O Corvo e o Labirinto

A luz da lanterna furta-fogo era muito pouca para que se pudesse acompanhar as sinuosidades do labirinto. Não saberia dizer se aquilo era realmente um, ou somente um corredor muito grande, que abria de metro em metro para um poço de escuridão adiante; mas como eu não tinha fios ou o que quer que fosse para marcar o caminho, segui somente em frente. Sorte que esse caminho era grande, muito extenso.

O corvo me acompanhava para onde eu ia. Não estava todo momento comigo, mas podia sentir seus olhos mortos me acompanhando na penumbra dos entroncamentos; dando olhadelas furtivas para a alma viva que caminhava entre aquelas paredes velhas de Deus sabia quantos anos, cobertas por relva, e grossas como uma casa. Eu havia tido um farnel no começo de tudo aquilo, mas a fome já me atingira de uma forma tão insuportável dois dias atrás que comi os restos que havia na cesta.

Acordara tinha uma semana, eu acho. Mas não saberia dizer. Aquelas paredes eram enlouquecedoras, e levavam facilmente embora as consciências mais fracas; mas eu não era um homem fraco. Era forte, corajoso e destemido; e não estou supervalorizando minhas qualidades, isto é somente verdade. Se não ainda perdi o senso de real foi porque meu ser é persistente, e não seriam aquelas paredes que me levariam a loucura.

Eu não sabia onde estava, só sei que havia acordado em um amplo local sem teto, mas cercado por quatro paredes, cada uma com uma saída. Ao meu lado, havia a furta-fogo, um pequeno farnel com um odre de água, e o corvo. A ave era grande e maior que todos os outros que já tinha visto, com penas oleadas e olhos cobertos por um véu macabro. Ele levantou voo, grasnando e esperneando, cada som como uma facada certeira naquele silêncio.

Andava muito pouco todo dia, porque estava cansado e debilitado. Mas eu ainda era forte! Uma pessoa comum teria desistido há muito, se enfiado em algum buraco desse lugar e se perdido até que o corpo clamasse sua vida na inanição. Eu tinha os parafusos no lugar e me mantinha seguindo reto.

Não me lembrava de nada. Quando tentava recordar, somente havia um bloqueio na minha cabeça que estragava qualquer possibilidade lembranças. Meu nome não importava, o que havia feito para estar ali ou se quer como viera parar entre tais confusões de pedras velhas. O que importava era o caminho. Ali, o sol não nascia. O meu tempo era resumido em segundos contados por passos. A minha luz era resumida na furta-fogo que consumia pouco a pouco. Meu lugar não era entre o tempo normal, eu levitava entre dias e noites. Meu lugar não era na luz, era atrás da sombra, onde nem se existe um ou outro.

Toda a noite ele estava lá, quando eu me deitava para descansar. Não sei o que era, somente entendia que estava lá. Gostava de pensar que era como uma sentinela a me guardar, mas depois remexia a cabeça e me livrava da ideia. Não precisava de sentinela algum.

Os próximos dias começaram a ser tensos. Sem nenhuma comida e com a água perigosamente escassa, tinha que começar a pensar em soluções. Sabia muito pouco sobre sobrevivência sem comida até a inanição completa, mas se jejuando por quatro dias já tinha ficado com o desejo voraz de devorar tudo no farnel – o que fiz –, então imagino que duas ou três semanas – que era o que eu imaginava ser possível sobreviver – eu entraria em crise pesada.

Não, não entraria. Tinha que deixar tais pensamentos para trás. Eu tinha um caminho a seguir, uma luz para me orientar, um tempo para contar. Não entraria em crise. Era forte, e pessoas fortes não vão tão fundo quanto à mão pode cavar, mas sim buscam criar buracos de qualquer jeito para se chegar até o outro lado do mundo.

Dois dias depois, minha cabeça estourava de dor, mas mesmo assim eu seguia em frente. Não daria prazer a ninguém de me ver cair e desistir. E o corvo lá, em algum lugar, me observando, com seus olhos mortos. No terceiro dia, caí de cansaço, mas levantei-me dificilmente e continuei andando. O corvo grasnou em algum lugar. No quarto dia, minha furta-fogo apagara-se e eu estava na escuridão, envolto na mais forte penumbra, que somente as luzes escondidas por nuvens cinzentas acima da minha cabeça podiam me fazer ver o caminho.

No sexto dia depois da perda de tudo no farnel, já estava totalmente cansado e sem fôlego. Onde aquilo daria? Quanto estaria andando em um dia? Nenhum corredor no mundo podia ser tão grande. Eu estava começando a pensar que uma pessoa resistente e perfeita como eu era estava chegando ao seu limite de aceitação.

Porém, no sétimo dia, minha persistência dá frutos, porque encontro, enquanto passo por mais um entroncamento uma mensagem divina. Quase caí por cima dela, na verdade. Era uma placa chumbada no chão e dizia: “Para se chegar na luz, tem de se passar pela sombra; para se andar reto, deve-se passar pelas curvas”. Eu olhei aquilo em puro êxtase, conseguindo sorrir pela minha força de conseguir ter chegado até ali. Então era óbvio. Sem mais corredor, agora só entroncamentos.

Virei-me no primeiro e segui, enfiando-me nos galhos daquele lugar. O corvo sobrevoou minha cabeça, no grasnar silencioso dessa vez.

E os dias seguiram, eu me enfiando o quanto mais conseguisse, com as pernas fraquejando e o espírito machucado. Minha alma sofria como o meu corpo, naquela escuridão, mas eu ainda não entrara em loucura. Eu sou forte. Dizia a mim mesmo todos os dias e isso. E o tempo passou, a água acabou, o corvo não era mais uma boa presença. Mas ele sempre estava lá, dobrando em alguns lugares. E eu, que de nada de direção tinha, só o seguia. Que besteira. Um homem estúpido seguiria isso, mas por que haveria eu de tal? Graças aos santos, nunca fui uma pessoa estúpida. Não, sempre fui sábio, um dos mais sábios que conhecia.

Mas seria mesmo? As lembranças me vinham somente como um borrão e eu nada tinha certeza. O que haveria acontecido com essa cabeça que Deus me dera? Será que havia eu batido ela de tal jeito que tivesse apagado?

Mas eu caminhava. Encontrava forças no mais profundo poço escuro atrás das sombras onde me encontrava. E eu sobrevivia porque era feito para isso, era um homem perfeito. Dez dias sem beber água, vinte dias sem comer, e eu sentia cansaço, mas não a derrota.

E eu tinha dores de cabeça, e dores nas pernas, e dores... dores na alma. E eu sentia angústia correr como água em um rio, e o sofrimento, mas eu me mantinha são porque ainda estava vivo. E eu era forte, mas estava sendo posto cada vez mais no limite. E eu chorava as vezes, mas depois engolia o choro. Aquilo era para fracos, e água era preciosa. E como eu estava ainda em pé?

Vinte, vinte um, vinte dois... contava os dias, ou pelo menos o que eu achava que era dias. A água já havia ido há muito, e minha língua era tão áspera, meus lábios tão rachados quanto fundos de lagos marroquinos. E minha cabeça latejava, mas não era o latejar comum de dor física, mas sim aquele se sente quando se chega no limite, quando você é Ícaro e está preso em si mesmo, e brada para os céus, gritando, clamando, oh Deus, fazendo de tudo para que haja uma mão, para que venham asas. E você quer asas, mesmo que elas sejam feitas de cera; e você quer voar longe, mesmo que chegue tão perto do sol que seja capaz de tocá-lo. E eu era isso. Mas eu era forte. A cabeça estava erguida. Orgulho? Sim, muito, muito orgulhoso. Fraqueza é, na natureza, sinônimo de extinção.

Mas quando eu já pensava que tudo estava perto de se perder, que meu corpo iria começar a se auto devorar de fome e se auto intoxicar de sede, foi que eu vi um vislumbre de esperança. Uma pessoa.

Já se passava muitos dias, nenhum homem no meu estado poderia contar quantos. Mas quando eu cheguei, naquele átrio com uma mesa, uma cadeira, uma pessoa e uma escadaria que levava para baixo da terra e além, meu coração parecia que ia parar. E em um mês ou mais, eu sorri, porque eu havia conseguido. Ainda não sabia onde estava ou o que estava fazendo, mas se aquilo havia sido uma provação... eu sobrevivera. Porque o reino dos homens é o reino dos fortes.

E eu era leve como uma pluma e sorria, enquanto dava passos cansados em direção a pessoa. Ela estava vestindo uma bata escura – mas tudo naquela luz era pura treva – e eu não podia ver seu rosto, que envolto estava por um capuz.

– Não está em seus melhores dias, está? – comentou a pessoa, com uma voz grave.

– J... – tentei falar, mas minha voz saiu como um filete de fogo, totalmente titubeante. Já não falava a Deus sabe quanto tempo, e também Deus sabia o quão debilitado estava. Mas um homem é forte, então reuni forças restantes e me aproximei, falando: – Já tive melhores.

– Imagino – ele disse. Não levantava a cabeça, e suas feições continuavam escondidas sobre a capa. E remexia-se ainda, talvez movendo suas mãos também escondidas.

– Quem é você?

– Quem você está procurando – comentou, tirando uma mão da capa. Aquela visão era mais bela do que a própria Afrodite em sua vinda ao mundo. Ele tinha um jarro com água que cintilava tentadora, e havia uma bandeja coberta também. Ele os colocou em cima da mesa. – O que está você almejando.

Não sei o que ele queria em troca, mas eu golpe rápido, agarrei a jarra e, sorrindo da minha sagacidade e habilidade, logo imaginei a delicia do líquido e a consistência do que haveria sobre aquela encuba.

Mas Deus, o que aconteceu? Olhei para minhas mãos.

Não havia nada.

Olhei desesperado para o que tinha acontecido, afinal, tinha certeza de que o pegara. Passei a mão novamente, mas minha mão nada sentiu. Jesus! Como podia? Toquei, desta vez calmamente, no jarro e minha mão passou entre ele como se fosse feito de fumaça. Não! Não! Não! Eu preciso daquilo! O que era aquilo, meu Deus? Impossível.

Eu estava ficando louco, só podia estar. Não, eu era muito objetivo para ficar louco. Não, aquilo era uma ilusão. Meu Deus, eu só queria...

A risada da pessoa a minha frente me chamou a atenção, e despertou-me fúria e ódio. Como podia zombar da minha cara? Como se atrevia, em nome de todos os santos, em ver uma pessoa debilitada e ainda fazer zoas com sua pessoa?

– Que merda foi essa? – arranjei o que tinha de forças e bradei. – Diga-me!

– Ah, meu amigo – respondeu, calmamente. – Você não pode tocar. Nunca poderá.

– O que está falando, demônio?

– Você nunca luz virá. Não poderá.

– Fale claro, idiota! – Preparei-me para socar a mesa, mas minha mão passou por ela como fizera com o jarro e a bandeja. Meu Deus, o que estava acontecendo? Não, não, não, aquilo não podia ser real.

Era um sonho, só podia ser. Senhor, ordeno-lhe, me fizesse acordar.

Dei um pulo para trás quando a pessoa se levantou e se dirigiu as escadarias. O que estava fazendo? Ia embora? Não! Não! Não! Não poderia ir. Precisava de uma presença real, não somente de um corvo negro que agora me observava pousado sobre o jarro. Como, em nome dos céus? Aquilo não era real...

– Espere! Leve-me com você.

– Por que deveria? – a pessoa parou, sobre a escada. Não tinha certeza, mas sabia que aquela escada não era real. Nada ali era. Meu mundo agora era resumido em um espetáculo de pantomimeiro.

– Não pode me deixar aqui! Sabe quem eu sou?

– E você sabe? – Ele estava certo. Por que dissera aquilo como se fosse uma intimidação? Tudo havia me fugido da cabeça.

– Por quê? – foi somente o que consegui perguntar.

– Você não é mais como as pessoas normais. Não precisa de lembranças. Aqui, isso são só detalhes.

– Aqui... onde é aqui? – minha voz já era desesperadora. Eu precisava sair daquele lugar.

A pessoa se aproximou de mim, sem ainda levantar a cabeça ou mostrar se quer o resto do corpo. Sua presença tão perto parecia exalar alguma coisa que não sabia descrever. Mas eu queria chorar, e rir histericamente, e sofrer e sentir prazer de uma forma intensa.

– É um lugar onde você só precisa de um corvo como companhia.

– Como...

– Você fez muitas coisas certas, e muitas erradas. É aqui onde ficam os meio-termos, meu caro amigo. E meio-termos não precisam de outra companhia se não a dos corvos.

– Por favor...

– Palavras que não costumam sair de tua boca. Nem das dos corvos. São iguais, vocês dois – ele apontou para a ave e ela voou até seu ombro, grasnando –. São tão belos.

– Por favor... eu lhe peço – fiz algo que nunca na minha vida imaginei: eu me ajoelhei. – Eu não aguento mais.

– Aguenta. Aqui é o meio-termo. Você terá que aguentar até que o sol nasça no oeste e se ponha no leste, até que não haja nem dias nem noites e até que todas as montanhas sejam movidas.

– Como assim? – e eu chorava. – Responda-me! – e eu clamava. Eu precisava viver! Ó, Senhor, que me desse vida, porque eu não mais aguentava.

Ele não me respondeu, somente se virou. Não, não, não, não iria. Possuído pelo desespero momentâneo, sorri histericamente e corri até ele. Reuni forças. Se não ia me ajudar, não ia embora. Puxei sua capa, pronto para desferir um soco e matar aquela alma inútil. E eu sentiria o gosto doce daquilo depois, porque a praga era canalha. Puxei suas vestes. Mostre-se, covarde!

Embaixo de tanto pano negro como uma noite sem estrelas, não havia ninguém. Somente sombras. Não, pior: existia o que há atrás das sombras: o nada.

Artur Lima
Enviado por Artur Lima em 23/07/2015
Reeditado em 23/07/2015
Código do texto: T5320537
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.