma teoria. Acho que fazem experiências com a gente. Estamos aqui, presos, para sermos cobaias de algum tipo de experimento alienígena, ou sei lá diabos o que aquelas coisas são!

-Experiências... -repeti, tentando assimilar a nova informação.- Se somos todos experimentos, porque esta cela não está cheia de gente como Aya?

Jeremy deu de ombros.

-Porque ela deu errado, talvez.

-Isso não faz sentido.

-E algo aqui faz? -Ele soltou uma risada abafada.- Daniel, acho que estão querendo transformar humanos em seres como eles. É a única idéia que parece se encaixar. Acredito que Aya seja resistente ao que quer que estejam aplicando na gente, então a descartaram, mas acho que estão curiosos para ver quanto tempo ela dura até morrer.

-Isso é loucura! -Minha cabeça tentava encontrar algum sentido naquela situação toda. Não havia, obviamente.

-Se é...Ah!

Jeremy pareceu se lembrar de algo, e com um movimento rápido se debruçou novamente sobre o amontoado de panos de onde tirara o papel com comida rançosa. Retirou de lá algo familiar, que fez meu coração disparar.

Era a minha mochila de lona.

-Não! -exclamei, quase gritando. Peguei a mochila e a abracei como se abraça uma amiga que retorna de uma longa viagem.- Pensei que a tinha perdido na queda!

- Resolvi escondê-la até conhecê-lo melhor, mas não peguei nada, pode conferir. Eles não costumam se importar com nossos pertences. Não tem como sair dessa cela, de qualquer forma.

A mochila estava praticamente intacta, só um pouco úmida. Resistente e à prova d´água, eu a comprei fazia mais de dois anos, quando meu pai decidiu que explorar a Floresta Amazônica era sua nova obsessão. Fiquei surpreso em como ela resistiu bem às intempéries do clima tropical, e resolvi adotá-la como minha mochila oficial. Nunca colocava muita coisa nela - já que detesto carregar peso-, de forma que quando a abri ela continha apenas um casaco de moletom, um bloco de anotações com caneta, uma garrafa vazia, um canivete suíço (escondido no fundo falso) e um frasco de spray de pimenta. Sim, eu me sentia mais seguro explorando o mundo com um à mão.

-Posso te perguntar uma coisa? -disse Jeremy, com olhar cobiçoso.

-Pode.

-Você se importa de me dar o canivete?

Peguei o antigo canivete suíço do meu avô e entreguei a ele. Em seguida, coloquei o frasco de spray no bolso do meu jeans e sorri:

-Parece que agora somos um exército de uma dupla só!

E assim, demos início a nossa curta amizade.

Eu gostaria muito de poder me estender aqui nesta parte e contar tudo que aprendi com o velho Jeremy Ford durante a semana em que dividimos aquela cela no fundo do oceano. Contar como ele me ensinou a fazer os mais variados tipos de nós (principalmente o de marinheiro) utilizando o cadarço dos meus tênis; como jogar com precisão uma rede de pesca para recolher o maior número de peixes, ou me orientar através das brilhantes estrelas do Atlântico; e, claro, as canções que os pescadores entoam enquanto singram as ondas comemorando uma boa noite de pescaria. Contar, sobretudo, a maneira como ele me deu esperança de reencontrar meu pai, e o carinho quase fraternal que me fez despertar pela pequena garota. Mas não posso. Nosso tempo é curto. O que deve saber, apenas, é que sem ele, nem eu e nem Aya teríamos chegado tão longe.

Nosso lar improvisado durou exatas duas semanas.

Sei disso porque o relógio de bolso de Jeremy havia resistido ao naufrágio, e o permitia marcar com um risco na parede o fim de cada dia. Naquele dia fatídico, ele indicava 8 horas da manhã, e estávamos sentados em nossos lugares de sempre, discutindo pela enésima vez o destino nefasto que nos aguardava além daquelas paredes. Não fazia muito tempo, três tigelas de água e três porções daquela comida haviam sido deixadas em uma bandeja de pedra, através do vão que se abriu quando a parede de estalactites foi elevada alguns centímetros do chão, produzindo um ruído abafado de pedras em atrito. (Por poucos segundos, consegui ver a mão que deixava a bandeja. Era semelhante a de um humano, com a diferença de que humanos não possuem membranas natatórias entre os dedos e nem aquele tom azulado mortiço.) Eu apontava uma incongruência muito séria em uma teoria louca que Jeremy inventara, quando Aya começou a tossir.

De início, pensamos que ela havia se engasgado com a ração que a deixamos comendo. Corremos até ela, mas a comida restava intocada ao seu lado. Foi quando percebemos o sangue espesso que escorria de seus olhos.

-O que está havendo? -disse Jeremy, em pânico, pegando a menina no colo.- Aya, querida, responda, o que você está sentindo?

Tosse e mais tosse foi a resposta. O sangue escorria cada vez mais profusamente das grandes órbitas negras e empapavam a blusa de moletom que eu havia dado de presente a ela. A garota parecia tentar dizer alguma coisa, pela primeira vez em duas semanas, mas estava assustada e fraca demais para se expressar. Apertava com seus dedinhos flácidos e esverdeados o braço de Jeremy, tão forte que deixava sulcos descorados na pele dele.

-Ela está morrendo... -disse Jeremy, sem acreditar.- Precisamos de ajuda.

-Ajuda de quem? Estamos sós. A não ser que você se refira a...

Mas ele já desatara a gritar como um louco, esmurrando a parede vazada com a mão livre. A garota em seu colo não parava de tossir e sangrar.

-Ajudem, ajudem! Por favor! Tem alguém morrendo aqui! Ajudem!

Sua voz alta e desesperada reverberava pela cela formando camadas e camadas de som que se sobrepunham em coro. Fiquei imóvel, sem saber se me juntava a ele ou tentava fazê-lo parar com aquilo. Precisava agir.

-Jeremy, pare! -gritei, tocando seu ombro. Ele se virou para mim com olhos ensandecidos, arregalados. Os olhos de um homem cuja filha morria em seus braços.- Se acalme -eu prossegui, suavemente, e ele se calou; quando apertou Aya mais forte de encontro ao peito, lágrimas riscavam seu rosto desgastado devido aos anos de exposição ao sol das Bahamas.- Ela está sofrendo. Talvez o melhor seja ...deixá-la partir...

Ele me olhou indignado e ia protestar, mas ouvimos sons de passos atrás da parede.

-Afaste-se -disse Jeremy depressa, e recuamos.

O mecanismo da parede rugiu e rapidamente fê-la desaparecer no teto, revelando duas figuras altas e esguias a nos observar à beira do portal com curiosidade distante, olhos tão negros e gelados quanto as águas profundas que nos cercava. Jeremy havia me descrito aqueles seres malditos, mas foi só quando finalmente os vi frente a frente que compreendi o quanto nós, humanos, estávamos distantes de conhecer os segredos que habitam os recantos sombrios do nosso planeta.

-Quí a´vendo quí -bradou uma das figuras, com o sotaque mais estranho eu que já tinha ouvido. Era anasalado, como o de alguém que acabara de levar um forte soco no meio do nariz.

Jeremy deu um passo adiante, evidenciando a garota em seu colo.

-Temos uma menina aqui, ela está sangrando muito, precisamos de ajuda. Vocês fizeram isso com ela, precisam salvá-la.

Os dois humanóides se encararam e pareceram ponderar sobre algo, as cabeças absurdamente inchadas se agitando de um lado a outro. Depois do que pareceu uma eternidade, viraram-se para nós e emitiram um som que levei alguns segundos para compreender que era uma risada.

-Deixi agonizá! -guinchou a outra criatura, o escárnio evidente.

-Seus desgraçados! -disse Jeremy, e com a mão livre puxou o canivete de um de seus bolsos, avançando em direção às elas. Estava tão furioso que, cego, esqueceu que ainda segurava a pobre Aya.

O que se seguiu foi muito rápido: o tempo pareceu se estreitar diante de meus olhos. Em um segundo, Jeremy avançava brandindo o canivete como um leão da savana defendendo seu território. No outro, braços fortes me seguravam contra a parede com força arrebatadora, e eu observava um Jeremy surpreso ver sua menina ser retirada de seus braços sem qualquer cuidado e arremessada como um saco de farinha através da cela, descrevendo um arco perfeito no ar e atingindo o chão com um baque surdo, ali permanecendo, imóvel.

-Não! -ele gritou, desesperado. Com um movimento brusco, a figura que o segurava praguejou algo e começou a puxá-lo para fora, para longe de mim e de Aya. Então, empreendendo um esforço sobre humano, Jeremy Ford conseguiu virar a cabeça o suficiente para me lançar um último e significativo olhar antes que finalmente sucumbisse à loucura: -Cuida da minha menininha, Daniel!

E desapareceu pelo portal, seus gritos ficando cada vez mais distantes até sumirem, como se o velho pescador jamais houvesse existido.

Segundos depois, a cela estava novamente fechada, imersa em silêncio sepulcral. Eu observava a parede por onde meu amigo desaparecera, incapaz até mesmo de desmaiar. Estava em choque, e assim permaneci por muitos e muitos minutos, até lembrar de Aya. Corri até ela e um misto de alívio e tristeza tomaram conta do meu peito destroçado. Ela estava viva e o sangramento havia estancando, mas ainda agonizava.

Abracei-a como um irmão. Pela primeira vez desde que cheguei, desejei do fundo do coração que o que quer que tivesse de acontecer conosco, acontecesse logo, e desse fim a esse sofrimento.

Ficamos um bom tempo ali, juntos, até que o Destino, por fim, pareceu se compadecer de nossas pobres almas. Eu jamais poderia imaginar a figura cansada e impossível que irrompeu apressada pela mesmíssima parede pela qual Jeremy havia partido minutos atrás. Não havia como acreditar em meus olhos.

-Pai? -eu disse, pasmo.

-Meu garoto! -ele disse, e se abaixou para me dar um abraço rápido mas cheio de afeto.

-Meu Deus...Como...Como você me achou?

-Não foi tão difícil - afirmou, e me contou apressadamente a história de sua arriscada fuga quando criaturas entraram em sua cela para selecionar duas pessoas para levar. Aproveitando um momento de distração, esquivou-se furtivamente pela sombras e correu por muito tempo por infindáveis galerias de corredores, até que ouviu os gritos de um homem ao longe e resolveu investigar. Quando escutou meu nome, não teve escolha senão averiguar se o tal “Daniel” era mesmo eu.

-Isso que é instinto paterno -comentei, soltando o sorriso que nunca mais pensei que conseguiria.

-Vamos, temos de ser rápidos -atalhou ele. -Podem dar pela minha falta, ou perceberem a cela aberta, e isso não seria muito legal.

Nesse momento, Aya recomeçou a tossir.

-E quem é essa...hum... garota?

-Seu nome é Aya. Ela parece ser resistente ao que estão testando na gente, ou assim imagino. Ela está muito mal.

-Pois acho que terá de deixá-la aqui para irmos -ele disse, para minha surpresa.- Ela está tossindo muito, irá revelar nossa posição.

-Eu não posso! Prometi a Jeremy que cuidaria dela. Se ela tiver de ficar, também ficarei.

Com a aparência cansada de um veterano de guerra, olhou para trás e se levantou de supetão.

-Tá, tá, salvador da pátria. Pegue-a e vamos. Por sua conta e risco.

Coloquei minha mochila nas costas e saímos da cela; meu pai tornou a fechar a parede, acionando uma alavanca do lado de fora. Estávamos agora em um corredor escuro, iluminado apenas pelos filetes de luz azulada que escapavam pelas celas a se perder de vista em ambas as direções.

-Por aqui -indicou, e começamos a seguir rápida e silenciosamente pela esquerda. Eu segurava Aya o melhor que podia, colando seu rosto em meu ombro para que ela não emitisse som algum. Ela se contorcia de dor por debaixo do pano grosso.

E assim prosseguimos pelas próximas duas horas, obstinados mas cuidadosos, nos escondendo nas sombras profundas do corredor e torcendo para não toparmos com nenhuma criatura. Em algumas ocasiões, ouvíamos passos, parávamos e aguardávamos até que o som se afastasse. Uma ou duas vezes, vozes humanas romperam o silêncio, tentando-me a puxar a alavanca daquelas celas e libertar um a um os demais prisioneiros -o que não seria muito sensato e apenas causaria confusão e pânico. Ao fim da segunda hora, no entanto, senti que precisava interpelar meu pai.

-Pai -sussurrei, segurando-o pelo ombro.- Você sabe onde está indo?

-Mais ou menos. Lembro de ter visto um corredor diferente. Não deve estar longe. Haviam uns casulos nas paredes, como aqueles dos filmes de ficção científica. Talvez seja um meio de fuga.

E estávamos mesmo perto do corredor a que ele se referia. Minutos depois, parou bruscamente e quase colidimos.

-É aqui! Haviam algumas criaturas mexendo nos casulos antes, mas a área parece limpa agora. Vamos.

Tratava-se de um corredor bem mais amplo que o anterior, de teto altíssimo, banhado inteiramente pela etérea e onipresente luz azul. As paredes eram de rocha escura; de um lado, nuas, do outro, coalhada por inúmeros casulos de metal de portinholas abertas que jaziam estacionados em uma espécie de plataforma, cada um ligado a um tubo transparente que seguia em direção ao teto elevado a se perder de vista.

-Parece que é a nossa chance. Corra para aquele primeiro ali na frente.

Só que não seria tão fácil assim. Nunca é, não é mesmo? Se havíamos aprendido alguma coisa com essa aventura infernal, era que se algo tem a possibilidade de dar errado, quase certamente dará -havia até uma Lei para isso. Portanto, não fiquei inteiramente surpreso quando das duas extremidades do corredor, meia dúzia de criaturas surgiram e vieram em nossa direção, empunhando armas que pareciam tridentes. Elas eram rápidas, e antes que pudéssemos esboçar fuga já restávamos subjugados.

Sob o som vibrante de risadas, fomos conduzidos alegremente até uma porta lateral ao lado do último casulo e chutados para dentro. Meu pai perdeu o equilíbrio e ralou o cotovelo na queda.

-Ora, ora, se não são os fugitivos! -disse uma voz grave ao fundo da sala, não mais do que uma cela dez vezes maior, cheia de mesas e armários e aparelhos como os de um laboratório de ciências.- Cheguem mais perto, meus queridos, não tenham medo.

Um homem de jaleco sorria de cima de um palanque baixo, gesticulando para que nos aproximássemos. Duas criaturas encontravam-se de guarda a seu lado, impassíveis. Olhei para meu pai e ele deu de ombros, tão estupefato quanto eu por encontrar um ser humano de trajes médicos e modos tão cordiais.

Com passos incertos, avançamos pelo salão mantendo o olhar fixo no homem. Pela visão periférica, pude reparar que alguns dos armários à nossa volta continham grandes frascos com coisas que pareciam parte de seres vivos: braços deformados, pernas cobertas de escamas, cabeças. Por um momento de tirar o fôlego, pensei ter avistado um frasco grande e sem tampa cujo conteúdo era uma cabeça humana, boiando lentamente no líquido cor de caramelo, encimada por uma nuvem de cabelos grisalhos como os de... Segurei Aya mais perto de mim e apertei o passo.

-Olá, amigos -disse o homem, quando chegamos perto do palanque. As criaturas nos observavam com olhar desinteressado, ausente.

Nada respondemos. Com um sorrisinho no canto da boca, ele prosseguiu:

-Olha, devo parabenizá-los pela coragem e sagacidade que tiveram. É a primeira vez que uma cobaia consegue escapar de sua cela -e vieram logo três! Os tritões não tem muita paciência para apreciar uma situação como essa, infelizmente, mas vejo potencial em vocês. Consegui que abrandassem suas penas de fugitivos, o que significa que teremos diversão garantida para as próximas horas!

Sua voz era afetada, quase infantil. Seus olhos azuis irradiavam alegria, receptivos como os de um anfitrião que se regozija ao ver que os convidados especiais haviam chegado para a festa.

Estávamos petrificados e intimidados diante daquela figura tresloucada. Por sorte, meu pai resolveu cortar o silêncio:

-Tritões? -ele disse.

-Como? -disse o homem, deliciado com a iniciativa de contato.

-Vocês disse que eles são tritões. Como nas lendas.

-Ah, sim. Boa parte das lendas são reais, acredite, apenas são espertas o suficiente para evitar o contato humano caso tenham a mínima intenção de sobreviver. Os humanos são a praga, amigos!

-Ao que me parece, vocês é bem humano -eu disse, tentando soar firme.

-Por enquanto, sim -admitiu, entrelaçando casualmente as mãos à frente do corpo.- Mas logo todos nós seremos tritões. Muito em breve.

-Isso é loucura! -exclamamos, quase em uníssono.

-Não, não é. Loucura é acreditar que somente os humanos tem o direito de reinar soberanos o planeta. -Ele suspirou e sentou-se em algo semelhante a uma maca hospitalar. -Vocês conhecem a lenda de Atlântida, acredito. Uma civilização antiga e muito evoluída, uma verdadeira potência marítima, que segundo os contos de Platão desapareceu “em um único dia e noite de infortúnio”.- Ele soltou uma gargalhada debochada.- Infortúnio? Pesquisei por muitos anos sobre a Cidade Perdida, mergulhei mais fundo do que qualquer outro até finalmente conseguir contato com os tritões, e posso afirmar que a palavra “infortúnio” não cabe nessa história. Vocês querem a verdade? A verdade é que os tritões e os humanos coabitaram a terra nos tempos antigos. Mas fadados a uma reprodução difícil e demorada e com necessidades óbvias de se manterem perto do mar, nunca conseguiram ocupar mais do que algumas regiões costeiras e insulares- entre elas, Atlânticus, uma grande ilha no oceano Atlântico que funcionava como capital. A convivência durou por centenas e centenas de anos, não era harmoniosa, mas relativamente pacífica, até que os homens finalmente se deram conta do quanto os tritões eram mais inteligentes e arrojados, dotados de tecnologias e conhecimentos até hoje incomparáveis, e resolveram que seria uma boa idéia invadir suas cidades e expulsá-los de suas terras, relegando-os às profundezas do oceano, onde tiveram de reconstruir lentamente sua civilização. -Balançou a cabeça em reprovação.- Sabe, desde pequeno nunca entendi porque nos supervalorizamos tanto, quando obviamente não somos os animais mais fortes e merecedores do lugar ao sol. Fui crescendo e percebendo que o que fazíamos de melhor era destruir, assassinar e disseminar o ódio, e uma idéia foi se formando na minha mente -distante, mas por que impossível? A Era dos Homens precisa ter um fim.

O silêncio caiu denso como neblina. Aya se remexeu em meu colo e tossiu forte, expelindo um pouco de sangue escuro. Afastei um pouco o pano que encobria seu rosto para que ela respirasse melhor.

-Oh, a bastardinha -o homem disse, com asco. - Pensei que ela já tivesse morrido. Devo admitir que ela é durona: ou as cobaias morrem, ou se transformam ao receber o soro. Nunca houve um meio termo como ela. Um desperdício de ar, na minha opinião.

Senti uma fúria escaldante borbulhar no meu estômago. Cerrei os punhos.

-Você me parece uma boa alma, rapaz -disse o homem, com seu odioso sorriso.- Ficarei contente em permití-lo fazer parte deste processo histórico. Vamos começar a diversão?

Dando saltinhos animados, dirigiu-se até um dos armários e logo voltou com uma pequena estante metálica para tubos de ensaio, colocando-a em uma mesa perto da maca.

-Por favor -disse ele, dirigindo-se a seus dois lacaios com uma piscadela.

Com olhares de desprezo, agarraram nosso braços e nos arrastaram palanque acima. O homem parecia absorto avaliando os tubos de ensaio, cujo interior cintilava com um brilho esverdeado quase nuclear.

-Tragam o senhor até a maca e o amarrem, queridos. Bem firme.

-Não! - gritei, tentando me esquivar daquelas mãos fortes como garras. -Por favor! Não aplique isso nele!

O homem pareceu achar divertido.

-Eu não aplicarei nada.

-Não? -indaguei, confuso.

-Claro que não. Eu nunca lhe privaria dessa honra.

-Você é maluco! – eu disse, a fúria lambendo como labaredas cada parte do meu ser.

-Ou você prefere que eu mesmo o faça? Costumo não ter muito cuidado.-Pela primeira vez, pareceu sério.-Vamos, rapaz, pegue esta seringa aqui. Estou te dando a chance de experimentar em seu pai a epítome das realizações científicas dos tritões. Ele não irá morrer -se tudo der certo, claro. Pense que em breve os dois serão diferentes. Mais evoluídos, com certeza.

-Seu filho da puta! -bradava meu pai, cujos pés e mãos eram atados com tiras de couro.- Vou te matar!

Tentei me acalmar e pensar. Aquele não poderia ser o fim. Deveria ter algo que eu pudesse fazer. Se ao menos eu tivesse uma arma...

Foi quando lembrei com um sobressalto que o spray de pimenta ainda estava no bolso do meu jeans. Não era exatamente a arma ideal, devo admitir, mas poderia ser a última esperança.

-Acho que tem razão – eu disse, me rendendo.

-Acha mesmo? -Ele parecia levemente desconfiado da minha súbita mudança de comportamento.

-Sim. Nós, humanos, já desgraçamos demais este planeta para nosso próprio bem. Está na hora de darmos lugar a uma nova raça dominante. Fico feliz fazer parte dessa revolução.

-Você é sábio, rapaz. Será um dos líderes, não tenho dúvidas.

O rosto do homem era radiante como o sol. Retirou Aya de meus braços, colocou-a sem cuidado em um canto da mesa e me entregou a seringa, sorrindo de orelha a orelha.

Meu coração disparou, bombeando adrenalina para o resto do corpo. A hora derradeira havia chegado.

Com a mão livre, saquei o frasco de spray e disparei um jorro generoso em direção a seu rosto. Surpreso, tombou para trás e caiu de bunda no chão, esfregando vigorosamente os olhos, uivando de dor. As criaturas guincharam de surpresa, e este segundo de dúvida foi o bastante para que eu conseguisse borrifar seus olhos, cegando-os temporariamente.

Com velocidade de maratonista, corri até a maca, onde meu pai me observava, boquiaberto.

-Filho, você é do caralho!

Com pressa, tentei desatar as amarras que o prendiam. Estavam apertadas demais; sequer se moviam.

-Pai, tente forçá-las -eu disse, e ele me obedeceu, o rosto barbudo corando pelo esforço.

-Não consigo, estão muito apertadas.

Um som atrás de mim indicou que as criaturas recobravam a visão. Não pareciam muito contentes.

-Filho -ele disse, e eu parei. Aquele tom de voz. Ele o utilizara apenas uma vez, para contar que a vovó havia partido depois de uma longa batalha contra o câncer. - Escute, filho amado. Você precisa ir e tentar buscar ajuda. Estou muito orgulhoso de como lidou com a situação. Você tem o sangue dos Villegas correndo em suas veias, nunca se esqueça disso! E não se preocupe comigo; eu sempre dou o meu jeitinho, não é mesmo?

-Pai... -eu comecei, mas as lágrimas brotaram e mancharam seu casaco de aviador.

-Seja o homem que você é e busque ajuda. Avise a quem puder sobre o que estão fazendo aqui embaixo. Você não pode permitir que o plano desse lunático seja levado a termo.-Então, suavizou a expressão e abriu o sorriso arteiro que eu tanto amava: -Parece que superei a Transilvânia com essa, né?

-Com certeza -eu disse, rindo. Sequei as lágrimas e plantei um beijo em sua testa.- Farei o que puder. E voltarei para resgatá-lo.

-Estarei esperando. -Ele parecia tão orgulhoso quanto no dia em que me formei na faculdade.

Deixando meu coração naquela sala, peguei Aya e irrompi novamente pelo corredor coalhado de casulos. Ouvi vozes furiosas às minhas costas, mas fixei o olhar no casulo mais próximo e entrei.

Estava escuro. Um único botão vermelho e brilhante se destacava no que parecia um painel de comando.

-Você vai se arrepender muito disso, seu merdinha! -gritou o homem, ainda esfregando os olhos.- Existem mais gente apoiando a causa, você não tem idéia. No Vaticano, na Casa Branca. É só questão de tempo!

Ergui o dedo médio para ele e apertei o botão.

Então subimos, subimos e subimos, expelidos como uma bala de revólver em direção à superfície.

Sinceramente, não posso afirmar quanto tempo levou até que a luz do sol invadisse o casulo. O que sei com exatidão é que, tão logo atingimos a superfície e passamos a boiar sem rumo, os dias se arrastando quentes e vagarosos sem qualquer sinal de embarcação ou terra firme á vista, e principalmente sem comida ou água potável, precisei considerar uma atitude desesperada. Espero que não me julgue: eu não poderia permitir que morrêssemos, juntamente com o segredo do Triângulo das Bermudas. Não depois de tudo.

Pensei muito e tracei um plano. Se você estiver lendo isso, significa que ele deu certo. Deixarei em anexo uma pequena carta com uma localização. Espero que a leia e siga as instruções. A raça humana depende disso.

Enquanto escrevo estas últimas considerações, pondero novamente se é certo o que estou para fazer. Minha barriga ronca, minha boca está seca. Aya quase não se mexe mais. Olho a seringa brilhante em cima do painel, ao lado do botão vermelho, e imagino o que vai acontecer, no que irei me transformar.

As palavras que o velho Jeremy me disse assim que cheguei naquela maldita cela soam claras como o céu azul acima de nossas cabeças: “Estamos no inferno!”.

É, ele estava certo.

E não se sai do inferno sem estar disposto a arcar com as consequências.

***

O homem estacionou o jipe fora da estrada, atrás de um conjunto verdejante de sabicus. Bebeu um pouco de água do cantil, enxugou o suor da testa e saiu para o ar abafado da mata.

Com a mão em concha para que o sol não ofuscasse a visão, admirou por um momento a entrada da gruta -uma bocarra escura e coberta de vegetação que descia até a entranhas da terra. Pela última vez, releu as instruções em letras garranchosas: "Deixei a garota na primeira caverna a contar da costa. Peço, por favor, que a leve em segurança até as autoridades competentes e cuide de seus ferimentos. Ela está fraca, mas é uma guerreira. Acredito que seu sangue contenha algo que possa ser útil no futuro.". Então, amassou-a e arremessou-a em um arbusto próximo.

Pegou uma lanterna portátil no porta malas e, determinado, adentrou a caverna sombria. Uma luz forte se destacava bem ao fundo na escuridão, e ele rumou para lá até chegar a um local que só podia ser um pedaço do Paraíso.

Era uma câmara pedregosa de paredes marrom claro, inteiramente iluminada pelo sol que adentrava através de uma clarabóia natural. De algumas partes do teto, incontáveis estalactites pendiam gotejantes, apontando qual dedos tortos para a deslumbrante piscina natural logo abaixo, que de um azul profundo e convidativo, gradualmente se transformava no mais impenetrável negro até desaparecer nas misteriosas galerias que a conectava ao mar.

Ficaria admirando aquele oásis por muito tempo, caso não tivesse ouvido um ruído à beira da água. Parecia uma tosse abafada. Com dificuldade, avistou uma trouxinha de pano quase camuflada nas rochas.

Lembrando-se do que deveria fazer, dirigiu-se até ela.

A garota monstruosa estava acordada, e parecia surpresa mas feliz em vê-lo. Ao seu lado, algumas espinhas de peixe e uma grande vasilha contendo água doce.

-Olá, Aya -disse o homem.

A garota abriu um pequeno sorriso e sentou-se.

-Eu li a carta que seu amigo escreveu. Parece que ele a guardou dentro de uma garrafa e a jogou em um navio da guarda costeira. Me parece um rapaz bastante inteligente. Recebi a visita do meu superior hoje pela manhã, com instruções de vir vê-la.

Abrindo os bracinhos flácidos, ela fez sinal para que ele a pegasse no colo.

-Sinto muito -disse, ignorando-a e agachando a seu lado.- Sabe, eu não me orgulho do que precisarei fazer. Sei que não poderá entender, naturalmente, mas é a minha missão e não posso contestá-la. Mais do que isso, é a minha chance de provar lealdade à Nova Ordem. O mundo está para mudar. E quero estar no topo quando esse dia chegar.

Com leveza, beijou-a na testa e sacou uma Glock do coldre em sua calça. Colocou o cano na têmpora da garota, que o observava com o mais puro terror.

-Você já passou por um bocado, minha pequena. Merece descansar.

Destravou a arma e puxou o gatilho.

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Tema: Triângulo das Bermudas.

Recadinho: Oi, gente! Só passei aqui pra dizer que estou muito feliz de participar do meu segundo Desafio do Terror. Posso dizer com orgulho que o Desafio me ensinou muito da última vez e me atiçou a produzir mais e tentar me superar a cada texto. Como podem ver, o conto ficou um pouco longo, kkkk. Bem, levando em consideração os conselhos que recebi para não ligar para a extensão e focar na qualidade, decidi dessa vez tentar escrever uma história completa, com todos o detalhes que acredito que mereciam ser ditos. Levei uns bons dias para finalizá-la, mas foi tão divertido o processo que até bolei alguns finais alternativos. Espero que gostem dela e comentem, comentem bastante, porque adoro essa relação com outros escritores que o Desafio proporciona. Um beijo a todos.

Felipe Lundgreen
Enviado por Felipe Lundgreen em 14/07/2015
Reeditado em 30/07/2015
Código do texto: T5310452
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