A Maldição Vive

Há muito os homens tinham perdido a coragem. O mundo estava morrendo, o sangue era algo comum, a cor escarlate era a única tonalidade que se podia ver naquela palheta sem luz que era o mundo.

A Maldição lavrava pouco a pouco aquela terra. Diziam que vinha a noite, quieta e que sussurrava palavras dignas dos mais belos poemas de Dante em seu ouvido antes de agir. Seus passos não produziam som, o desembainhar de sua adaga era silencioso como a mente de um tolo e seu dizer reconfortante era tão suave como agridoce. O toque da lâmina de prata na garganta da vítima também era rápido e indolor, e o afogamento em seu tinto interior era a única possibilidade que a Maldição afirmava de se viver.

Ninguém nunca escapou dela. Os homens que afirmavam terem sobrevivido, gabando-se de coisas que não haviam realmente feito, eram logo em seguida visitados pelo vulto e sua chama de vida extinguia-se em um passo.

Não existia se quer alguém que pudesse falar com certeza com o que se parecia a Maldição, exceto os mortos; mas do mesmo jeito que entre sombras não existe luz, entre os mortos, não existem testemunhas. E os boatos espalhavam-se. “Era uma mulher, uma louca sanguinária e vingativa, que carregava uma faca de cozinha envenenada pela sua cólera interior”; diziam. “Era um homem, um alto e com pele de ébano, que havia sido traído pela esposa e agora matava todas as mulheres que lhe lembrassem sua antiga companheira e todos os homens que pudessem parecer com o traidor”; mais alguns comentavam. “Era o prefeito”; bradavam. “Era o coveiro”; os boatos passavam. Era o demônio que se fez carne; essa era a preferida deles.

E os assassinatos continuavam. A pequena cidade no sul do condado nunca imaginaria que fosse reduzida pouco a pouco, até quase nada restar. De três mil habitantes antes do assassino chegar, agora haviam somente dois mil e quinhentos – claro que muitos haviam morrido de outras formas, mas a preferida dos boatos era de que “ele havia sido o escolhido” –. Escolhido, como se aquilo fosse algo bom.

Mas o que era certo era que a Maldição (como assim chamavam os habitantes da cidade) era perspicaz. Matava, deixava o sangue rolar, expunha o máximo que podia da garganta da vítima; mas nunca deixava se quer outras marcas. Não havia pegadas, manchas de terra, sinais de arrombamento, nada. Tais coisas, inclusive, reforçaram as conversas sobre o demônio. “Ele não anda, ele paira no ar”, “Ele não vive, ele sobrevive de vida”, “Ele não é humano, é algo que mata pelo gosto da morte”.

E tudo isso era como a pedra de Sísifo para o tenente Waters. Ele, um velho de cinquenta anos, que passara e dedicara toda a sua vida para viver entre justiça e lei, agora se encontrava diante de um caso não solucionável, um daqueles que só lhe resta levantar a cabeça e pedir aos anjos para que parassem.

Mas não parou. Toda noite, um assassinato novo aparecia. A mulher do padeiro, o filho moço do açougueiro, o coroinha preferido do padre. E eram pessoas totalmente diferentes, vivendo em mundos diferentes, sobre visões diferentes. E isso era como um choque para Waters, saber que não pararia e que nada ele podia fazer. Mais esforço do que pôs Hércules em seus doze trabalhos, Waters punha para encontrar uma solução, uma pista, algo para que pudesse confortar os esfaqueados corações dos pais e parentes das vítimas. E tão rápido quanto o cemitério se enchia, Waters soube que não haveria saída.

O prefeito havia sido a última vítima, então trataram imediatamente de formar uma assembleia para decidir quem os haveria de liderar. Em tempos difíceis, não há escolhas, há imposições. Em tempos difíceis, o povo tem que ser forte, porque seu soberano pode não ser.

Escolheram um comendador nobre de uma alta família e a ele deram o trabalho de acabar com tudo aquilo. Mas pobre homem. O que poderia ele fazer contra uma sombra?

Tudo veio de Waters.

Tentava comunicar o comendador agora prefeito da cidade havia três dias, mas nunca conseguia. “Marque uma visita”, “Volte mais tarde”, “Ele agora saiu”, “Não tem hora para voltar”. Ele nunca estava disponível. Nunca até que o novo prefeito notou que não se derrota um inimigo mais poderoso que você pela força, mas sim pela sagacidade; como fizeram os gregos para com os troianos. Sua filha foi uma das vítimas.

Dizem que ficou inconsolável por dias e visitava três vezes cada virada de lua sua amada garota, que fora levada pela Maldição. Depois disso, o luto veio. Isso era bom, porque o luto já é o começo da aceitação. Porém, parece que veio também o desejo de revanche, porque ele começou a receber todos que tinham um plano para capturar o demônio feito carne.

E em uma manhã, chegou a vez do tenente da cidade. Eles discutiram durante quase toda a manhã, mas no fim, chegaram a um consenso.

Armaram uma armadilha, uma genial. Um homem da prefeitura foi usado como isca posta em todos os bares, a imitar estar bêbado e bradar que mataria a Maldição. Ele gritava também onde morava, bem longe, vários quilômetros fora da cidade. E esperaram então, o crepúsculo. Quando o relógio da prefeitura soou uma badalada para uma hora da madrugada sombria – a hora em que normalmente ocorriam os assassinatos –, a ordem foi dada. O assassino de certeza estaria na casa bem longe da cidade, então quando o primeiro badalar do sino da igreja veio, todos os altos como uma torre e pesados como elefantes portões da comunidade, fossem estes norte, sul, leste ou oeste, foram fechados, trancados, com as fechaduras que há anos não eram utilizadas gritando de protesto.

Levou dez minutos, mas no fim, tudo estava quieto novamente pelas ruas. E estavam a salvo.

Quanto ao homem que se fingira de bêbado, esse não poderia estar mais feliz. Ele não morava realmente na casa abandonada a léguas dos portões, mas sim em uma casa do lado da própria prefeitura mesmo, uma nova e recém-feita que ninguém imaginava ser o dono. E então tudo estava certo. A Maldição estava fora de suas paredes, os homens estavam a salvo e a cidade voltaria a prosperar. Só precisavam que os corvos terminassem de serem treinados, e aí teriam mensageiros para alertar centros vizinhos pedindo ajuda e logo reabriram os portões. Provisões tinham mais do que o suficiente.

Mas o desejo dos homens por saber que tudo está bem é tão grande que as vezes ofusca sua própria visão da realidade.

O prefeito estava feliz e despediu-se de Waters à porta de seu gabinete, dizendo que o dia seguinte lhe traria um presente. Deixou-o, com um sorriso no rosto e a sensação de dever cumprido, sobre a luz titubeante de velas e archotes, e o calor intenso do fogo. Precisava beber.

Não era um homem que gostasse muito de álcool, mas entre cigarros e bebidas para lhe acalmar o juízo, ele preferia as bebidas, as fortes com gostos saturados. Porém, passaria antes pela casa nova de seu amigo e o convidaria com cavalheirismo para irem tomar uma dose em qualquer taverna perto. O homem merecia aquilo tanto quanto ele.

Porém, quando chegou lá, não era só a rua que parecia mais sombria, mas sim seu coração também.

Waters nunca fora um homem de medos, mas teve naquele dia. Teve no instante em que entrou e viu, quieto como águas paradas e afogado como um marinheiro tolo que se desprende da amurada, o homem, o corajoso que bradara que podia matar a Maldição. E ele estava quieto, tão silencioso. E seus olhos eram vidros, tão secos. E seu corpo era inútil, tão sem vida.

Apavorado pela visão que tinha na sua frente, virou-se para correr, mas a porta estava fechada. Como? Não a havia trancado quando entrara e não escutou nenhum som. Começou a rezar silenciosamente e os barulhos de raspar de metal contra madeira vieram a sua cabeça. O medo apoderou-se dos seus sentidos, e ele olhava para todos os lados, em desespero. Seu instinto de tenente há muito havia se exacerbado, desde quando entrara titubeante pela porta. E olhava e olhava até que a pequena vela da cabeceira se apagou.

E ele ficou imóvel. Não se atreveu a mexer um centímetro se quer, desejando espernear de aversão, mas permanecer parado de medo. E tudo se completava e se aniquilava, e ele não conseguia mexer-se, mover-se, falar, pensar, respirar. Estava morrendo pela dura tensão, e sentia presenças ao seu lado.

Seus olhos nada viam.

Seu corpo nada sentia.

Sua vida nada valia.

E foi então que uma luz veio de trás de si, uma parecida com aquelas de quando se acende um facho de uma lanterna furta-fogo. Não se mexeu para ver de onde vinha, porque sabia que o objetivo daquela luz era fazer-lhe ver o que havia escrito na parede.

A Maldição agira diferente uma única vez. Ela havia deixado uma mensagem, uma com uma tinta que variava do mais intenso escarlate para o mais profundo carmesim. E dizia: “São todos mentirosos e ladrões, falsos e enganadores, monstros e pecadores. Então por que há vocês de dizerem que sou o mal?”.

Waters engoliu em seco e criando a selvática coragem do desespero, virou-se para encarar o portador da lanterna. Era algo, alguém. Parecia ter forma humana, mas não via corpo, não via braços ou pernas. Não via nada, só escuridão, quando se tenta ver algo de sólido na fumaça. E era o que seu corpo era: fumaça segurando uma capa. E havia uma faca em sua mão.

A última coisa que o tenente pensou foi na ironia: estava se afogando em um mar que ele próprio já nadara. Já nadara em sangue mil vezes e mais uma. E agora estava tendo sua milésima segunda. Está foi a última coisa. De tudo. De todos. Do mundo. Mas seria mesmo? Não haveria sido escutar lábios invisíveis murmurarem em uma voz grotesca “morte”?

Artur Lima
Enviado por Artur Lima em 17/07/2015
Reeditado em 18/07/2015
Código do texto: T5314146
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