Submundo DTRL 24

De tempos em tempos, não de forma constante, as sombras dos carros, passando por cima dos bueiros, ocluiam os dois olhos sem vida que escondiam-se ali embaixo. Digo, quatro olhos. Embora todos já estejam praticamente mortos, dois deles permanecem vidrados, mas vivos.

Com rápidas passadas na luz do dia, os dois globos oculares, já sem vida, voltavam para a escuridão dos esgotos. Os ratos, quando não são parte da refeição, andam ao lado do cadavérico corpo perdendo-se na escuridão. A solidão é o pior cárcere que o ser humano pode experimentar em vida. A solidão corrói, destrói e danifica cada pedaço de carne existente.

A leve brisa faz pairar um papel que outrora estava preso no poste. Em letras garrafais:

PROCURADA

**

" Davi, certo? Tubo bem, Davi? Sou Sofia, terapeuta ocupacional. Vamos desenhar e fazer alguma coisa que goste?"

"..."

"Não quer conversar, Davi?"

"Posso pedir para tirarem essa camisa de força? Você vai se comportar?"

"..."

"Davi, eu já lhe disse outras vezes para você não ser agressivo. O que você ganha com isso?"

"..."

Barulho de porta fechando.

***

Não tenho nada da minha vida do que me orgulhar. Absolutamente nada. A começar pela minha família: filho único e pais ausentes; poucos amigos e um maldito lábio leporino. Esse último defeito físico, me dava o título de monstro mal feito. Esqueci de mencionar minha grande timidez, essa nem preciso comentar.

A única que vez que cheguei numa mulher para conversar, tinha 12 anos e aconteceu na oitava série. Seu nome era Letícia. Toda perfeita e toda esnobe.

" Davi, você vai chegar mesmo na Letícia hoje? Você ficou louco?"

Cláudio era a única pessoa que podia chamar de amigo. Deficiente físico, sempre estava com as mãos ocupadas andando para lá e para cá com sua cadeira de rodas. Combinávamos no quesito timidez, mas tratava sua deficiência com mais simplicidade do que eu com meu lábio leporino.

"Eu vou tentar chegar nela sim. Todos acham que ela gosta de mim."

" Boa sorte. Eu só quero ver. O pessoal deve é estar tirando sarro. Como sempre. E você bem sabe disso."

O relógio marcava 08:45 da manhã. Em passos largos, os minutos passavam como segundos. O frio e a sensação incômoda na barriga, aumentavam cada vez mais. Em minutos alternados, Cláudio me olhava da sua cadeira ao lado da carteira da professora.

O sinal dispara.

Do banco onde Letícia estava para minha sala, eram quarenta e seis passos contados. Se fosse um pouco mais para o lado, eram cinquenta. Aumentava tudo isso porque tinha que dar a volta na mesa. Já fiz essa conta muitas vezes, mudando meu trajeto uns 7 passos antes para ela não perceber. Embora o pátio estivesse barulhento, estava preso em meu próprio silêncio, ensaiando uma cantada. Sentia, também, os olhos e risadas atrás de mim. Davi passou do meu lado quase acertando a roda da sua cadeira na minha perna. Estava mais nervoso que eu. Pelo menos achava que estava.

'Final do passo 46...'

"Ehh... Oi, Letícia..."

Letícia era uma loira charmosa. Seus dois olhos verdes eram grandes repressores de olhares insignificantes como o meu. Gostava muito de seu All Star vermelho, talvez pelo fato de sempre encará-la com a cabeça abaixada. Também achava que ele combinava com sua cândida pele.

" O que você quer garoto?"

Ao fundo, as risadas tornaram-se mais densas. Minha cabeça voltou para sua insignificância e voltou a enxergar o que estava acostumada, o chão.

"Sabe, eu gosto muito de você. Pensei que..."

Letícia mastigou ferozmente seu chiclete antes de cuspir. Após, levantou e me disse com seu dedo indicador em riste:

"Quero que me faça um enorme favor: Nunca mais fale comigo. Como gosta de mim sem nem me conhecer? Isso tudo é carência? Se enxerga, garoto - olhou com nojo meus lábios ensaiando um vômito com seu dedo indicador na sua boca aberta. - E você acha mesmo que teria alguma coisa comigo com essa sua boca horrorosa?"

Não sei o momento certo que o sinal bateu. Cláudio me puxava pela camiseta já há algum tempo.

"Vamos, Davi. A aula já vai começar..."

O pátio rodava. A morte, em momentos como esse, era algo muito bom a se pensar.

Na sala de aula, o relógio passou a rodar de modo normal. Lento e nada animador.

**

" Boa noite, Davi. Você não esta arrumado? Olha, tenho essas bom..."

Era noite de véspera de natal. Sempre odiei aquelas luzes, a hipocrisia e a amizade universal.

"Não. Eu não vou sair. Você sabe muito bem que..."

"Mas eu comprei pra você essas b..."

Cláudio deixara cair todas bombas no chão ao tentar tirar do bolso para me mostrar.

'Esqueci de contar algumas pequenas histórias, leitor. Peço que me perdoe. Mas tentei algumas vezes tirar minha vida. Consegui cortar, com uma navalha, um nervo do meu pulso, mas não a artéria. Tomei veneno para ratos, mas antes que pudessem adentrar meu estômago, foram jogados da garganta com jatos de vômitos. Uma outra vez, tentei jogar-me de cima da passarela que corta uma avenida próximo da minha rua, mas estava frio e o vento me deu uma vertigem enorme e, previsivelmente, não consegui continuar. Sou covarde demais para morrer.

Gostava muito de sair nas noites de natal e ano novo para estourar algumas caixinhas de correio, mas esse último natal, as malditas luzes e a vergonha de Letícia, que morava ao lado da minha casa, me fizeram remoer meus próprios sentimentos'.

***

Era uma noite fria do mês de Junho de um ano qualquer, um bêbado ultrapassou velozmente a faixa de pedestres jogando para os céus um corpo que outrora vivia numa cadeira de rodas. Cláudio morrera tão cedo. Ali, na minha frente. Após um baque seco, sua cabeça dividiu-se tingindo o chão de vermelho. As casas desligaram, abruptamente, suas luzes o carro do desgraçado abraçava o inerte poste. Eu não consegui chorar, nem mesmo depois de enfiar alguns vidros no pescoço do motorista que ainda agonizava anestesiado pela cachaça. Uma morte pela morte, preço justo a se pagar. Começou a garoar, e os olhos curiosos já saíam de suas casas para ver aquele espetáculo. Segui, mesmo sem rumo, para as ruas negras. A maior aberração ainda andava e respirava.

A noite nem começou direito e é a sexta morte que vejo hoje. Ou participo.

Meu esgoto me esperava. Minha dama também. Um lar apropriado para mim. Digo, para nós.

***

Já fazem oito dias que não saio para ver a luz do sol. Por enquanto o sabor dos ratos, tem gosto de frango, ainda me agradam demais para sair. Pensa muito errado quem acha que esgoto é lar apenas de merdas, ratos e baratas. A vida noturna aqui dentro é algo sensacional. Há insetos voadores, os já ditos ratos e baratas, lagartixas, as águas que carregam todo um ecossistema de vírus e bactérias que podem, sim, viver conosco em harmonia. As galerias são um show de arquitetura a parte. Sou mais querido, e visto, aqui do que qualquer outro lugar. Eu gostava de ouvir o sussurrar e a doce voz suplicante voz de Letícia aqui embaixo. Mas só escuto os gemidos, após a célebre boca ser costurada depois de muitos avisos e advertências. Seu perfume prevalece, mesmo diante de tudo. Durmo numa galeria separada dela, o que tiver que acontecer será de forma simples e natural. Mas confesso, leitor: Toda noite me masturbo pensando nela.

***

As chuvas de novembro, descolaram, as fotografias de Letícia dos postes. Senti uma raiva e uma sensação de invalidez ao encontrar uma aqui embaixo.

'Procura-se. Desaparecida desde 10 de junho. Família desesperada'

Uma vez, minha mãe, bêbada é verdade, disse que tinha nojo quando eu mamava em seu seio. Minha boca lhe dava ânsia de vômito. Meu pai dissera que uma aberração como eu jamais teria saído de dentro de si. Família desesperada? E eu? Qual a parte que me cabe deste mundo? Julgar sem analisar todo um contexto, é a pior idiotice que os ditos seres humanos podem fazer.

Um dia antes de Cláudio morrer, minha mãe tivera uma overdose com seus amigos drogados dentro de casa. Me dava prazer ver a espuma saindo de sua boca. Suas mãos e seus lábios roxos me davam um frenesi que nunca tivera antes. Inertes, seus olhos me encaravam gritando, e sua mão direita fuçam sua garganta tentando tirar o ar. No canto da sala, um dos viciados se arrastava para alcançar um punhado de cocaína a poucos metros de onde estava. Contava-se ao todo quatro drogados, minha mãe estava inclusa nesta lista. Ajudei a todos espumarem pela boca. Nenhum precisou arrastar-se mais para alcançar o milagroso pó branco. No colchão dela havia quantos quilos fossem necessários para todos. E eu sabia disso.

***

Minha mãe não dispunha de muitas maquiagens ou coisas femininas, mas o pouco que tinha serviu.

'Letícia ficara linda!'

O batom vermelho na sua boca arrancavam-me risos de satisfação. O lápis em seus olhos acabou não dando muito certo, as lágrimas distorceram um pouco o resultado esperado. O vestido branco que eu trouxera também ficou um pouco sujo, e alguns dos ratos comeram cortes importantes dele. Não tínhamos um padre, mas estávamos oficialmente casados. Eu tiraria as correntes de Letícia para a lua de mel, mas tenho certeza que ela não iria se comportar. Tirei uma vez os fios de costura de sua boca e ela ficou mordendo sua língua. Quase sangrou sem parar.

***

Gemente, Letícia chamou a atenção da equipe de águas e esgotos. Havia esquecido de mudar sua posição naquela semana. Visitei outras galerias a procura de comida 'os ratos deixam de seguir você quando sabem que estão para entrar em extinção'.

Esperei quatros dias para conseguir que um jornal caísse aqui embaixo. A manchete continuava atual:

LETÍCIA, A MENINA QUE EMOCIONOU O MUNDO, PASSA POR TERCEIRA CIRURGIA NO ESTÔMAGO.

Algumas outras manchetes destacavam-se nos jornais que conseguia ver.

'Letícia começa a ganhar peso'

'Letícia ganha mão biônica e passa bem'

'Emocionada, Letícia passa por cirurgia para implantação de ouvido artificial e ouve a voz da mãe pela primeira vez desde seu sequestro.'

'Letícia, a menina que chocou o mundo, volta à escola e comove colegas e professores.'

DAVI DE SOUSA LIMA É PRESO NESTA MANHÃ.

'Suspeito foi avistado por testemunhas tentando mover a tampa de esgoto na altura 5.000 da Avenida Miguel Arcanjo. De acordo com o Delegado Gilberto Castanha, Davi será encaminhado a prisão psiquiátrica devido sua insanidade mental. Em uma '(in)feliz' comparação, Gilberto comparou Davi ao arqui-vilão do Batman, O Coringa, pela grande semelhança física, atos e tranquilidade ao falar seus crimes sempre sorrindo e sem remorso.' pag12.

(...) Davi será indiciado pelos crimes de sequestro, homicídio triplamente qualificado de seu pai, homicídio de sua mãe e deu seu colega de escola. Na ocasião, Davi travou a cadeira de seu amigo ao atravessarem a avenida Gilberto Pacheco deixando o acidente acontecer. Testemunhas dizem tê-lo visto rindo momentos depois de travar as rodas. O acusado ainda será investigado por mais três assassinatos, no mesmo local, que envolveram a morte de sua mãe. Caberá ao Juiz, decidir se o réu irá para cadeia ou prisão psiquiátrica (...)

Tema Solidão

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Gostaria de ressaltar que esse conto é dedicado ao amigo Paulo Moreno. Que ele esteja em um lugar melhor e em Paz. Um abraço, meu amigo.

Eduardo Monteiro

Eduardo monteiro
Enviado por Eduardo monteiro em 05/09/2015
Reeditado em 09/09/2015
Código do texto: T5371922
Classificação de conteúdo: seguro
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