Narciso, de corpo e alma - DTRL23 - #luto#
"Em homenagem ao autor Paulo Moreno"
Não há buzinas na pista congestionada, mas sim uma carreata fúnebre. Estou no interior do carro funerário. Só eu e o corpo. O cemitério onde minha família está enterrada fica distante, e os sons que abafam meus soluços são de motores roncando acordados.
É difícil compreender. Ok, eu sei que poderia lhe narrar esse fato no passado, afinal já aconteceu, mas um review desse momento sendo no presente me causa calores maiores. Absolva-me pela insolência.
Pausa. Um leve abalo no caixão, culpa do solavanco. Quem sabe tenha sido um quebra-molas. Não vejo nada, nem o motorista pode me ver. Ouço apenas o som do Metallica ao fundo, tocando na cabine e adentrando pelas gretas. Reconheço a música invasora; é Enter Sandman. Olho pela janela lateral, tudo continua a acontecer naturalmente do lado de fora, nada altera para o restante do mundo. O vidro está tão limpo, até mesmo imune de meu reflexo. Sinto um vazio anormal.
Minhas mãos involuntariamente estão sobre o caixão. Acaricio a superfície lisa e constato que a pequena portinhola que oculta o rosto está presa por apenas dois parafusos pequeninos. Não consigo perceber nem mesmo esse contato, não posso entender o que sinto e o que não sinto. Está tudo meio indigesto.
Amo-o desde que me entendo por gente. Arrisco girar os parafusos, tirá-los, me concentro. Quase é possível que de mim ainda despontem lágrimas. Então entendo que é preciso de algo mais. Fecho os olhos, e uma faísca de força faz com que os parafusos girem, subindo levemente, e como se nem precisasse tocá-los ambos dançam feito bailarinas na ponta dos pés, rodopiando até caírem zonzos sobre a madeira e deslizarem em semicírculos saltando depois em direção ao assoalho.
Movo a portinhola. Peguei o jeito. Os olhos estão fechados, mas o azul deles é inesquecível. Sempre foi tão belo. As curvas, as linhas, os volumes, lábios e dentes, e o cabelo, como é sedoso. Passei horas em frente ao espelho à penteá-los. Pétalas brancas escondem a perfeição daquilo que me dava mais prazer. Tenho tanta vontade de possuí-lo e agora talvez isso seja possível. Estar dentro dele sempre foi revigorante. Como eu sentia o toque de suas mãos. Agora ele está frio, mas tão duro.
Deixe-me tirar essas bolinhas de algodão de seu nariz. Isso. Pronto. As costas de minhas mãos varrem as pétalas e encontram os botões do terno. Desabotoo, um por um. A mão entra por debaixo do tecido e encontra os pelos. Arranco-lhe a gravata, desfazendo o nó com selvageria. Queria poder sentir o cheiro dele, me esforço, mas sem sucesso. Parece impossível e com essa sentença resta-me um esforço para me lembrar.
Abro o terno e vejo o corpo escultural, a barriga de tanquinho, os peitos definidos, e o furinho no queixo. Beijo cada centímetro frio de carne. Minhas mãos descem até o órgão rijo, e o seguro. Consigo sentir a firmeza dele. Foi assim que findou; de pau duro. Desculpe o palavreado, mas procurei em meu dicionário algo mais leve, menos disfemista ou chulo, no entanto sei que você com seu vasto conhecimento consegue me compreender. Eu posso apalpá-lo pela primeira vez sem que seja eu mesmo.
Agora sim, senti algo. É um – Humm – um cheiro. É o perfume dele. O suor. Não sei como, mas estou sentindo. Abro o zíper da calça social, desço-a até os joelhos empurrando mais pétalas, quando outras destas sobram minguadas sobre sua pele cianótica. Beijo-o, meu nariz passa a centímetros de sua pequena cabeça. Suspiraria se pudesse. Minha boca toca o joelho e depois sobe em toques pretensiosos.
Perdoem-me se estou sendo muito detalhista, mas é que me refresca a memória esses resquícios de sensações. Minhas mãos invadem o sexo, massageiam, cerro os punhos, uma mão sobre a outra, e através da outra, e me divirto, indo e voltando, descendo e subindo. E, voltando.
Não há resposta, não, senão as minhas. Que frenesi. Eu continuo, e o corpo sacode como se estivesse vivo. Ouço as batidas ocas do caixão. O cheiro de cravo me incendeia. Estou muito rápido, intenso. O apoio para caixão bate contra o piso da Kombi. O som me remete a tamancos de uma meretriz. Eu continuo. Continuo. Continuo e o carro para, e a música silencia.
A porta se abre. Escuto um grito e reconheço a voz de minha mãe. Ela está de pé ao lado do motorista, olhando para mim. Ambos ficam boquiabertos e estáticos.
O que ela vê é um caixão violado, pétalas dançam no ar, e o corpo de seu filho com as roupas arriadas, e um pênis ereto. A pele deste se move pulsante, como se fosse vivo. A cabeça ora se escondendo, ora se revelando, vindo e indo de maneira bizarra.
Não sei o que faço. Ela desmaia, mas não me vê antes disso. O Motorista permanece parado, com a boca aberta e as mãos trêmulas.
Que se dane. Eu continuo, não antes de colocar a música para tocar novamente no volume máximo, enquanto o motorista foge aos gritos.
Tema: Necrofilia
Renato Augusto Chapéu