O tilintar das correntes - DTRL 24

- Você trouxe os espécimes que solicitei sr. Elias?

- Barão Arsénio, o senhor não sabe o infortúnio que a minha última remessa passou.

- Não me venha com essas desculpas esfarrapadas homem.

- De forma alguma, meu bom senhor. O que ocorre, e é de conhecimento de todos, é que uma tormenta afligiu o Atlântico nos últimos dias e tive uma perda substancial dos tipos capturados.

- Quanto perdeu?

- Cerca de quarenta e Cinco por cento do meu lote.

- Os que sobraram estão em quais condições?

- Ora Barão, em ótimas. No mínimo.

- Sei. Igual aqueles monjolos preguiçosos que você me vendeu.

- Barão, saiba que aqueles tipos foram contaminados por uma virose durante o transporte, não tive culpa alguma daquela enfermidade. Façamos o seguinte, escolha os que lhe agrada e eu farei um desconto para vossa senhoria.

- Mostre-os.

Sr Elias conduz o Barão Arsénio para dentro de uma tenda aonde diversos escravos acorrentados amontoam-se em um espaço extremamente apertado e quente.

- Veja meu bom Barão, tenho uma variedade nesse lote. Benguela, Angolas, Cabinda, Monjolos.

- Estes eu não quero nem de graça. - Barão o interrompe com autoridade.

- Tudo bem.

- Veja Elias, a minha encomenda é peculiar desta vez. Não teria por aí nenhum daqueles negros minas?

- Finalmente se submeterá a vontade do império Barão?

- De forma alguma Elias. Herdei minhas terras e logo, tudo o que eu extraio dela é de minha posse e mais ninguém. Rei, império, ninguém.

- Entendo Barão, o senhor iniciará a extração de minérios?

- Não tenha dúvidas, o gado e o plantio já tiveram dias melhores e aqui em Diamantina o que enriquece os homens é o ouro e o diamante.

- Com toda a certeza meu Barão.

- Então me mostre os seus habilidosos espécimes na arte da mineração Senhor Elias.

- Meu Barão, temo que esses espécimes que o senhor deseja, são criaturas diferenciadas cuja procura é enorme. Sobretudo esses tipos, e eu infelizmente não poderei ceder aquele desconto prometido.

- Diabos homem. Sempre a mesma enrolação. Mostre-me.

- Façamos o seguinte Barão, volte no período da tarde que venderei ao senhor Treze dos meus melhores espécimes, garanto que não se arrependerá.

- E quanto me custará Senhor Elias?

- O senhor bem sabe que...

- Deixe de circunlóquio homem.

- Duzentos mil-réis meu bom Barão.

- Estás louco.

- Pois saiba ó barão, que o recém nomeado conde Eloy adquiriu apenas cinco desses meus produtos e obteve duzentos e cinquenta por cento de lucro sobre o investimento. Imagine o que fará com treze deles.

- Droga Elias. Vou até o banco e a tarde volto para retirá-los.

- Combinado Barão.

Conforme combinado, o Barão Arsénio vai até a cidade afim de obter o dinheiro necessário para a aquisição dos escravos. Nesse interim, Senhor Elias ordena que seu auxiliar vá buscar o produto de sua negociação com uma carroça no seu depósito particular.

O relógio marca 15:30 quando o Barão volta da cidade, nesse preciso momento o Auxiliar de Elias chega com os escravos dependurados em uma carroceria improvisada.

- Esses são os tipos? - Pergunta o Barão enquanto os observa minunciosamente.

- Com toda a certeza. - Responde Elias.

Os homens acorrentados descem da carroça e fazem uma linha para inspeção.

- Veja, dentes perfeitos, todos bem alimentados. Prontos para o trabalho. - Sr. Elias diz enquanto exibe cada escravo.

- Aparentemente. - Barão responde alisando a barba.

- Sei que o senhor não se arrependerá.

- É o que espero Sr. Elias, pois penhorei minhas terras para comprar esses tipos. - Diz o Barão entregando uma mala de couro cheia de dinheiro para o mercador de escravos.

O Barão Arsénio inspeciona atentamente sua nova aquisição enquanto prepara um fumo em seu cachimbo. Ele os encara, um a um e após algumas pitadas pergunta:

- E este? O que tem nas mãos e na cara?

- É vitiligem barão. Garanto que não é contagiosa.

- Ora ora, chamarei-o de Cara-de-Nata. Entende o meu idioma, Cara-de-Nata? - Pergunta o barão.

- Sim senhor. - O escravo responde.

- Gostei de você.

O jovem escravo de face manchada em tons brancos apenas observa o Barão desconcertado.

- Vamos homens, temos um longo caminho pela frente. Barão e escravos acompanhados de dois capangas marcham até a cidade de Arraial do Tejuco, duzentos e oitenta e cinco quilômetros da capital.

Os escravos em fila, caminhando descalços penosamente acorrentados ao passo de que capangas e Barão desfrutam do conforto em sua luxuosa charrete.

Depois de alguns dias de viagem, a caravana chega na propriedade do Barão Arsénio. Uma bela fazenda tipicamente colonial, com vasta extensão onde o gado popula o pasto enquanto escravos extraem cana de açúcar dentre outros serviços rurais.

A fazenda do Barão Arsénio tem em suas atividades principais, gado e cana de açúcar, sendo a primeira a mais rentável devido à localização privilegiada da fazenda junto com a qualidade do pasto. Não é preciso mencionar que a forma austera como o Barão governa suas terras é também um dos fatores primordiais para sua renomada fama e considerável riqueza.

- Zé Amado, leve os para a senzala. Diz Barão ao seu capanga.

- Pode deixar Barão.

- Descansem bem homens, pois amanhã o trabalho começa. - Diz Barão enquanto olha para os escravos. Principalmente você Cara-de-Nata. - Completa sorrindo.

Na entrada da casa grande, uma bela jovem de cabelos pretos observa com entusiasmo o Barão.

- Meu amor. Diz a jovem.

- Minha bela Maria.

- Como foi a viagem? Deu tudo certo?

- Sim minha amada, amanhã mesmo iniciarei a extração próximo ao rio. Eu adquiri uma boa mão de obra com o velho Elias.

- Quanto custou?

- Isso não importa.

- Barão?

- Ora mulher, alguns contos de reis. Não mais que isso.

- Barão? Insiste a mulher.

- Duzentos mil-réis.

- É muito dinheiro.

- Não se preocupe. Recuperarei a curto prazo esta quantia.

- Acredito em você, meu querido. Venha, seu banho está preparado e o jantar está na mesa.

- No entanto meu apetite é outro Maria. - Barão responde, cinturando a bela mulher.

- Barão! - Exclama a mulher com um sutil sorriso e com a face corada enquanto os dois sobem as escadas em direção ao quarto principal localizado no segundo andar da pomposa residência.

O canto das escravas no campo e o aroma de café fresco fez o Barão pular da cama logo cedo. Sua esposa prontamente ordena que os serviçais preparem o desjejum. Os capangas são acordados e preparam a montaria do Barão enquanto ele ceia com sua esposa.

- Os escravos estão prontos? - Barão pergunta para Zé Amado.

- O Chico ficou de alimentá-los e prepará-los, meu senhor.

- Eu? Indaga Chico.

- Não foi o que discutimos logo cedo? - Responde Zé Amado.

- Eu havia entendido que você que ia alimentá-los.

- Homens, pelo amor de Deus. Se ignorância pudesse ser vendida, faria fortuna com vocês dois.

- Mas Barão... - Chico interrompe.

- Chico, meu estimado Chiquinho. Você sabe que prometi a seu pai no seu leito de morte, que cuidaria de você devido aos anos de fidelidade junto ao meu. Porém, em casos como este, você coloca em cheque minha palavra e minha fé.

- Mas Barão.

- Chico. Como meus escravos irão ter forças para cavar a terra se eles não forem alimentados?

- Eu... eu não sei. - Gagueja o homem.

A pele branca do Barão dá lugar ao vermelho sangue, sua mão treme. Ele então respira fundo e lapida cada palavra dizendo:

- Então por obséquio meu perspicaz funcionário, vá alimentar os homens pela misericórdia de Jesus Cristo.

Chico trêmulo sai aos tropicões em direção ao barracão aonde os escravos estão alojados.

- Meu Deus Zé Amado, ainda mato esse homem. Juro pelo túmulo do meu velho pai.

- Tenha calma meu Barão. Ele é um idiota, mas um idiota fiel como um cão.

- A fidelidade tem suas virtudes Zé, nisso você tem razão.

Após terminar o café, Barão Arsénio escolta junto com seus dois capangas, o grupo de escravos em direção a sua mina. Ele havia primeiramente, iniciado as escavações com seus escravos da fazenda, entretanto a inexperiência dos homens nesta especialidade, demonstrou-se frustrante para o Barão, que investiu recurso e tempo em uma empreitada infrutífera. O fato é que a entrada da mina estava escorada precariamente por algumas toras de madeira, e apesar do esforço excruciante dos escravos, não mais que dez metros haviam sido cavados terra adentro.

Meus bons homens, vejam que aqui será o local de trabalho de vocês. Espero sinceramente que tragam resultados em breve. Como os senhores já conhecem, meus dois funcionários aqui se encarregarão de vigiar vocês.

Saliento que não tentem nenhuma besteira. O Zé Amado aqui pode ser um imbecil, mas sua mira é espetacular.

- Passar bem. - Conclui cavalgando aos trotes.

Assim que o barão desaparece em um declive na estrada Zé Amado dispara:

- O que estão esperando crioulos! Ao trabalho.

Os escravos conversam entre si em seu dialeto de origem e em pouco tempo dividem-se. Assim, parte do grupo começa a nivelar a escavação ao passo que o segundo grupo, realiza um trabalho de escoramento do túnel. Aparentemente, o escravo apelidado de Cara-de-Nata é tido como líder pelos demais e demonstra uma certa desenvoltura em delegar atividades aos demais companheiros.

Apesar do esforço sobre-humano dos negros e os avanços na escavação, uma porção pífia de minérios foi retirada em pouco mais de um mês de trabalho árduo. Este fato não agradou nenhum pouco o barão, de modo que sua forçada simpatia deu lugar a uma rigidez e austeridade implacável tornando os dias de trabalho cada vez mais longos enquanto o descanso dos escravos, cada vez mais curtos.

- Não é possível, já se passaram três meses e nada.- Esbraveja o barão socando a mesa durante o café da manhã, tingindo de roxo uma toalha com suco de uva.

- Acalme-se barão. Maria tenta em vão consolá-lo.

- São esses negros. - Eles estão me enrolando.

- Mas amor, eles trabalham dia e noite naquela mina. É bem possível que aquela terra não tenha minérios.

- Diabos mulher, eu sei o que estou fazendo e te digo, esses escravos estão a me passar a perna.

- Tragam-me Cara-de-Nata aqui, agora.

Em pouco tempo seus capangas trazem o escravo.

- Está com fome?

O escravo apenas acena com a cabeça.

- Sente-se meu caro. Tome café comigo.

- Mas sinhô?

- Venha, tudo bem. - Acanhado o escravo senta-se a mesa com o barão e sua esposa.

- Sirva-se. Não tenha vergonha. - O barão diz cheio de modos.

E o escravo assim o faz.

- Como anda a escavação meu caro Cara-de-Nata?

- Temos avançado bastante sinhô, retiramos algumas pedras ainda ontem.

- É mesmo? Foi aquela quantidade que Zé Amado me trouxe?

- Acho que sim.

- Você sabe que investi um valor alto em vocês? Na verdade, uma soma exorbitante foi utilizada com a premissa que me trariam lucros. Esse lucro ainda não chegou em minhas mãos meu prezado Cara-de-Nata. É de seu conhecimento?

- Não sinhô.

- Eu soube que você, em seu dia de folga, ao invés de cultuar seus Deuses, você trabalha. É verdade?

- Sim sinhô.

- E para quê?

- Para comprar a minha alforria e a da Ritinha.

- Ritinha é? Ora Cara-de-Nata, seu danado. Sempre me surpreendendo.

Cara-de-Nata apenas o observa enquanto abocanha uma fatia inteira de pão.

- Façamos um trato meu jovem. - Diz o barão mudando o semblante completamente.

Nesse momento, Maria fica apreensiva. Uma gota de suor escorre pelo rosto de Cara-de-Nata enquanto engole a seco.

- Saiba que Ritinha é uma de minhas escravas prediletas, cozinha e passa muito bem e sua pele bronzeada e suas curvas suntuosas, são um convite ao pecado. Pensando aqui com meus botões, prometo que se me trouxer resultados no próximo mês, eu pensarei com muito zelo na liberdade de vocês dois. Entenda como um presente de casamento antecipado.

O escravo sorri.

Agora que está de barriga cheia, vá trabalhar.

Maria respira aliviada.

- Temi pelo pior meu amor. - Diz a mulher enquanto observa Cara-de-Nata indo embora.

Em um ar tétrico, enquanto acaricia a barba calmamente barão diz.

- É bom que me tragam algo rápido.

Os escravos mourejavam cada vez mais na mina, Cara-de-Nata excepcionalmente, dedicava-se todos os dias interruptamente na mineração e para a sua sorte ou azar, em um certo domingo, extraiu uma bela pepita de ouro da mina que tratou de esconder em suas vestes imediatamente. Os dias esvaiam-se rapidamente assim como a racionalidade do Barão que cada vez mais culpava seus escravos pela má sorte na mineração e aplicava castigos, privando-os de alimentação e até mesmo de dormir.

A cantoria diária das escravas no campo foi interrompida por gritos vindo da casa grande, pelo tom de voz, podia-se especular fora da casa, que tratava-se do Barão. E ele estava furioso.

- Maldição, eu que sempre fui um fiel cliente e sobretudo pagador, sou interpelado por esse gerente malcriado por alguns pequenos atrasos no pagamento! Para o Diabos esses banqueiros gananciosos! – Ele gritava.

- Ritinha! Aonde está o meu chá? – O Barão gritou.

- Vá logo, hoje o homem não está para brincadeiras. – Maria diz para Ritinha no andar térreo.

Ritinha sobe as escadas apressadamente, e para seu azar, esbarra com o barão no último degrau, derramando chá quente em seu peito.

- Sua crioulinha estúpida. Você acha que eu planto dinheiro!

O grito da pobre moça chamou a atenção de todos, inclusive do Cara-de-Nata que foi ao seu encontro. Nesse interim, Barão Arsénio amarrava a jovem em um tronco e rasgava o seu vestido, deixando as costas cor de ébano nua.

- Pelo amor de Deus homem. Deixe-a em paz. - Grita Maria.

- Essa vadiazinha vai pagar Maria. Não se intrometa!

O som do chicote estala no ar.

A moça grita.

O cheiro agridoce do sangue permeia o ambiente.

O chicote desloca o ar novamente produzindo outro estalo.

Dessa vez, falta forças para a mulher gritar. Sangue escorre da ferida aberta em suas costas.

No momento que Cara-de-Nata corria ao encontro de sua amada, ele tropeça em um desnível no solo próximo ao tronco, fazendo uma pepita de ouro que era mantida em segredo dentro de sua camisa pular a frente, tocando a bota do barão.

- Mas o que temos aqui? - Diz Barão enquanto ajeita os cabelos.

Ele pega o pedaço de ouro e o examina por alguns instantes.

- Sinhô. Eu encontrei essa pedra em um domingo desse. Juro que ia entregar em troca da Ritinha.

- Ah, você ia? Meu Estimado Cara-de-Nata!

- Sim sinhô.

- Tudo bem, pode retirar a sua senhora do tronco. Ela é sua, não é? - Diz Barão com um sádico sorriso na face.

No instante que Cara-de-Nata se vira para Ritinha, um estampido é ouvido. A bala vai de encontro ao peito de Ritinha.

- Não! - Cara-de-Nata grita.

O infeliz escravo mal teve tempo de se virar contra o barão quando foi recebido por um disparo certeiro entre os olhos. O corpo sem vida do pobre escravo, jaz aos pés de sua prometida. Maria chora e corre em direção a casa grande.

- Livrem-se dos corpos! – Barão grita para os seus capangas.

- O que fazemos com eles barão? - Questiona Chico.

- Chico, e eu vou lá saber, sirva aos porcos, jogue-os no rio. Apenas os tire da minha frente. E quando terminarem esse serviço, quero todos os escravos prontos para uma inspeção.

- Sim senhor. Os capangas respondem em uníssono.

Zé Amado e Chico por acharem mais fácil, levaram os cadáveres para o rio, aonde a forte correnteza e uma queda d'água dariam conta dos corpos. Logo após todos os escravos foram postos em fila a pedido do Barão Arsénio.

- Malditos escravos. Eu tentei ser cordial com vocês e como me agradecem? Me roubando? Vocês acham que estão em alguma porcaria de hotel? Que eu sirvo a vocês? De agora em diante vocês trabalharão de sol a sol e passarão a viver naquela droga de mina até que me tragam alguma coisa. Vocês gostam tanto de pedras preciosas? Eu presentearei vocês com uma corrente. Uma corrente de ferro. Zé Amado pegue os grilhões.

- Chico, me ajude, aquelas correntes pesam muito. - Diz Zé Amado.

Os escravos se entreolham, mas nada dizem. Em pouco tempo, Chico une os escravos um a um com pesadas correntes que os prendem na altura dos tornozelos. O tilintar dos grilhões enquanto os escravos marcham em direção a mina causa comiseração até mesmo em Zé Amado que é de uma natureza sádica e vil.

O grupo é forçado a trabalhar jornadas de dezesseis, as vezes dezoito horas diárias, sete dias por semana, com duas e as vezes uma refeição ao dia.

Apesar da crueldade do Barão e os castigos aplicados, nenhum mineral, é extraído da mina. E por algum motivo, talvez os pesadelos que aterrorizam suas noites ou a persistência dos agentes bancários no pagamento da dívida, algo mudou sua personalidade. Ele era pego por diversas vezes falando sozinho pelos cantos da casa e encarava o horizonte de forma inexpressiva. Não é preciso mencionar as bebedeiras, cada vez mais intensas e frequentes. Certa noite, após esvaziar uma garrafa de gim, algo inexplicável e incontrolável tomou conta da mente do Barão, um sentimento de ódio e vingança brotou em seu peito, fazendo sua respiração ficar ofegante e uma necessidade de sangue, que o obriga a montar o seu cavalo e partir em disparada rumo a mina aonde os negros descansam.

Furtivamente ele amarra uma espessa corda em uma coluna de madeira maciça contra o dorso de seu cavalo enquanto, devido ao cansaço do trabalho forçado, os escravos sequer ouviram os seus movimentos, até ser tarde demais.

- Ora, ora, ora. Seus negros imprestáveis. Vocês me causaram um prejuízo inimaginável e agora pagarão caro. - Diz Barão com um sorriso diabólico enquanto pita seu cachimbo.

- Cara-de-Nata certa vez me disse que esta coluna é a base de sustentação de todo o túnel, e com esse método de amparo, poupou diversas colunas tendo o mesmo resultado em termos de estabilidade. - Ele segue enquanto alisa uma coluna de madeira maciça.

Os negros nada dizem. Ficam mudos com um semblante apreensivo.

- O que vim aqui dizer-lhes é: Vejo que vocês no inferno! – O Barão grita soltando fumaça pelo nariz enquanto esbofeteia a traseira do cavalo com toda sua força.

O teto do túnel começa a ruir, pedras são desprendidas das paredes que logo desabam por completo sufocando os gritos de desespero dos escravos, enterrando-os vivos naquela mina.

Barão monta em seu cavalo e sem nem ao menos olhar para trás, vai embora.

- Aonde estava? - Maria o interroga assim que põe os pés em casa.

- Fui fazer algo que deveria ter feito há muito tempo.

- Barão, o que você fez?

- Me deixe mulher! Eu não lhe devo explicação alguma! - Retruca a passos largos enquanto cambaleia rumo ao quarto.

Apesar do estado de sono profundo, um distante som de metal tilintando contra as ruelas de pedras reverberavam na cabeça do Barão ao passo de que, os pesadelos que o aflige, tornam-se, mais reais e mais terríveis. Quando acorda, ensopado de suor, vê a face de Maria, que logo o interroga:

- Meu Deus Arsénio, o que você fez? Aonde estão os escravos?

- Eles tiveram o merecido Maria.

- O pobre Cara-de-nata e a Ritinha, e agora aqueles homens! Você perdeu o juízo?

- Mulher, o assassinato só pode ser executado em pessoas Maria, e eles não são pessoas.

- Claro que são.

- Diabos Maria, nunca mais você irá me questionar nessa casa e falará sobre esse assunto! Ou fará companhia para eles naquela mina. Estamos entendidos? - Barão interrompe Maria socando a mesa.

A mulher apenas concorda com os olhos cheios de lágrimas em um choro contido.

Nesse momento, O Barão age de forma estranha. Ele inclina o rosto como se pudesse captar algum ruído.

- Você está escutando?

- O que Barão?

- Esse tilintar infernal.

- Não, eu não escuto nada.

- Droga, não sai da minha cabeça! Bom deixa para lá, tenho muito o que fazer.

Junto com os capangas, barão cavalga em direção a mina afim de verificar o estrago que sua ira causou na noite anterior. Para chegar no túnel, eles passam por uma estrada de terra que costeia a margem do rio.

Por um instante Barão pode ver um casal de negros abraçados na outra margem do rio. A face salpicada de tons brancos não deixa dúvidas quanto suas identidades. Sem titubear, ele saca sua pistola e dispara diversas vezes em direção ao casal. Os capangas assustados sacam suas armas e miram em direção ao alvo do Barão. Para a surpresa deles, apenas alguns galhos moviam-se no leito oposto do rio.

- Alguma fera meu patrão? – Chico pergunta.

- Sim. Pensei ter avistado uma onça entre os galhos.

Barão esfrega bem os olhos e se convence que foi apenas um truque de sua imaginação.

- Zé amado, vou precisar de fortes homens para retirar essas pedras. Vá até a cidade e me traga uma dúzia dos escravos mais fortes que encontrar. Diga ao velho Elias que precisarei deles por um mês.

- Sim barão. - Responde o capanga.

- Chico, deixe tudo preparado na senzala para esses novos escravos.

Chico apenas acena com a cabeça.

- Vamos ver se não tiro algum dinheiro dessa mina agora.

A tarde cai durante a volta para casa e por diversas vezes o som das correntes ecoa dentro da cabeça do Barão, fazendo o perder o controle de sua montaria vez ou outra, precisando parar mais de uma vez na beira da estrada, afim de diminuir a vertigem. Em meio ao barulho enlouquecedor em sua mente, dispara:

- Não é possível que vocês não estão escutando!

- O que foi patrão? - Pergunta Chico.

- As correntes homens. Como não podem ouvir?

Os capangas trocam olhares que denunciam o questionamento da lucidez de seu chefe. Chico esboça um sorriso.

- Isso não é uma piada imbecil. Estou quase ficando surdo com esse barulho infernal de correntes.

- O senhor deveria procurar um médico barão.

- Talvez tenha razão, quando forem a cidade, diga ao doutor que preciso vê-lo com urgência.

Os sons das correntes na cabeça do Barão infligem uma enxaqueca terrível, fazendo o vomitar, uma febre de quase quarenta graus toma o seu corpo em uma velocidade alarmante. Maria junto com suas escravas, cuidam do barão, deitando-o na cama e medicando-o. Palavras desconexas e perda de consciência confirmam o que todos suspeitam, o Barão delira.

- As correntes. - Ele repete incessantemente.

- Descanse barão. Beba esse chá, ele o fará dormir. - Diz Maria.

Barão praticamente desmaia após ingerir a bebida.

Já tarde da noite, a febre diminui e o Barão sente que novamente controla sua mente. Por ter dormido por muito tempo, uma forte sede seca a sua garganta e resseca os seus lábios, e quando ele se levanta para tomar um copo d'água, algo que vê da janela faz suas pernas tremerem, a ponto de molhar suas calças com sua urina.

- Não, não pode ser! - Ele Grita.

Vultos caminhando lentamente em fila, presos na altura do tornozelo fazendo as correntes baterem contra o caminho de pedras, ecoando o som que o assombra a dias.

- Maria! Chico! - Barão Grita com todo o fôlego.

Mas a voz não sai de sua garganta. Quando os homens se aproximam da casa, a luz da entrada revela suas identidades. Os escravos que o barão soterrou na mina estão de frente para a casa grande. Esquálidos, ensanguentados, eles o observam enquanto avançam de forma espasmódica para o interior da casa.

Com o pouco de força que resta, o Barão corre em direção as escadas, quando o grito de Maria, vindo do andar interior o acerta em cheio, fazendo as suas pernas já fracas, tremerem ainda mais. Tamanha a onda de pavor que o assola, o faz perder momentaneamente os sentidos, fazendo-o rolar escada abaixo.

Atordoado, o barão vê sua esposa inerte no chão com os olhos bem abertos, imóveis. Ao lado do corpo de Maria, Chico está encostado na parede, com os olhos fechados balbuciando algo, provavelmente o "pai nosso". - Barão conjectura entre seus lapsos de consciência.

Eis que a fila de escravos avança contra o barão, que debilitado devido à queda, não exerce nenhuma resistência.

- Chico! - O barão gritou pela última vez.

Desde a fatídica noite, nunca mais se viu o Barão. Sua esposa Maria, teve uma morte por infarto fulminante, o que causou estranheza nos médicos, pois nunca havia tido o menor sinal de doenças cardíacas e gozava de uma saúde invejável.

Pouco tempo depois, a fazenda do Barão Arsénio foi a leilão, diversos escravos e empregados continuaram a servir a nova família, incluindo Chico que passou a cuidar do gado. Ele evita a todo custo passar próximo a mina abandonada, pois jura que em algumas noites pode ouvir gritos de uma voz que conhece bem.

A voz do Barão Arsénio.

Tema: Escravidão.