A Vacina - DTRL24

“Os intelectuais são os "comissários" do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1)do consenso "espontâneo" dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce "historicamente" do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal que assegura "legalmente" a disciplina dos grupos que não "consentem", nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo.”

Antonio Gramsci.

Prelúdio

O Sr. V., um homem com idade em torno de 60 anos está sentado na sala de sua casa assistindo a um programa de televisão. Na tela vê-se, à esquerda, um homem de terno escuro, sentado em um sofá, entrevistando outro homem, sentado à direita, de jaleco branco.

Entrevistador: Doutor, fale-nos sobre o vírus (...).

Entrevistado: é uma infecção viral aguda do sistema respiratório, de distribuição global e elevada transmissibilidade. Os vírus (...) são compostos de RNA de hélice única, da família dos Ortomixovírus, e subdividem-se em três tipos I, II e III, de acordo com sua diversidade antigênica. Os vírus podem sofrer mutações, ou seja, podem passar por transformações em sua estrutura. Os tipos A e B, comparados ao tipo C, têm maior poder de morbidade e mortalidade. As epidemias e pandemias, geralmente, estão associadas ao vírus (...).

Entrevistador: e quais os sintomas?

Entrevistado: A doença inicia-se, clinicamente, com a instalação abrupta de febre alta, em geral acima de 38ºC, aferida ou mencionada, seguida de mialgia, dor de garganta, prostração, dor de cabeça e tosse seca.

A febre é o sintoma mais importante, com duração em torno de três dias. Com a progressão da doença, os sintomas respiratórios tornam-se mais evidentes e mantêm-se em geral por três a quatro dias, após o desaparecimento da febre.

I

Uma mulher prostrada em uma cama de hospital. Tosse, secreção verdeavermelhada. Seu estado começa a piorar e ela tenta chamar socorro e vomita. Um enfermeiro entra apressado na enfermaria junto com o Dr. C., mas a mulher já está morta.

O Dr. C. sai do hospital, entra no carro e dá a partida. No caminho, vê cartazes e out-doors espalhados pela cidade divulgando as datas que cada grupo, divididos por faixa etária, deve se vacinar.

O transito está lento. Impacienta-se, quer chegar em casa. Quarenta minutos depois enfim descobre o motivo do engarrafamento. Uma manifestação em protesto... a que exatamente? Os manifestantes, em sua maioria, já se dispersaram, ficaram no chão marcas de conflito. Há carros de polícia por todos os lados, também algumas ambulâncias. Depois ele saberá pelo jornal o que aconteceu.

Interlúdio I

Entrevistado: o objetivo principal da vacina é contribuir para a redução de morbimortalidade pelo vírus (...) e manter a infraestrutura dos serviços de saúde para atendimento à população. Essa vacina foi distribuída mundialmente a partir da Áustria, onde foram deliberadas as medidas que os governos do mundo inteiro teriam que tomar para levar suas populações para os postos de saúde. Começaremos a vacinação pelos chamados “grupos prioritários”, isto é, trabalhadores da saúde, população indígena aldeada, crianças com idade entre seis meses e menores de 2 anos, gestantes, doentes crônicos, pessoas com mais de 60 anos.

[ pessoas morrendo em corredores de hospitais sem leito,

filmes de bang-bang em que índios são mortos por cowboys loiros de olhos azuis

índios remanescentes lutam para não serem varridos de vez pelo progresso,

holocausto, bomba atômica, apartheid, colonianismo, governos genocidas, milhões investidos em poderio bélico, armas químicas e biológicas.

Miséria...]

II

O Dr. C. entra no hospital, anda pelos seus corredores e vê os funcionários enfileirados para tomar a vacina, ouve uma enfermeira falar, em tom de troça: “estamos como bois para o abate” (risos).

Em seu consultório, Dr. C. preenche uma folha de papel, diante dele, uma mulher gestante, 27 anos, negra.

Dr. C.: você tomará essa medicação.

Mulher: do que se trata?

O Dr. C. olha pra ela sério e fica em silêncio por um instante.

Dr. C.: é um anti-inflamatório.

Mulher: não tem contraindicações?

O Dr. C. solta um suspiro impaciente.

Dr. C.: a senhora tem alergia a algum medicamento?

Mulher: não.

Dr. C.: então não há contraindicações.

Mulher: tudo bem. Só mais uma coisa. A vacinação contra o vírus (...) é obrigatória?

Dr. C.: é recomendada.

Mulher: hum... então eu não vou tomar.

Dr. C.: por quê?

Mulher: o senhor não sabe? Essa vacina tá contaminada com um vírus ainda mais forte e letal. Depois de terem lucrado milhões com a venda para governos do mundo inteiro, agora vão matar 2/3 da população e controlar o restante por meio de microships e drogas inseridas em alimentos, bebidas e outros produtos industrializados. Além disso, a vacina vai também esterilizar os sobreviventes e provocar abortos, para que todos os bebês, a partir de então, sejam produzidos artificialmente em laboratórios. Isso se chama higienização.

Ele olha para a mulher com uma expressão entre o espanto, a descrença e a indignação.

Dr. C.: Eles quem?

Mulher: as organizações secretas.

Dr. C.: olha, não sei de onde a senhora tirou essas loucuras, provavelmente de algum filme de futurismo distópico ou desses sites que propagam teorias da conspiração feitas por lunáticos paranoicos depressivos ou por oportunistas em busca de notoriedade. No entanto, essas pessoas são qualquer coisa, menos médicos. Essa vacina foi produzida por profissionais renomados e distribuída pela Organização Mundial da Saúde. Ou seja, por pessoas que sabem o que fazem. Então minha senhora, escute quem tem diploma, vá lá e tome sua vacina se quiser se proteger e proteger seu filho.

Em silêncio, a mulher olha para o Dr. C. por alguns segundos

Mulher: tudo bem, doutor. Obrigada!

A mulher sai do consultório.

Dr. C.: pobre é burro mesmo!

Interlúdio II

Cena 1. Externo/dia: um homem fazendo cooper em uma praça arborizada.

Voz OFF: hoje você pode estar sadio e ativo.

Cena 2: o mesmo homem prostrado em uma cama, muito suado e com uma respiração difícil.

Voz OFF: mas amanhã, o vírus pode pegar você.

Letreiro: Vacine-se contra o vírus (...)

Ministério da saúde.

Cena 1. Interno/dia: uma mulher na sala de sua casa, sorridente, brincando com seus filhos.

Voz OFF: hoje você pode estar feliz rodeado das pessoas que ama.

Cena 2: a mesma mulher prostrada em uma cama, molhada de suor e com dificuldade de respirar.

Voz OFF: mas amanhã, o vírus pode pegar você.

Letreiro: Vacine-se contra o vírus (...).

Ministério da Saúde.

III

O Sr. V., está sentado no sofá diante da televisão. Toca o telefone. Ele fica imóvel. Close no seu rosto. Uma expressão desconfiada e aflita. O telefone não para de tocar. Enfim ele se levanta e atende.

Sr. V: alô!

Voz no telefone: Senhor V.?

Senhor V.: ele mesmo.

Voz no telefone: aqui é da secretaria municipal de controle de endemias. Estamos telefonando para notifica-lo que ainda não compareceu para tomar sua vacina contra o vírus (...) e o prazo está acabando. Por favor, dirija-se ao posto de vacina mais próximo. É para o seu próprio bem.

Sinal de ocupado.

O Sr. V desliga o telefone e fica de pé olhando-o.

Interlúdio III

Entrevistado: Estamos agora na fase de mitigação e nossos gráficos já apontam para um crescimento no número de casos confirmados da pandemia. O que é alarmante. Por isso, nossa meta é vacinar pelo menos 80 % da população. Para isso, estamos buscando estratégias diferenciadas de mobilização das várias camadas da população. Seja por meio de propagandas e anúncios publicitários em diversas mídias, seja por meio de notificações individuais àqueles que nossos controles de segurança municipais identificaram que não compareceram à vacinação, sobretudo os membros dos “grupos prioritários”.

IV

O Dr. C. coloca uma máscara respiratória, luvas brancas e entra numa sala. Nela, está uma mulher grávida prostrada em uma cama e um enfermeiro.

Dr. C.: e então?

Enfermeiro: ela está piorando. Há grandes riscos de perder o bebê.

Dr. C.: aqui está a ficha dos exames. Não é o vírus (...), mas outro, muito parecido e mais forte, talvez uma mutação. A ficha dela diz que foi vacinada há aproximadamente um mês.

O Dr. C. se aproxima e olha para a mulher mais de perto. Sua paciente pobre e burra, e agora, doente. Ele está assustado, sai da sala e entra em seu consultório. Pega o telefone e disca um número.

Dr. C.: Alô! Aqui é o Dr. C. e quero fazer uma notificação de um possível caso de Eventos Adversos Pós-vacinação. É uma mulher, 27 anos, está gestante de 7 meses. Tudo bem vou aguardar.

O Dr. C. está na sala da paciente com uma equipe. Todos estão vestindo máscaras de respiração e luvas brancas.

- Vamos levar esse material para análise, dentro de uma semana poderemos dar um diagnóstico. Enquanto isso, a orientação é que a mantenha em observação - Diz o homem enviado pela Secretaria de Saúde, em resposta à notificação do Dr. C.

Dr. C.: mas ela está piorando e sofre um risco muito grande de perder a criança e até mesmo de morrer.

- Bem... as orientações são essas. Boa noite!

O personagem sai com sua equipe.

V

O Sr. V está sentado no sofá de frente para a televisão. Seu rosto reflete as luzes e as cores da TV. Toca o telefone. Ele permanece imóvel.

[a democracia nunca existiu. Os aparelhos coercivos do estado servem aos interesses das classes dominantes e se camuflam por meio das mídias, disfarçados de boas intenções. O “voluntário” esconde o “forçado”.]

O telefone continua tocando.

[quando a tarefa ideológica não é suficiente, é hora da fase 2.]

Ele se levanta e atende o telefone.

Voz no telefone: Sr. V.

Sr. V: sim.

Voz no telefone: O senhor não compareceu no posto mais próximo para se vacinar. Estamos enviando uma equipe à sua casa para aplicar a vacina. Não tente sair, o senhor está em regime de reclusão domiciliar.

Sinal de ocupado.

O Sr. V. fica de pé olhando para a o telefone. Volta-se continuamente para a porta e de novo para o telefone. Tem uma expressão alarmada.

Batem na porta. O Sr. V. fica parado com uma expressão apavorada. Batem novamente com mais força.

Voz atrás da porta: Sr. V.! Abra senão seremos obrigados a arrombar a porta.

O Sr. V. corre para a janela. Batidas acertam a porta que começa a ceder. O Sr. V. abre a janela e pula. A porta se abre e aparecem três homens. Um vestido de branco, com luvas e máscara de respiração e os outros dois com roupas militares também usando máscaras.

VI

O Dr. C. anda apressado pelos corredores do hospital. Pessoas prostradas em agonia estão espalhadas por todos os lugares. Ele encontra um enfermeiro.

Enfermeiro: mais dois pacientes morreram, doutor.

O Dr. C. olha para o enfermeiro com uma expressão de desespero. Vai correndo para seu consultório, pega o telefone, disca um número e aguarda.

Voz no telefone: secretaria municipal de controle de endemias, boa noite!

Dr. C.(alterado): Pelo amor de Deus, já é a milésima vez que ligo pra vocês! As pessoas estão morrendo, os funcionários do hospital estão todos morrendo, não tenho leitos, o que diabos está acontecendo?

Voz no telefone: quem fala, por favor?

Dr. C. (gritando): Merda, é o Dr. C.!

Voz no telefone: Doutor, aguarde só um momento que nossa equipe já está chegando à sua unidade.

Sinal de ocupado. O Dr. C. fica parado olhando para o telefone.

Vários carros militares e ambulâncias param na frente do hospital, deles saem homens vestidos de branco e militares, todos com máscaras. Um homem de branco acompanhado de dois militares entra no hospital.

Homem de branco: quem é o diretor do hospital?

Dr. C: Sou eu.

Homem de branco: não é mais. Você e todos os funcionários não estiverem apresentando os sintomas têm dez minutos para sair do hospital. Ele será isolado e está sob nossa direção.

Dr. C.: Espera aí, mas quem são vocês?

Homem de Branco: seus dez minutos estão passando e o senhor não vai querer perde-los.

O Homem de branco vira para alguns militares e com gestos, ordena que retirem os funcionários do hospital.

Dr. C.: Mas porque nós temos que sair?

Homem de branco: porque a Nova Ordem tem planos para vocês.

Dr. C. (alterado): eu não vou pra lugar nenhum, eu vou ficar aqui.

Um militar o agarra e o retira à força do hospital.

VII

O Dr. C. vaga desorientado pela rua com um olhar apavorado. Não há ninguém na rua, passam apenas carros iguais aos que estacionaram na frente do hospital. Um foco de luz, vindo de um helicóptero em voo rasante, incide sobre ele. Olha pra frente. Um homem corre em sua direção. É o Sr. V.

O Sr. V corre apavorado pela rua deserta perseguido por um carro. O carro o ultrapassa. Dele descem dois militares que o agarram e o arrastam pra dentro. Close no rosto do Sr. V que olha para um ponto indefinido. Plano detalhe em seus olhos. Em letras de neon em um telão no alto de um prédio aparece a inscrição:

assassina

a vacina

a sina

sinal

Tema: doenças

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Francisco Ewerton
Enviado por Francisco Ewerton em 28/08/2015
Reeditado em 03/09/2015
Código do texto: T5362684
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