Dentro - DTRL24

Eu crescera aprendendo que não devíamos nos aproximar do quartinho nos fundos do quintal. Havia, inclusive, uma proibição para não tocarmos no assunto. Ele ficava lá, só, e nós dentro de casa, longe de tudo e todos, fingindo que não estávamos curiosos sobre o que minha mãe e meu pai guardavam em seu interior.

—Filha! Vai aguar os vasos de planta!

Virei-me de soslaio naquele dia, esperando encontrar o rosto cadavérico de minha mãe por detrás da fumaça do cigarro.

—Vai rápido que hoje temos visita. E depois trate de tomar um banho pra tirar essa inhaca do corpo e lavar os cabelos pra tirar a poeira.

—Tá bom, mãe. Precisa regar aqueles do fundo?

—Não! É... —Ela sempre ficava confusa quando falava do cômodo. Eu achava realmente que não era nada, apenas uma dispensa de velharias da roça. Alguns sacos de farinha... Enxadas e tudo mais... Eu era tão ingênua aos meus seis anos...— É... Pode deixar que eu rego amanhã.

—Mas eles tão morrendo... — Eu sempre implicava quanto às flores do fundo do quintal... Pareciam esquecidas. Não sabia por que a mamãe nunca quis podar o mato que crescia por aquelas bandas. Algumas árvores já escalavam as paredes do cômodo e cobriam parte de seu telhado.

—E daí? Se morrer, planto outro. Agora vai que eu tô acabando de assar um bolinho de laranja pra gente comer “cá” visita.

Por um instante, permaneci estagnada tentando imaginar quem tão importante nos viria visitar ali na roça...

— Vai, vai logo... Senão te sento a chinela!

Eu sabia que não era um blefe, então prontamente tomava rumo.

O quintal estendia-se da casa até os fundos do terreno, onde o cômodo ficava. Era uma distância de mais de 300 metros. Quando eu me aproximava demais de lá, eu sentia o lugar emanando muita escuridão e frio( muito frio), fora o medo apenas de olhar para o cômodo sem janelas, com uma portinhola pequena e enferrujada.

—Já aguou tudo? — Minha mãe era impaciente. Sem olhar para trás, continuei fazendo meu trabalho. Tentava sempre me concentrar, mas a curiosidade era maior e eu acabava fitando as paredes velhas com correntes do tempo dos escravos penduradas perto da porta. — Que você tá bisbilhotando lá?! Trata de acabar logo com isso!

A figura de minha mãe era às vezes assustadora, mas eu conseguia enxergar algo mais em seus olhos. Algo que naquela época eu não era capaz de entender.

—Tá bem. Só falta um pouco.

Como uma maria-fumaça, mamãe voltava sempre deixando um rastro de cinzas pelo chão e uma nuvem acinzentada rodopiando no ar.

O cheiro me deixava tonta na maioria das vezes. Ao do cigarro já me acostumara (minha mãe fumava até mesmo no banheiro), todavia, nunca me acostumaria à carniça que vinha do quartinho. E, por mais que eu tentasse, não tinha como ignorar o fétido odor de urina e fezes que eu sentia na época de calor.

Nos últimos dias, mamãe e papai pareciam estar lutando para não chegar perto de lá. Eu praticamente não tirava os pensamentos do que poderia estar guardado ali dentro. Como uma criança curiosa e criativa, perdia-me pensando. Devaneava.

Tinha sido atraída por diversos barulhos estranhos... algo arranhando o metal da porta. Seria um animal?

Alguns passos pesados e o arrastar de correntes: Barulhos fantasmagóricos, grunhidos animalescos e meu coração disparado.

Eu não percebera antes que já estava bem próxima dele. Tinha me descuidado demais...

Então, o cômodo gritou.

Caí assustada, derrubando comigo o regador. Durante um minuto que pareceu eterno, fitei a porta metálica emanando pavor. Era um grito sofrido, de uma coisa moribunda e fraca. Um grito de morte. O normal seria correr, mas eu estava totalmente atraída pelo mistério que poderia estar lá dentro.

Virei-me, levantei-me lentamente e comecei a andar, esquecendo-se de tudo que acontecia ao meu redor. De repente, silêncio. No meio do furacão, calmaria. Eu estava absorta.

Estava a poucos metros de distância. Eu pisava na sombra da mangueira plantada ao seu lado. Estaquei e encarei a portinhola. Havia, ali, uma pequena abertura na parede de concreto. Uma fresta. Eu queria saber o que gritava lá dentro. Eu... Eu... Não me contive...

Avancei a passos lentos, ao mesmo tempo com temor e curiosidade. Sentia meus músculos tremendo, e meu coração acelerando, despejando adrenalina por todo o meu corpo.

Toquei o metal frio da porta pesada. Fitei a tranca por alguns segundos, vacilando. A coisa lá dentro parou de gritar; meus olhos ficavam cada vez mais esbugalhados. Começou então uma série de estampidos fortes, murros. A coisa estava batendo na parede com voracidade, e também socando a porta. Aquele som ribombou por meus ouvidos.

Subitamente, os estampidos pararam de ecoar, e eu escutei um barulho de mastigação. Depois, parecia alguém comendo torresmo, algo crocante... E prosseguia, com o som estarrecedor... Um barulho agoniante de metal sendo arranhado...

Fiquei paralisada quando um filete vermelho de sangue escorreu pela soleira da porta. Senti um líquido escalando minha garganta; um gosto terrivelmente amargo veio a minha boca e deixou-me tonta.

Contudo, senti-me impelida a abrir a porta; espiar. Um clangor metálico acompanhou-me na abertura e um feixe de luz irrompeu na escuridão dentro do cômodo.

“Slaaasshh”

Por algum tempo, as partículas de poeira dançaram no ar e aos poucos foram afundando nas trevas. Até que a coisa revelou-se aos meus olhos de criança.

Era um ser sujo e moribundo. Lembrava uma galinha depenada, mas era muito mais parecido com um humano. Um resquício de humanidade, que o envolvia no nariz fino e pontudo e nos lábios rachados e secos como o solo do sertão, fez-me chorar. Sua boca estava manchada de sangue com tripas se pendurando nos cantos. Ele sorria para mim?

Ali, dentro daquele quarto escuro, criávamos um monstro. Um monstro que sorria (ou será que mostrava os dentes amarelados e apodrecidos instintivamente?).

Foi naquele exato momento que reconheci seus olhos vazios. Glóbulos azuis anuviados e perdidos na solidão da cegueira. Encarando ao mesmo tempo o infinito e o vazio.

Ele não sabia que "eu" estava ali.

Então deixou cair um peso morto, que rolou e parou ao chegar a meus pés. Um rato devorado, do qual apenas a cabeça estava intacta. O bicho agonizava no chão, sofrendo seus últimos segundos de vida.

Um pedaço do que seriam as tripas do rato pendia da mordida na barriga. As patas asquerosas estavam contorcidas de forma fisicamente impossível, em um ângulo tenebroso. Mais sangue jorrou do coraçãozinho do bicho, que batia uma última vez, do lado de fora do corpo. A espinha dorsal perfurava algumas lascas da carne que insistira em ficar grudada no couro do rato.

Descobri a origem do barulho de alguém comendo torresmo.

-Argh! – Não me contive em um esgar de nojo.

Tossi e senti o amargo gosto voltando novamente à boca. Desta vez, não consegui engolir o bolo que subira, e acabei botando-o para fora. O vômito respingou sobre o corpo do rato como se fosse uma chuva pesada, e depois sujou a ponteira dos meus sapatos. Contorci-me enquanto o estômago expulsava tudo que estava lá dentro.

Foi quando ouvi um pesado som de correntes tencionando-se. O metal rangendo e se arrastando no chão. Voltei o olhar para a coisa, parada na saída. Ela me retribuiu com uma baforada de um hálito pútrido, bufou fortemente e agigantou-se quando se ergueu.

Novamente mostrou os dentes, vermelhos.

Tremi nas bases.

Estava a ponto de desabar de pavor quando uma mão gelada tocou em meus ombros e fez percorrer um calafrio pela espinha. Olhei rapidamente, com os olhos marejados.

—Disse pra ficar longe daqui! — A figura de minha mãe tinha um tom maníaco na face. Sob as sombras de suas sobrancelhas, eu conseguia ver um brilho diferente em seus olhos.

Senti uma pressão imensa na carne onde ela tocava, e em um piscar estava estatelada no chão. Bati com força a cabeça no chão e vários pontos negros surgiram a minha frente. Em meio aos pingos de escuridão, um homem apareceu, vestindo jaleco branco e portando uma seringa pequena com um líquido esverdeado dentro. “Dr. Bacamarte, alienista”, estava escrito em sua credencial.

Lentamente, vi a criatura deixando sua toca, levada pelo homem. Esquálida miséria da vida humana; imunda.

Deitei minha cabeça de lado, latejando sob pressão. A realidade ficou difusa, sobrando-me a imagem do rato dilacerado. A face da escória que eu acabara de presenciar.

***

-Obrigada, doutor. Chegou antes do que eu esperava. Ele tava ficando difícil de aturar. Só não volta com ele aqui nunca mais.

Temas: Solidão e doenças.

Obrigado a todos que leram e comentaram. Vocês me fazem crescer... Por dentro...

Walter Crick
Enviado por Walter Crick em 28/08/2015
Reeditado em 30/08/2015
Código do texto: T5362749
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