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UMA MADRUGADA FATÍDICA

 
Joaquim ou Quinzinho, como era familiarmente chamado pelos habitantes da pequena aldeia, bebeu dois copos de aguardente e pagou a garrafa inteira, levando-a depois no bolso largo do casaco comprido, sujo e meio esfarrapado. Deu as boas-noites aos amigos presentes e saiu para o ar frio de Outubro. Era uma noite muito enevoada, ameaçando chuva, em que iria colocar o seu plano em marcha.
Há anos que ele era o coveiro da aldeia, desde que o velho Serafim se finara por cair bêbado no rio, afogando-se sem que alguém ouvisse os seus gritos.
Quinzinho sabia que o Gaudêncio, um homem rico, emigrante de muitas posses, com vários dentes de ouro de que se gabava como prova do seu bem-estar financeiro, morrera dois dias atrás e a sua urna fora colocada no jazigo de família. Ele mesmo, no final da cerimónia do funeral, com a ajuda de dois acólitos do padre Milícias, arrumara o esquife na prateleira de cima, à direita, a única ainda vaga, indo fazer companhia aos outros familiares cujos restos mortais ali descansavam para sempre.
Caminhando meio trôpego a caminho do cemitério, pensava na melhor maneira de arrombar a porta do jazigo, sem deixar suspeitas. Sabia que as dobradiças já estavam velhas e tinha dado um trabalho danado abrir o mausoléu para preparar minimamente o espaço para o funeral. Ao fim do dia, já a noite fazia imperar o seu reinado, oleara mais ou menos quer a fechadura quer as citadas dobradiças. Teve medo que forçadas partissem e aí levantaria suspeitas.
Entrou no cemitério por uma pequena porta lateral, deixando o portão principal fechado, para ninguém desconfiar.
O jazigo ficava num dos extremos do cemitério, meio escondido, o que convinha para o seu plano.
Com a sua chave abriu o velho portão, que tinha os vidros partidos e o cortinado branco bem sujo, e entrou no pequeno espaço. Apalpou o bolso, lá estava a garrafa, o que o descansou. Mas importante como a bebida era o alicate, que levava para arrancar os dentes de ouro ao defunto.
Pegou numa velha lanterna onde flutuava um pequeno pavio e conseguiu acendê-la após várias tentativas e algumas pragas. Pousou-a na prateleira oposta, junto a outro caixão e então virando-se para o foco das suas atenções, tentou abrir o caixão do Gaudêncio. Sacou de um molho de chaves mas nenhuma deu a volta nas fechaduras. Ficou chateadíssimo por não se ter lembrado de experimentar previamente uma chave-mestra que o abrisse.
Sentou-se no chão e emborcou a garrafa, bebendo pequenos goles. O estômago ardia perante a quantidade de álcool ingerida. Depois de um bocado de repouso, sentiu sono. Mas tinha a tarefa entre mãos, isso seria o mais importante. Levantou-se algo cambaleante e pegou numa chave de fendas grande, que também tinha trazido noutro bolso e tentou forçar a tampa, servindo-se da ferramenta como se duma alavanca se tratasse.
Lá fora começara a chover, de forma copiosa e uma trovoada deu sinal, trovões consecutivos, aumentando o seu tremendo ribombar. Quinzinho instintivamente estremeceu. Não era medroso, mas uma noite de trovoada, dantesca como aquela e ele ali em semelhante companhia, não era para fracos…
Por fim lá conseguiu arrombar a tampa do caixão do Gaudêncio e encostou-a à parede lateral.
Destapou o rosto do defunto e riu-se para ele.
- Humm… Ó mariola, tens aí uma coisa para mim, sabias?
Virou-se para trás e pegando na garrafa, bebeu mais um trago, para ganhar coragem. Pousou-a ao lado da lanterna e depois virou-se de novo para o caixão do Gaudêncio.
Tentou abrir a boca do morto mas a rigidez do corpo impediu-o à primeira. Forçou com a chave de fendas e deve ter partido algum osso, pois parte da mandíbula do falecido cedeu. Pegou no alicate e segurando bem o rosto do falecido, arrancou três dentes de ouro, que brilharam perante a fraca luz da lanterna.
Ainda vislumbrou outro dente, mais atrás, devia ser molar. Tentou dar o jeito para o arrancar mas era difícil. A cobiça redobrou o seu ânimo. Esticou-se todo e fez força, o alicate escapou do sítio onde apertava e ele, desamparado, recuou até chocar com a cabeça na prateleira onde estava a garrafa e a lanterna.
Perdeu os sentidos, caindo desamparado no chão, ao mesmo tempo que garrafa e lanterna também caiam e o álcool, proveniente da garrafa estilhaçada, pegou fogo. Tudo era madeira e panos e o fogo devorou facilmente todo o conteúdo do túmulo.
No dia seguinte, porque apesar da chuva o odor a queimado ainda pairava no ar, alguns fiéis que se tinham deslocado por alguma razão ao cemitério, estranharam o portão fechado. E constataram que tinha havido incêndio no extremo do local, coisa estranha mesmo.
Reuniram-se com outros homens, foram ter com o padre e arrombaram o portão, logo deparando com as paredes calcinadas do jazigo e alguns corpos carbonizados no meio de resíduos calcinados de madeira.
Nesse mesmo dia, a Polícia Judiciária deslocou-se ao local e recolheu provas forenses. Mais tarde, apoiada nessas provas e nos testemunhos de alguns dos habitantes, identificou as vítimas.
Na altura causou estranheza o facto dos restos mortais do coveiro se encontrarem ali, junto dos ocupantes do jazigo, mas como as autoridades tinham mais que fazer, o caso permaneceu em mistério durante mais algum tempo até foi arquivado.



 
Agosto de 2015







 
 
Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 23/08/2015
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