TUDO É RELATIVAMENTE COMPREENSÍVEL - Dtrl 23 #luto#

No mundo existem mistérios que talvez até mesmo Deus desconheça. Na vastidão do cosmos, pelos meandros da mente, no acaso dos fatos as coisas mudam e se transformam constantemente. É impossível explicar as nuances do que se esvai como a brisa da manhã. Vida, tu és tão passageira.

Chico, não conhecia o mundo, se conhecesse não tentaria explica-lo. Muito cedo foi arrancado do seu lar, nem se despediu dos pais, irmãos nunca soube se tinha. Amigos, ali era impossível.

Era ele cativo.

Mesmo quando se esforçava tentando reviver suas mais remotas lembranças, eram apenas aqueles aposentos que surgiam em sua mente.

Numa tarde em que seus pais saíram em busca de alimentos, ele ouviu sons estranhos do lado de fora. Não sairia, sabia ser seguro seu refugio, não poderiam nunca invadir sua casa.

Estava errado.

Sentiu a escuridão envolve-lo, tentou resistir àquela força descomunal que o abraçava. Não pode precisar quanto tempo tentou lutar, desfaleceu vencido pelo esforço.

Quando acordou, seus olhos demoraram a se acostumar com a luz. Seu mundinho estava mudado. Longe de seu lar, se encontrava perdido e desamparado. Seu quarto era uma jaula no alto de uma muralha extremamente branca como tudo naquele gigantesco salão. Aturdido não sabia o que pensar, era tudo tão estranho.

Alguns dias se passaram, as coisas começavam a parecer normais para alguém que nunca havia saído de casa, ali certamente seria o resto do mundo. Até ser um prisioneiro parecia estar certo.

Porém ninguém nasceu para ser cativo, seu espirito livre queria mais, sabia que além daquelas barras de metal devia haver um lugar melhor.

O tempo passou, a infância se perdeu. Quando adulto sentiu solidão, mas não estava só, por companhia haviam as bizarras criaturas que o privaram do convívio daqueles a quem amava.

Eles existiam. Sim, seu pai já os tinha visto. Eram vorazes e destrutivos, alguns acreditavam ser apenas criaturas inventadas para se explicar o inexplicável. Eram piores do que seu pai havia dito.

Eram criaturas enormes, gigantes comparados a sua estatura. De porte ereto seus membros superiores pareciam serpentes prestes a abocanhar uma presa, os sons que emitiam eram como trovões em uma tempestade. Não permaneciam por muito tempo, entravam e saiam, deviam não gostar muito daquele local. Muitas vezes se dirigiam a ele, serviam-lhe fartamente água e comida, quem os visse poderia pensar que tinham corações. Por algumas vezes lhe dirigiam a palavra, faziam brincadeiras, emitiam sons estranhos e incompreensíveis, Chico esforçava-se para entender, com o tempo passou até a repetir alguns deles.

A solidão, a prisão, quantos horrores alguém pode suportar? Ele deveria ser vítima de alguma experiência sinistra, era obrigado por dias a fio a testemunhar rituais macabros, sua cabeça constantemente bombardeada com terrores capazes de derrubar o mais corajoso habitante da terra.

As grotescas criaturas de pele branca, traziam sobre macas indivíduos semelhante à sua espécie, porém estes chegavam já sem vida, possuíam pele de varias outras tonalidades. Eram colocados sobre uma mesa onde tinham a tal pele removida, alguns possuíam a carne de um amarelo pálido outros bem mais escura. Uma grande luz envolvia seus corpos, de sua prisão ele podia assistir a tudo. Instrumentos eram usados para cortar e abrir alguns dos corpos, órgãos eram retirados e ensacados, alguns eram substituídos por uma espécie de serragem, pouco sangue saia escorrendo para algo que deveria ser um esgoto. Feito isso, juntava tudo costurando e finalmente vestindo a criatura com uma pele negra, prenúncio de morte.

A visão daqueles seres medonhos atormentava o juízo do prisioneiro, era uma forma extremamente sádica de tortura, mas o que desejavam afinal? Qual o motivo de tudo aquilo?

Já cansado de sofrer, cada dia mais angustiado percebia nas faces daquelas criaturas sem vida uma profunda tristeza, enquanto seus corpos eram vilipendiados no fundo morto de seus olhos transpareciam um pedido de socorro.

Em seu ouvido sussurros pediam clemência, vozes se repetiam de forma aleatória, o medo tomava conta de sua alma. Gritos aterrorizantes explodiam em sua cabeça.

- Vá embora! Fuja! Vão te matar! Socorro! Aproveite a vida! A morte não é o fim...

Milhões de vozes ardiam em sua mente. Seu cabeça doía como se algo crescesse ali dentro, seus olhos vermelhos de noites sem dormir. O cérebro prestes a explodir. Nos poucos momentos de lucidez a morte era seu único querer, mas cruel, ela não vem para aqueles que necessitam.

Noites e dias, os sonhos tornavam-se pesadelos. A tristeza era como uma coroa de mil espinhos. E eles lá dentro, comandando seus desejos, se enraizando tomando conta de sua alma. Não podia mais resistir. Suas imagens assombravam seu despertar, seus rostos sem vida estavam em toda parte. Mesmo na sala vazia eles estavam sempre presentes. Eles nunca partiam...

Numa tentativa de abreviar seu sofrer, decidiu não se alimentar. As vozes insistiam:

-Mantenha-se vivo.

Algo dentro dele tomava o controle, o compelia a viver. Quando mais forte a cabeça doía, ela a batia contra as grades, por vezes o sangue fluía manchando sua face. A dor física aplaca um pouco a dor espiritual.

Depois de tanto sofrer, as esperanças já não existiam, seus dias seriam findados naquela imensidão de desespero, confinado como um paralitico era a testemunha de tanta abominação.

Mais tortura. Mais sangue. Mais desespero e finalmente a hora de sua porção diária de alimento. Pobre coitado já nem se importava, poderiam até deixa-lo aos cuidados da morte. Eis que no alto uma janela estava aberta, eis que ali renovavam as possibilidades.

No peito um coração dilacerado, na mente demônios a sussurrar:

- Ela esta aberta. Eles vão te destruir! Você consegue, o elo é infinito! Parta! Aqui, você não deve ficar...

Eram apenas mais tormentos, era o desespero.

Sem esperanças jogou-se contra a porta, seu desejo era ter seus miolos espatifados contra o metal. Queria apenas ter a vida escoando pelo limiar do tempo.

Era tudo verdade. Ela estava aberta. Era a liberdade. O que afinal seria esta tal de liberdade? O que fazer quando seu mundo era apenas a grande sala branca? Possibilidades...

Um turbilhão de vozes açoitavam seu querer. Dentro dele, os demônios exigiam uma ação. A sua frente, sombras de criaturas gigantes apontavam a saída.

Seus olhos miúdos brilharam ao ver pela primeira vez o brilho do sol. Do lado de fora o vento trazia o suave odor das flores de primavera. Numa última olhada para o cárcere viu enormes criaturas sorridentes.

Ele sabia, estava tudo na sua cabeça. Num voo desajeitado ganhou a sonhada liberdade.

*****************************************************

Durante anos o pobre papagaio era a única coisa que dava um pouco de vida àquela triste casa funerária.

Em homenagem aos que deixam saudades!

Aos meus tios que perdi

A Paulo Moreno de quem roubei um pouco de sua arte...

Tema: Pessoas desaparecida e animais possuídos.

Gilson Raimundo
Enviado por Gilson Raimundo em 17/07/2015
Reeditado em 17/07/2015
Código do texto: T5314269
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.