PANTHORA - Tudo para Todos, Em Qualquer Lugar e Sempre - DTRL24

Rafael Mendes Aguiar, o Rafa, está traçando linhas aleatórias no tapete da sala com seus sapatos há quase uma hora. Ele está ansioso esperando a chegada de uma encomenda.

“Pai, tão tocando a campainha,” grita Fred, o filho de oito anos de Rafael.

Rafa corre pra porta, e logo volta pra sala com um grande pacote. Nele se pode ler “Panthora”, e logo abaixo, “Tudo para Todos, Em Qualquer Lugar e Sempre”.

A Panthora é uma empresa conhecida por seus produtos radicalmente revolucionários. Seu primeiro grande sucesso foi um serviço no qual se usa um aplicativo para chamar carrinhos robôs que fazem entregas de objetos de tamanho pequeno e médio. Os charmosos robozinhos logo foram apelidados no Brasil de “Jabutões” ou, simplesmente, “Butóes”. Quem não gostou nada disso foram os motoboys: butões quebrados, encomendas destruídas, e até bizarras tentativas de assassinato de quem requisitava o serviço foi a resposta dos que viam seu ganha pão ameaçado. Tentaram até lançar leis para proibir o serviço, tentaram provar que os robôs não eram seguros. Não adiantou: em quatro anos, a profissão de motoboy se extinguiu.

A mulher de Rafa, Sofia, logo aparece na sala e olha o pacote com certa apreensão.

“Tem certeza que fez a coisa certa, comprando essa impressora 4D?” pergunta ela.

Impressora 4D = impressora que imprime não só objetos simples e contínuos, mas também os feitos de várias partes separadas, tudo impresso ao mesmo tempo e já encaixado nas posições corretas.

“Claro que tenho, vamos ganhar muito dinheiro com isso,” responde o marido, otimista.

“O que exatamente você vai fazer com isso?” pergunta Sofia.

“Bom, temos muitas opções, uma infinidade de coisas que podemos fabricar, vamos analisar bem todas as possibilidades antes de agir,” diz ele.

“Tipo o quê” Sofia insiste.

“Vamos primeiro abrir e ver como isso funciona,” responde Rafael, já se virando para o pacote.

“Não sei porque você não pode fazer pão de queijo comigo,” diz ela, meio revoltada.

Ele olha para Sofia com um sorriso.

“Querida, você sabe que eu não tenho talento pra fazer comida. Nem nada repetitivo e monótono. Eu nasci para as grandes realizações.”

Sofia faz cara de sofrimento. Ela já ouviu essa conversa antes, e tem quase certeza que nunca mais vai ver os vinte mil neoreais que emprestou para o marido comprar aquela coisa. Melhor que deixar ele fazer um empréstimo e afundar a família em dívidas – mais uma vez. Mas ouvir toda aquela conversa idiota de novo? Isso é demais.

“Grandes realizações? Até hoje você não fez nenhuma realização. Nem grandes, nem médias nem pequenas. E sabe porquê? Porque você deixa as coisas pela metade, às vezes nem começa: para na ideia.”

“Desta vez não vai ser assim, eu juro. Só quero uma chance, uma só. Eu aprendi com os erros do passado, e prometo, Sofia, vou tentar não repetir. Vou fazer tudo para ser um novo Rafael: vou tentar acertar desta vez, o máximo que puder – eu juro.”

Rafael e Sofia param e ficam se olhando, cada um em dúvida sobre o próximo passo.

“Pai, abre logo esse pacote,” quebra o silêncio Camila, dissipando o clima tenso.

Ele abre o pacote, e passa por toneladas de flocos e plásticos de preenchimento, até achar, no meio de tudo, uma caixa pequena.

“Uma impressora 4D é tão pequena?” se espanta a filha.

“O que tá escrito?” pergunta Fred.

A caixa está toda escrita com caracteres estranhos, não é o alfabeto latino, nem grego, ninguém sabia o que era.

A caixa é aberta, e dentro dela há uma coisa muito diferente de uma impressora.

Uma pulseira.

“Xi, pai, mandaram a coisa errada!” diz Fred.

“Vamos ter de recorrer ao Retorno de Mercadoria Autorizada,” diz Sofia.

Com cara de frustração, Rafa examina a pulseira. Ela parece formada por duas correntes entrelaçadas, como cobras, que se entrelaçam com outras duas. Parece algo celta. A cor é cinzenta, pode ser alguma liga metálica, ou algum polímero.

“Pulseira legal, parece pra homem,” diz Camila.

“Experimenta, pai,” diz o filho. Rafael olha para Sofia, buscando aprovação.

“Experimenta, mas depois embrulha direito, temos que devolver,” diz ela.

Rafa tenta descobrir como colocar a pulseira. Ela parece não ter fecho. Ele tenta colocar enfiando a mão; entra facilmente, mas é grande demais. De repente, a pulseira encaixa perfeitamente.

Todos acham que ela ficou ótima nele. Rafael sorri, mas logo depois faz cara de desgosto. Tenta tirar a pulseira.

“Isso arde, me ajudem,” diz, agoniado.

Todo tentam tirar a pulseira, que não sai.

“Isso dói, tirem isso de mim!” todos puxam a pulseira, de repente ele dá um urro e cai para trás.

“TIREM ISSO DE MIM!” ele grita, em pânico.

“Querido!” grita Sofia, “Pai,” gritam os filhos, todo tentam ajudar, Rafa se senta no chão e olha desesperado para o pulso.

A pulseira tinha desaparecido. No lugar, estava uma tatuagem, reproduzindo sua forma: duas correntes duplas entrelaçadas.

Rafael olha a tatuagem de boca aberta, olhos amedrontados, quando, de repente, a tatuagem começa a crescer em direção ao seu braço. Ele tenta acompanhar com o olhos, como se um rato estivesse subindo pelo seu braço, até que ela chega ao ombro; ele tira a camisa, corre até o espelho da sala, e vê na imagem refletida a tatuagem crescer pelo seu peito e costas, descer pelas pernas, até reproduzir a mesma forma da pulseira nos calcanhares.

“Me ajude, Sofia,” diz o marido, agarrando Sofia pelos ombros.

“Vamos pro hospital,” diz Sofia. Ela tenta sair, mas as mãos de Rafael não a soltam.

“Me solte!” ela grita. Ela se debate, ele faz tudo que pode para soltá-la, tudo é inútil: as mãos dele parecem grudadas. Sofia começa a se transformar: os olhos afundam nas órbitas, os lábios retraem expondo os dentes, o rosto murcha deixando os músculos do rosto visíveis, a pele se torna cinza e seca. As sobrancelhas caem, os cabelos também, em poucos minutos ela se transforma em uma múmia seca diante dos olhos do marido, que grita e chora descontrolado. Ela solta gritos e gemidos inumanos enquanto seu olhar transmite uma agonia infinita. Quando, depois de um sofrimento sem fim, ela finalmente morre, as mãos se soltam.

“Você matou a mamãe!” grita Camila; o pai grita de horror, Fred também grita. A tatuagem parece mudar de forma: as correntes ficam mais grossas, os músculos dos braços e pernas parecem pulsar por um instante. Rafael caminha até a parede, e cada passo é como uma marretada no chão, como o passo de um gigante, voam pedaços do piso para todos os lados. Ele soca a parede, um pedaço dela voa, Rafael cai no chão.

A filha chora desesperada, o irmão chora junto dela.

“Me ajude, por favor!” O pai se aproxima da filha, que grita; as mão dele tocam no pescoço dela, que começa a murchar, murchar, até virar uma múmia, morre em agonia como a màe, o irmão grita e, com as mãozinhas, tenta soltar o pescoço da irmã. Quando ela morre, os braços do pai se abrem de repente, jogando o menino contra a parede com enorme força. Ele é esmagado, o pai corre para ele, mas é tarde para fazer qualquer coisa.

Rafael anda pela casa descontrolado, grita e soca tudo na a casa, com força descomunal, tudo é destruído: sofá, mesa, cadeiras, geladeira. Ele para, olha para as mãos, o olhar alucinado.

Ele está só: completamente só. Nada mais resta. O homem cuja vida acaba de ser destruída sem que saiba exatamente como nem porque sobe a escada devagar, degrau por degrau: A cada passo, pedaços da escada se estraçalham com a força das pisadas. Entra no quarto, quebra o armário embutido com um soco, e no fundo de uma gaveta, vê seu revólver. Um sorriso cobre seu rosto, finalmente vai encontrar a paz, o fim daquela loucura.

Rafael aponta a arma para o ouvido direito e fecha os olhos.

A campainha toca.

Ele abre os olhos, espera uma momento. A campainha toca de novo. Mecanicamente, Rafael se levanta, desce as escadas, abre a porta. Um sorridente rapaz loiro, vestindo um terno bege, o cumprimenta.

“Boa tarde, o senhor é Rafael Mendes Aguiar?” Rafael responde fazendo que sim com a cabeça.

“Prazer. Eu me chamo Norbert Stern. Sou representante da Panthora. Detectamos um erro no departamento de logística. Parece que enviamos o produto errado.”

Rafa faz que sim com a cabeça, o olhar vazio, como em um transe.

“Será que eu posso entrar?” diz Norbert. Rafael abre a porta, o rapaz loiro entra e olha para os móveis destruídos, os cadáveres secos, o menino esmagado na parede, sem esboçar nenhuma reação; seus olhos só brilham quando ele vê a caixa aberta em cima da mesa.

“Ah! Houve mesmo um engano,” ele diz, pegando a caixa.

“O senhor desejaria ficar com o produto que recebeu por engano? É seu direito.”

Rafael faz que não vigorosamente com a cabeça. “Então com licença,” diz Norbert, segurando o pulso de Rafa, que sente, de súbito, um espasmo; um calor percorre todo o seu corpo, o sorriso do rapaz loiro fica ainda mais brilhante quando ele diz: “Só vai demorar um instante.”

Logo a pulseira surge no pulso de Rafa, Norbert a remove e guarda na caixa. Rafael olha para os braços, vê que as tatuagens desapareceram.

“Nós enviamos o produto errado, e sem nenhum manual de instruções em seu idioma,” diz o rapaz para Rafa, sério, mas simpático, “logo, assumimos toda a responsabilidade. Senhor Aguiar, o senhor sofreu algum tipo de dano ou prejuízo devido a uso indevido do produto?”

Ele faz que sim, lágrimas escorrendo dos olhos.

“Eu entendo,” diz Norbert, dando uma rápida olhada em volta. “Em nome da Panthora, peço desculpas por todo o inconveniente que nosso engano tenha causado ao senhor e a sua família.”

Rafael está atônito, olhar vidrado, sem saber o que dizer ou fazer.

“Agora, para melhor atende-lo, precisamos que o senhor nos preste algumas informações: os problemas se limitaram à sua residência? Nenhuma pessoa ou objeto afetados saíram desta área? E finalmente, mas não menos importante: tudo se deu em menos de vinte e quatro horas?”

Ele faz que sim com a cabeça, parecendo um títere.

“Tenho boas notícias para o senhor, Sr. Aguiar:” diz o rapaz loiro, cheio de entusiasmo, “Nós estornaremos o valor que o senhor pagou pelo produto hoje mesmo; e amanhã o senhor receberá o produto correto, inteiramente de graça!”

Norbert espera um instante antes de prosseguir.

“E não é só isso! Nós arcaremos com todas as despesas e qualquer inconveniente causado será imediatamente corrigido. Panthora: Tudo para Todos, Em Qualquer Lugar e Sempre!”

***

A campainha toca.

“Pai, chegou alguma coisa,” grita Fred, olhos com brilho de novidade.

“Deve ser a impressora,” diz Rafael, que vai atender a porta e recebe um pacote.

“Espero que eles não tenham se enganado desta vez,” diz Sofia.

“O que foi mesmo que eles mandaram ontem?” perguntou Camila.

Sofia fez cara de quem faz força tentando lembrar, até desistir e perguntar: “Rafa, você lembra o que eles mandaram ontem por engano?”

“Não lembro, não lembro de quase nada que aconteceu ontem. Mas não importa, o que importa é que eles tenham mandado a coisa certa desta vez.”

Ele desembrulha a caixa, e depois de uma montanha de flocos de preenchimento, encontra uma pequena caixa.

Um objeto que parece um tijolo de plástico amarelado.

“Isso é uma impressora 4D?” pergunta Sofia.

Rafa olha todos os lados do objeto, e vê que, no meio do que poderia ser a face superior, há um disco que parece um botão. Ele aperta, e o tijolo começa a desdobrar suas faces, caindo no chão. Ele continua a desdobrar faces, que se tocam parecendo que estão tentando formar uma figura geométrica, como um origami se montando sozinho.

O objeto continua se desdobrando e autoorganizando, até formar um objeto de mais de um metro de altura, como uma semiesfera aberta na parte superior e frontal, apoiada em uma base semelhante a um cilindro, aberto na frente.

“Um poltrona?” Camila se espanta. “Então mandaram de novo a coisa errada?”

“Vamos ter que trocar de novo!” reclama Rafa.

“Que poltrona linda, deve ser de grife,” diz Sofia, fascinada.

“Por que você não experimenta, mãe?” pergunta Fred.

Rafa faz um gesto convidando sua mulher a sentar. Ela sorri.

“Tá, vou sentar só um pouquinho.”

FIM

TEMA: Objetos Assombrados + Um pouco de Solidão