O espelho maldito - DTRL24

Eu me lembro com clareza do dia em que adquiri aquele espelho. Não faz muito tempo, tudo aconteceu a exatamente três semanas.

Era um dia comum, eu estava em meu carro, voltando da faculdade com minha amiga Juliana. Após deixá-la em sua casa que ficava a pouco menos de 6 quadras da minha, continuei meu caminho.

Lembro de olhar pela janela e notar o dia mais escuro, o céu repleto de nuvens negras e pesadas: "Ótimo, uma chuva." Pensei. "Era tudo que eu precisava".

Sempre que chovia a rua em que morava se transformava em um mar de lama, e eu havia lavado o carro naquele mesmo dia. "Uma merda de um dinheiro desperdiçado". Mal terminei meu pensamento a chuva caiu com tanta força que era difícil enxergar um metro a frente.

Vendo que não haveria como continuar o caminho com aquela tempestade, decidi estacionar o carro em um velho posto de gasolina que se encontrava por perto, afim de esperar que a chuva estiasse um pouco. Maldito erro. Desliguei o motor e relaxei, pensando em um jeito de conseguir terminar aquele trabalho enorme que a professora de redação havia passado na última aula.

Trovões começaram a ribombar no céu, raios caíam a poucos quilômetros de distância de modo que a luz cegante invadia meu carro, me causando ocasionais sustos. Estava realmente cansada, se não nunca haveria cochilado em meio aquela devastação nos céus.

Toque toque toque.

Tive um sobressalto e acordei assustada.

Toque toque toque.

A batida continuou persistente na minha janela, a chuva não havia parado. Intrigada, olhei e tentei identificar quem estava batendo, no entanto os raios haviam cessado e nada iluminava o local.

Desci um pouco o vidro da janela afim de enxergar melhor, afinal poderia ser alguém precisando de ajuda.

-- O... Oi! -- Disse diante do sorriso grotesco que estava fixado nos lábios secos da mulher que me espiava sem realmente me ver, através de olhos brancos quase totalmente ocultos com um véu escuro.

-- Precisa de ajuda?

-- Sim minha querida, preciso sim. Sou uma vendedora, passei aqui e gostaria que olhasse minhas mercadorias. -- Ela respondeu em tom elevado para que eu ouvisse através dos trovões.

A pobre velha aparentava tanta fraqueza e frio que tive ímpetos de convidá-la a entrar e aquecer-se, no entanto as broncas de minha mãe sobre não se aproximar muito fisicamente de estranhos me vieram a mente, fazendo-me mudar de ideia.

-- Que tipo de mercadorias? -- Perguntei em tom igualmente alto, realmente curiosa sobre o que qualquer pessoa normal, sobre tudo uma velha com aparência tão debilitada, poderia vender em um dia como aquele. Ela me lançou um sorriso amarelo, e retirando uma velha bolsa de couro do ombro começou a falar:

-- Óh, querida, minhas mercadorias são de primeira qualidade. São antigas, muito antigas. Você não encontrará em lugar nenhum. -- Ela revirava na bolsa enquanto falava.

Eu suspirei. Aquilo já estava ficando irritante.

-- Ok, mas o que a senhora vende?

-- Há, para você eu tenho algo especial, Luiza. Algo muito especial. --

Eu deveria ter notado naquele dia, que não havia dito meu nome, e a velha já o sabia. E deveria ter notado também, a maneira que seus olhos que supostamente eram cegos e brancos estavam fixos nos meus. Mas não, eu não notei. Apenas sorri de admiração quando esta retirou finalmente algo de sua bolsa velha.

Era um espelho, um lindo e pequeno espelho, com moldura de prata e com pequenos brilhantes ao redor.

-- Fique com este, boneca. Aprecie sua beleza todos os dias e agradeça a natureza por seus olhos azuis e por seus longos cabelos escuros. -- Ela completou a frase com mais alguma coisa, no entanto eu mal notei o fato de ela, mesmo com olhos completamente brancos saber minha aparência, ou como ela terminara a tal frase. Estava encantada com o pequeno espelho.

Abaixei mais o vidro da janela e estendi a mão para pegar o precioso objeto e ela não protestou, apenas continuou sorrindo com seus dentes podres.

-- Eu fitei meu próprio reflexo, admirada com o que via. Será que sempre fora assim, tão bela? Será que meus olhos sempre haviam sido tão azuis e límpidos? Não era possível que eu sempre tivera cabelos tão luxuriantes e nunca percebera. Me perdi no tempo, a me observar, a admirar aquilo que sempre estivera diante de meus olhos e eu nunca notara.

Então um raio iluminou o interior do meu carro, me tirando do transe e me fazendo lembrar da velha. Olhei pela janela, mas ela não estava ali.

Me dei conta que ela nem havia dito seu nome ou recebido pagamento algum. Bom, melhor para mim. Não tinha dinheiro mesmo.

Guardei o espelho em um bolso separado em meu casaco , de modo que ele não se perdesse em meio as bugigangas que eu gostava de carregar pra cima e pra baixo na bolsa.

Peguei meu celular e levei um susto ao verificar as horas. 00:15. Eu havia deixado Juliana em sua casa as 16:24. Como ficara ali tanto tempo? Será que dormira de mais ou será que passara horas me contemplando no espelho?

Não sabia dizer. Só sabia que já era tarde e que deveria ir para casa de uma vez por todas, se não quisesse ser morta por minha mãe.

Olhando para fora vi que a chuva já havia estiado. Dirigi os poucos quilômetros que faltavam para minha casa, parando ocasionalmente para me fitar no espelho.

Nos dias que se seguiram, me admirar no espelho se tornava cada vez mais necessário em minha vida. Matava a maioria das aulas para ficar no banheiro apenas me contemplando, não escutava mais ninguém nas conversas rotineiras, não conseguia dirigir sem parar para me fitar algumas vezes durante o caminho.

Inicialmente enquanto o sinal estava vermelho, depois até mesmo enquanto fazia curvas e adentrava ruas.

Certa noite eu voltava para casa sozinha, era sexta feira e o trânsito estava mais movimentado. Eu sabia que não deveria parar para me olhar no espelho enquanto dirigia, que era por este motivo que Juliana e Marina não aceitavam mais minhas caronas.

Eu sabia de tudo isso, mas mesmo assim retirei o espelho do bolso do casaco onde ele ficava desde quando o comprara da velha na estrada, e fitei meu belo rosto. Ah, como adorava minha imagem. Era tão linda, com olhos tão azuis. Cada dia ficava mais radiante. Cada dia mais bonita, confiante.

puuuunc.

Você está bem? -- Uma voz disse ao longe.

Estava perdida entre a amarga consciência e a doce inconsciência. Nuvens negras dançavam ao meu redor. Uma névoa perfumada enchia meus pulmões.

-- Luiza, você acordou?

Era a voz de minha mãe. Empurrei a névoa e abri os olhos devagar.

Estava em um quarto branco com janelas grandes, e lá fora estava muito escuro. Como fora parar ali?

Minha cabeça latejava um pouco e minha saliva tinha um gosto amargo que não conseguia identificar.

Movi os olhos e avistei minha mãe, parada ao lado da cama onde eu estava, segurando minha mão esquerda e me encarando estranhamente, seus olhos uma mistura de piedade, preocupação e raiva.

Uma enfermeira se aproximou de mim, com um sorriso fixo nos lábios finos e ressecados. Ela era feia, com cabelos crespos e pele flácida. O jaleco branco não ajudava, deixando sua aparência ainda mais detestável.

Franzi a testa. Naquele ponto, já não gostava de ser obrigada a ver imagens tão horríveis como a daquela mulher. Gostava apenas de mim mesma, com todo meu esplendor e beleza.

-- Você está bem? -- Ela perguntou.

Respondi que sim e ela iniciou uma série de perguntas sobre dores nos ossos e ETC. Sendo todas as respostas negativas, ela sorriu e disse que logo eu poderia ir para casa.

-- Mãe, o que aconteceu? -- Quis saber quando a porta foi fechada atrás da enfermeira.

Minha mãe me contou que eu sofrera um acidente de carro, que meu carro jogara outro automóvel para fora da pista e que este pegara fogo, matando um pai, uma mãe e 4 crianças pequenas.

Não sei como não percebi que naquele momento, a única coisa que me veio a mente foi:

"Onde está meu espelho?"

Apalpei o casaco que ainda vestia e lá estava ele, perfeitamente onde deveria estar. O peguei e comecei a namorar meu reflexo, notando-me tão radiante e bela como nunca.

Minha mãe puxou meus cabelos, obrigando-me a olhar para ela.

-- Luiza, você está me ouvindo? Precisa ter mais responsabilidade, matou uma família inteira. Crianças, Luiza, elas morreram. Por sua culpa.

Sei que não tem sido responsável no volante, sei que para de dirigir para se olhar nessa merda de espelho, que não liga se causa problemas para alguém.

Eu me enfureci. Quem ela pensava que era? E foi isso que perguntei. Ela me olhou com tanto rancor e mágoa que quase me arrependi do que dissera, quase, afinal ela não tinha de se meter na minha vida daquela maneira.

-- Luiza, você não entende.... -- Sua ladainha foi interrompida por um médico bonito de cabelos claros que entrou na sala declarando que eu já podia ir para casa.

Me senti tão grata por ele ter me salvo das chatices da minha mãe que dediquei a ele o meu melhor sorriso sedutor, o que o fez desviar o olhar envergonhado.

Guardei o espelho no bolso habitual e fui para casa, dessa vez no carro de minha mãe que se recusou terminantemente a deixar que eu dirigisse.

Me olhei no espelho a viajem toda, parando ocasionalmente para ordenar que minha mãe calasse a boca e me deixasse em paz.

Cheguei em casa e continuei a me olhar no espelho enquanto comia uma maçã e também enquanto penteava os cabelos para dormir.

Naquele fim de semana não se passou um minuto em que eu não estivesse me fitando no espelho, admirando minha beleza. Minha mãe tentava me fazer conversar, no entanto eu não tinha interesse em nada que não fosse me contemplar em meu adorado espelho de prata.

Ah, como gostaria de ter escutado minha mãe, nada disso teria acontecido.

E então chegou a segunda feira, e eu já não ia para faculdade. Minha mãe brigava e tentava me obrigar, no entanto eu não me importava com seus berros e lágrimas. Não me importava que nenhuma de minhas amigas me ligava ou me chamava no chat do Facebook. Eu nem entrava mais na internet.

Nada era mais importante do que me admirar. Não percebi que estava perdendo peso, não percebi que meus cabelos estavam caindo aos montes no pente, não percebi que já não comia ou bebia nada. Nem ao menos escovava os dentes ou tomava banho.

Minha mãe, ah, minha pobre mãe. Ela tentou, tentou de todas as formas me tirar daquele transe. E foi isso que determinou seu fim, meu fim.

No sábado seguinte acordei e ao apalpar o bolso tive um sobressalto. Não senti o reconfortante objeto de metal que deveria estar ali. Sim, ele deveria. Onde estaria se não comigo?

Revirei meu quarto inteiro, retirei todas as roupas do armário, e enquanto fazia isso eu gritava e chorava, me mordia, estava em desespero.

Não encontrei meu espelho, mas sim outro, velho, um que eu esquecera de quebrar quando dera fim em todos os outros da casa dias antes, com exceção do meu, é claro!

Os outros espelhos não valorizavam toda minha beleza, e com aquele velho era pior. Gritei mais alto ao ver o reflexo que me encarava de dentro do vidro rachado com olhos vidrados e vermelhos.

Quem era aquela garota com bochechas encovadas e olhos fundos? Não era eu. Não tinha cabelos ralos e dentes podres, não era eu. Eu era bela, eu era perfeita.

Corri para fora do quarto e avistei minha mãe sentada a mesa tomando café. Pela maneira com que ela me olhou, parecendo surpresa e assustada, eu notei que havia sido ela a maldita que pegara meu precioso espelho.

- Luiza, o que foi que.....

Um grito de dor impediu que ela terminasse de falar. Eu apanhara a garrafa de café quente e derramara sobre sua cabeça. Ri descontroladamente

enquanto pegava uma faca suja de manteiga e destruía seu rosto. Ela desejava meu espelho, desejava ser bela como eu era. Mas não seria, a maldita seria feia para sempre. Retalhei seu rosto e seu corpo inteiro, enquanto ela gritava, gritava.

Os vizinhos escutaram os berros e alguém arrombou a porta. Dei a última facada no peito de minha mãe enquanto braços fortes me seguravam por trás.

Gritei, gritei, berrei e dei algumas facadas em alguns dos caras que tentavam me tirar da casa. Não sairia sem meu espelho, não sairia.

Um deles tomou a faca de cozinha da minha mão e eles me colocaram em uma camisa de força.

Tentei me esquivar da agulha que aplicavam em meu braço, no entanto não consegui. Tudo ficou escuro.

As paredes se transformaram em enormes labaredas escaldantes, o chão era feito de cacos de vidro. Olhei para frente e lá estava a velha que me vendera o espelho, dessa vez sem nenhum véu que lhe cobrisse o rosto grotesco.

Ela gargalhava e entre uma gargalhada e outra dizia, olhe-se, olhe-se no espelho, boneca. Olhe-se no espelho.

Veja a assassina de sua mãe, de quatro crianças e dois jovens pais. Olhe-se, admire seus olhos azuis e seus longos cabelos escuros, enquanto não se torna maldita e cega.

Um arrepio percorreu minha espinha, e eu me dei conta que sim, havia sido desta maneira que a velha terminara a frase no dia em que me dera o maldito espelho.

Em certo ponto as labaredas e a velha desapareceram, e eu acordei em um pequeno quarto para loucos, onde estou a uma semana e dois dias, tempo que parece se desenrolar para a eternidade.

Lembro de que ao acordar e me sentar na cama, movias mãos para apalpar o bolso do casaco, em um movimento automático.

Não era possível, lá estava o espelho, tal qual sempre estivera.

O peguei com as mãos trêmulas e Um berro ecoou pelo prédio da clínica de loucos quando constatei que ele mostrava a mesma garota Que me encarara através do vidro rachado do espelho velho, em meu quarto.

Eu era feia, cabelos ralos e esbranquiçados, tão detestável quanto a velha. Era o reflexo de uma assassina. E uma assassina sozinha, que

matara a própria mãe. Como viveria com isto?

Mesmo estando detestável e sendo uma assassina maldita, não conseguia parar de me fitar no espelho. Esse foi o motivo de eu ter enfiado a agulha que me transmitia soro na veia em cada um de meus olhos.

Não sei como me pareço de fato agora, mas em meus sonhos eu me fito no espelho maldito, e vejo uma jovem que aparenta o dobro da idade, tão arruinada quanto sua vida, e o pior. De olhos esbranquiçados e completamente cegos como a velha, a maldita velha.

Tema: Objetos assombrados e manias.

B Fernandez
Enviado por B Fernandez em 25/08/2015
Reeditado em 05/09/2015
Código do texto: T5358395
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